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O nascimento do ensino jurídico universitário na Idade Média: breves comentários

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3. A família common law

O contexto do surgimento família de direito common law na Inglaterra da Idade Média permite compreender melhor como se deu a formação das universidades e os fundamentos de seu ensino jurídico.

Nessa perspectiva, partindo do século XI, na Inglaterra, com o reinado de Guilherme I, fundador da dinastia normanda, percebe-se a consolidação de uma situação inexistente no contexto da Europa Continental. O rei conseguiu reunir o sistema feudal (instituição trazida pelos normandos, que causou uma transformação na estrutura fundiária inglesa e colocou os barões como senhores feudais com poderes locais) e a centralização do poder, uma monarquia centralizada.

No entanto, essa relação entre o monarca e os barões era marcada por uma tensão quanto à propriedade de terras. Essa tensão desenvolveu-se em conflitos que puderam ser amenizados com a introdução, no século XII, da dinastia plantageneta, na figura do rei Henrique II. Segundo Cristiano Paixão, esse reinado “judicializou os conflitos existentes na Inglaterra do século XII” (PAIXÃO e BIGLIAZZI, 2011, p. 29), ou seja, a partir desse momento os conflitos entre barões e o monarca materializavam-se em processos judiciais de responsabilidade dos tribunais reais criados pelo rei.

Esses tribunais reais, inicialmente itinerantes, possibilitaram a integração entre os costumes, que eram parte da essência do direito da época, e os precedentes, que foram surgindo a partir da resolução de casos e sua posterior análise para utilização como parâmetro de entendimento em outros casos. Essa é a base para a formação do sistema jurídico common law.

Ademais, a Idade Média foi marcada por um período de desenvolvimento intelectual que propiciou uma complexificação da sociedade e suas instituições. A partir dessa transformação nas bases estruturais das instituições sociais e com a presença de escolas que corroboraram para estimular o ensino como um todo, mas principalmente na área das ciências como a Escola dos Mertonianos, em Oxford, percebe-se que o movimento intelectual colaborou para o surgimento das universidades na Inglaterra no início do século XI.

3.1 A Universidade de Oxford

A Universidade de Oxford foi a primeira e mais antiga universidade da Inglaterra. Não se sabe exatamente a data de sua fundação, mas estima-se que o ensino formou-se no século XI, por volta de 1096. A Universidade desenvolveu-se rapidamente no século XII, quando o rei Henrique II proibiu, em 1167, os estudantes de irem para as universidades da Europa Continental, especialmente para a Universidade de Paris.

    Assim, como nas universidades da Europa Continental, onde a Igreja teve um papel fundamental na formação das universidades e do ensino, na Inglaterra não foi diferente. Desde o século XII, é perceptível a presença de estudantes na cidade de Oxford, eles frequentavam as escolas da Universidade estabelecidas em determinados centros religiosos, como o Monastério de Oseney e o convento de Santa Fridesinda[5]. A Igreja contribuiu também para a consolidação da Universidade de Oxford como um centro de ensino de boa reputação.

    No entanto, no século XIII, havia muitos conflitos envolvendo a população local e os estudantes. Alguns desses conflitos levaram até a morte de alguns alunos. Diante dessa tensão, muitos desses professores e estudantes abandonaram Oxford e decidiram ir para outras regiões. Alguns foram para as universidades do continente europeu e outros foram para a região de Cambridge, na Inglaterra.

    O conflito em Oxford foi amenizado por uma espécie de conciliação de interesses entre os habitantes locais, os intelectuais e o rei. Ademais houve o reconhecimento do caráter eclesiástico do ensino, que passava a estar submetido à autoridade do bispo de Lincoln, mas este possuía um representante designado dentre os intelectuais, promovendo, assim, um entendimento entre as partes.

