1. A Universidade medieval: uma introdução
Conforme ensina Lopes (2008, p. 97), o início do ensino jurídico ocidental remete à Idade Média, muito embora, com destaque à fuga de um anacronismo óbvio, a universidade medieval não era a universidade tal como instituição que a conhecemos hoje. A estrutura das universidades era tida como corporativa, tanto que o termo universitas possuía conotação de uma espécie de comunhão ou associação de alunos ou professores.
A universidade medieval nasce no contexto do grande renascimento da vida urbana e do corporativismo jurídico. A palavra universitas naquele tempo correspondia mais ou menos ao que chamaríamos pessoa jurídica: era uma comunhão que se reconhecia como corporação. A universidade medieval é uma guilda, ou uma corporação: de alunos ou de professores conforme o caso. (LOPES, 2008, p. 105)
Ao buscarem uma forma corporativa, as universidades partiam em busca de maiores direitos que passava, por certo, por uma maior autonomia em relação aos dois grandes poderes da época, a Religião e o Império. Tais corporações reuniam número significativo de membros que pretendiam sustentar seus interesses por meio da defesa do monopólio do saber, conforme comentado por Le Goff (2006):
O século XIII é o século das universidades porque é o século das corporações. Em cada cidade que existe um ofício agrupando um número importante de membros, esses membros se organizam para defesa de seus interesses, a instalação de um monopólio de que se beneficiem. É a fase institucional do impulso urbano que materializa em comunas as liberdades políticas conquistadas, em corporações as posições adquiridas no domínio econômico. (LE GOFF, 2006, p. 93)
Daí a necessidade de busca por autonomia. Aliás, é justamente essa característica que é destacada por Obradó (1996, p. 7) ao comentar que a originalidade das universidades medievais, perante outras escolas anteriores, era precisamente a autonomia que experimentaram em relação a poderes religiosos e políticos. Obviamente não queremos aqui cair em anacronismo, pois temos ciência de que não há que se falar em comparação do entendimento de autonomia hoje e o que viesse a ser autonomia no medievo.
Logo, há que se ressaltar que não se trata de uma autonomia tal qual experimentamos nos dias de hoje, certamente. Até porque é marcante a presença da autoridade do Papa, do Imperador ou dos reis e de diversos outros pontos que não nos permitem fazer uma comparação direta, por certo. Mas não há dúvidas de que a questão da autonomia era central e que todo esse processo foi gradual. Conforme escreve Le Goff (2006, p. 94) as corporações universitárias se organizaram lentamente, mediante conquistas sucessivas, ora na luta contra contra os poderes leigos, ora na luta contra os poderes eclesiásticos.
Tão importante quanto compreender que a universidade da idade média não era a mesma instituição que conhecemos hoje, é perceber que “a universidade medieval não gera diretamente a nossa universidade” (LOPES, 2008, p. 97), após seu período de apogeu, entre os séculos XII a XV, houveram intensas reformas até que fossem vistas como personagens indispensáveis aos novos Estados do século XIX. Entretanto, não se busca, neste artigo, um modelo de contraste entre a universidade medieval e a instituição de nossos dias. Ao contrário, persegue-se o reconhecimento da importância singular que tais instituições permitiram a sua época e sua contribuição para a criação de uma tradição intelectual ocidental, especialmente a relacionada ao ensino jurídico.
Mas qual a relação entre o aparecimento das universidades e o nascimento do ensino jurídico? É preciso tomar nota de que, àquela época, após o ensino das artes liberais, os estudantes poderiam optar pelo estudo de direito, medicina ou teologia[1]. Assim, tratar as origens do ensino jurídico universitário é revisitar o surgimento das universidades, pois a sociedade da época demandava especialistas em Direito, hábeis aos novos desafios que se apresentavam, como a dinâmica comercial e as disputas entre o direito secular e o canônico, o papel do poder monárquico e a discussão de temas como a liberdade e a justiça. O surgimento das universidades é profundamente ligado ao renascimento urbano, ao novo mundo das cidades, onde os juristas teriam papel destacado.
A universidade medieval promoveu o surgimento dos juristas e eles se identificaram com ela. Desde então, exceto na Inglaterra, os juristas serão letrados. Ao mesmo tempo, foi o estudo universitário do direito que permitiu enfrentar as disputas entre o direito secular e o canônico, os direitos reais, feudais, comunais e corporativos. Os juristas medievais retomam, secularizando-a e formando-a, a discussão sobre a liberdade, legalidade, equidade, misericórdia, justiça. Isto não significa, é bom insistir, que eles fossem modernos e liberais. (LOPES, 2008, p. 105)
Em um recorte temporal, e, considerando agora o plano da modernidade, podemos destacar, conforme categorização apresentada por David (1998, p. 17), a presença de três grupos ou famílias de direitos: romano-germânica (civil law), família da common law e família dos direitos socialistas. Tal diferenciação é necessária para compreensão do que pretende-se apresentar. O direito comparado pode ser útil à compreensão das variedades de concepções do direito e na possibilidade de conhecimento acerca da decisão de outros povos, que, ao reduzirem o papel da codificação, adotaram outras soluções para a resolução dos conflitos sociais.