3.2 Universidade de Cambridge

    A Universidade de Cambridge é a segunda mais antiga da Inglaterra. Sua origem reporta ao século XIII, devido aos conflitos ocorridos em Oxford, que levaram os intelectuais a mudarem de região. Quando os estudantes e professores chegaram à região, eles se acomodaram inicialmente em quartos alugados até que passaram a alugar a casa inteira. O alto preço do aluguel e da comida era um dos motivos de discussão entre os estudantes e a população local.

    O crescimento do número de intelectuais possibilitou a formação de uma corporação, que possuía um representante e o ensino era feito pelos próprios membros. Houve algumas rivalidades entre a população local e os intelectuais, mas o rei Henrique III, que deu atenção especial a questão das universidades inglesas, assegurou o fim da tensão. Quanto à questão do ensino, o rei incentivou intelectuais a se mudarem da Universidade de Paris para as universidades inglesas fazendo com que a Universidade de Cambridge ganhasse mais reconhecimento.

3.3 O Ensino inglês

    O ensino na Universidade de Cambridge foi influenciado pelos métodos utilizados na Itália, França e que os intelectuais conheceram em Oxford. Portanto, o ensino nas universidades inglesas era similar ao praticado no continente, consistia primeiramente num curso “base” de artes, estudavam primeiro o trivium (gramática, lógica e retórica) e depois o quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia). Alguns estudantes, mas não todos, aprofundavam seus estudos em áreas como a teologia, o direito canônico e o civil ou a medicina.

    O ensino na Universidade de Cambridge seguia um modelo que utilizava a leitura e explicação dos textos. As avaliações eram uma espécie de debate, que possuía o intuito de descobrir e estabelecer verdades. Esses debates eram realizados por meio de uma série de perguntas, que deveriam ser debatidas entre o estudante e um aluno de um grau acima e depois avançava-se para a discussão com o professor[6].

Tanto em Cambridge quanto em Oxford, o ensino do direito canônico foi proibido, em 1535, pelo rei Henrique VIII, durante a Reforma anglicana no século XVI. Nesse período apenas o direito civil era ensinado. O ensino jurídico com bases no common law, no qual a jurisprudência tem papel central, só foi introduzido em Oxford em 1758 e em Cambridge em 1800[7]. Portanto, percebe-se que, na Idade Média, o ensino jurídico não apresenta as feições do sistema do common law, somente com o avanço das Universidades e do sistema jurídico que o ensino do direito começou já no século XVI, a ganhar forma e complexificar-se.   


4. Conclusão

A origem do ensino jurídico universitário remonta à Idade Média, onde surgem as primeiras universidades. Tais instituições ocuparam papel relevante no plano do debate e na discussão acerca das novas necessidades daquela época. A busca pelo renascimento do direito romano propunha um direito intelectualmente aceitável, universal e comum a todos os povos.

Fora do continente, após o amadurecimento das universidades inglesas, buscou-se desenvolver um novo direito, com base nos costumes existentes e uma base jurisprudencial. As condições próprias dos ingleses impediram que os tribunais da common law recepcionassem o direito como as universidades da Inglaterra os convidaram.

O direito romano, enquanto figura do melhor direito a ser aplicado, não foi a abordagem considerada aos longo dos séculos que seguiram na Inglaterra. Ao contrário, nos países do continente temos um acolhimento do direito proposto pelas universidades medievais que valorizavam a missão do direito enquanto fundamento de uma ordem civil. Certamente o renascimento dos estudos do direito romano marcou o nascimento da família de direito romano-germânica.

Nessas nações, os juristas utilizavam conceitos, classificações e métodos de argumentação dos romanistas que procuravam mostrar, segundo suas concepções, qual era o melhor direito e como se poderia chegar a tal conhecimento. Em contrapartida, temos certa demora para que os direitos locais fossem considerados. Em Paris, por exemplo, a primeira cadeira de direito francês surge apenas na última parte do século XVII.

Assim, o ensino do direito romano relegou a segundo plano o ensino dos direitos locais e certamente, a influência da universidade de Bolonha foi preponderante para tal. Fato relevante é que as universidades medievais adquiriram status indispensáveis à vida social formando profissionais que iriam atuar na modificação dos contexto social.

Nesses centros, o saber não é mais uma graça divina ou um dom, a preocupação não é tão somente formar o clérigo, mas um agente interativo, capaz de aprender e de ensinar, fruto das novas exigências históricas. O ensino jurídico universitário possui então, pelo menos, mais de oito séculos desde a sua criação, participando de lutas políticas e atuando significativamente na construção de identidades nacionais.

Outro ponto de reflexão é que, àquela época, a universidade era considerada local sagrado pela Igreja, carecendo de proteção, devendo todo aquele que pretendia perturbar o ensino ser impedido. Trazendo ao plano moderno, as universidades são hoje locais sagrados? Noutro giro, deve o ensino universitário, especialmente o do Direito, ser protegido contra perturbações externas?

Definitivamente a universidade atual alcançou uma autonomia não experimentada pelas corporações medievais, se afastando do cunho religioso. Entretanto, especialmente no caso brasileiro, sofremos com as interferências externas, quer seja pelo baixo investimento em pesquisas, pelo sucateamento das instituições, pela proliferação do ensino de baixa qualidade ou mesmo pela desvalorização de um de seus agentes centrais, o docente.

Fatores esses que prejudicam a plenitude da autonomia perseguida desde as origens dessas instituições. Revisitar o surgimento do ensino jurídico nas universidades, em ambas as famílias do direito comentadas, é compreender a relevância desses coletivos perante as respostas das necessidades de cada época, permitindo uma melhor entendimento do pensamento que se seguiu na Europa e que, mais tarde, como o advento da colonização, chegaria ao novo mundo. O modelo trazido as Américas certamente sofreu grande influência desses grandes centros do ensino jurídico.


NOTAS

[1] Muito embora nem todas as universidades se dedicassem ao ensino de todas as faculdades ainda sim eram conhecidas como universitas.

[2] Não desconhecemos os desacordos entre historiadores sobre a disputa de fontes quanto ao título de primeira universidade, entretanto adotaremos aqui uma visão pragmática e o reconhecimento do apontamento de José Reinaldo de Lima Lopes (2008, p. 97) ao delimitar o nascimento do ensino jurídico universitário em Bolonha.  

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[3] Università di Bologna: The University from the 12th to the 20th century.

[4] Université Paris-Sorbonne: Histoire de l’université.

[5] OBRADÓ, Maria del Pilar Rábade. Las universidades en la Edad Media. Madrid: Ed. Arco Libros, 1996. P. 41.

[6] University of Cambridge: The Medieval University.

[7] DAVID, René. Os grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998. P.307.


REFERÊNCIAS

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DAVID, René. Os grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.

HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia - Síntese de um milênio. Portugal: Mem Martins, 2003.

JANOTTI, Aldo. Origens da Universidade. 2 ed. São Paulo: EdUSP, 1992.

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PAIXÃO, Cristiano. BIGLIAZZI, Renato. História constitucional e norte-americana: do surgimento à estabilização da forma constitucional. 1º reimpressão. Brasília: Ed. UnB/Finatec, 2011.

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VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no ocidente nos séculos XII e XIII. São Paulo: Edusc, 2001.

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Sobre os autores
Alan Alves Ferro

Pós-graduando em Educação Básica e Direitos Humanos na Perspectiva Internacional - EBDHI, especialização oferecida pelo Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados - CEAM, da Universidade de Brasília (UnB). Pós-graduado em Direito Processual Civil no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Bacharel em Direito e licenciado em Química, ambos pela UnB.

Julia Cavalcante Yamasaki

Acadêmica de Direito na Universidade de Brasília - UnB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERRO, Alan Alves ; YAMASAKI, Julia Cavalcante. O nascimento do ensino jurídico universitário na Idade Média: breves comentários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5273, 8 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59300. Acesso em: 26 abr. 2024.

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