Nesse contexto, o papel do ensino jurídico certamente é significativo, pois nele encontramos estruturas de raciocínio e diálogo na compreensão da relação entre as estruturas sociais e os direitos. Entretanto, o objeto de interesse neste breve escrito será, precisamente, a origem do ensino jurídico universitário da família civil law, casos de Bolonha e Paris, e as primeiras universidades inglesas Oxford e Cambridge, representando a concepção da common law.
Especialmente os casos de Bolonha, Paris e Oxford, as pioneiras, temos a representação da típica da universidade medieval. De tal forma, conforme tratou Oliveira (2007, p. 114), estudar as universidades constitui uma maneira de consolidarmos nossa identidade e entendermos a própria construção do conhecimento, das ciências humanas e um caminho para compreendermos o nosso próprio sentido de ser pessoa intelectiva.
2. A família romano-germânica (civil law)
A família de direito romano-germânica reúne países por todo o mundo, incluindo o caso brasileiro, sendo o seu berço a europa medieval. Segundo David (1998, p. 18), esta família “formou-se graças aos esforços das universidades europeias, que elaboraram e desenvolveram a partir do século XII, com base nas compilações do imperador Justiniano, uma ciência comum” apropriada às condições da época.
Observou-se, com o fenômeno da colonização, que este sistema foi irradiado para diversos territórios, entretanto houve ainda a recepção voluntária das ideias do continente europeu por diferentes povos que, por motivos de delimitação e escopo de trabalho, não comentaremos tais razões. O alcance da civil law estende-se, hoje, desde a europa continental à América Latina, parte dos países da África e até países do oriente, como o Japão e Indonésia.
A criação da família de direito romano-germânica está ligada ao renascimento que se produz nos séculos XII e XIII no Ocidente europeu. Este renascimento manifesta-se em todos os planos; um dos seus aspectos importantes é o jurídico. A sociedade, com o renascer das cidades e do comércio, toma de novo consciência de só o direito pode assegurar a ordem e a segurança necessárias ao progresso. (DAVID, 1998, p. 31)
2.1 A Universidade de Bolonha: o berço do ensino jurídico
A escola de direito medieval começa em Bolonha[2]. É na comuna italiana que surge a escola de direito que irá influenciar marcantemente o continente europeu. A data de sua fundação é controversa, entretanto, podemos destacar alguns marcos. Em 1088, temos o momento em que o ensino gratuito começou em Bolonha, independentemente das escolas eclesiásticas. Tornava-se, ali, um centro de atração aos estudantes estrangeiros em busca do aprendizado em direito, especialmente o direito civil.
Bolonha desenvolveu o estudo do Direito Civil e do Canônico, cujas fontes se encontram nas Escrituras, na tradição e nos costumes, na legislação eclesiástica, decretos, concílios e reescritos dos Papas, acrescendo-se a estes fatores a influência romanística, adaptada à vida da sociedade cristã. [...] O Direito Canônico, separando-se da teologia, torna-se ciência autônoma com o decreto de Graciano, em 1140. Daí tornar-se Bolonha famosa pelos seus decretistas (ARRUDA, 1943, pp. 43-44).
Bolonha, rapidamente, iria alcançar uma excelente reputação, em muito devido à obra do ilustre professor Irnerio. Entre os séculos XI e XII temos um período fundamental para o desenvolvimento da política europeia, definindo as relações entre o Estado e a Igreja. Durante a controvérsia, os debates sobre a lei eram fundamentais, e igualmente o estudo do Codex Justinianus, o fundamento da identidade do Império[3].
De acordo com Obradó (1996, p. 40), em Bolonha o nascimento da Universidade se deu devido à atuação dos alunos estrangeiros que em 1158 obtiveram a promulgação, pelo Imperador Frederico I, os privilégios conhecidos como Authentica Habita que, dentre outros, tratava questões importantes como as imunidades detidas pelo clero, a liberdade de locomoção para fins de estudo e o direito de ser julgado por seus mestres em vez de tribunais civis.
Este foi um evento fundamental na história da universidade europeia. A Universidade foi legalmente declarada como um lugar onde a pesquisa poderia se desenvolver com certa autonomia de qualquer outro poder.
Portanto, em Bolonha temos, de início, apenas o ensino de direito. Somente a partir do século XIV, ao lado da escolas dos juristas, surgiram os chamados “artistas”, estudiosos da Medicina, Filosofia, Aritmética, Astronomia, Lógica, Retórica e Gramática. O ensino da teologia foi instituído apenas em 1364.
Conforme esclarece David (1998, p. 33), “o direito, nas universidades, é considerado como um modelo de organização social”. O direito praticado na Itália, e também na França, não tinham um caráter nacional. O modelo de partida para esses novos estudos foi precisamente superar costumes considerados atrasados e insuficientes às novas demandas.
Nesse contexto se produz o renascimento do direito romano. Assim como em Bolonha, nenhuma universidade medieval, em suas origens, irá praticar o ensino do direito local consuetudinário.
Para Silvio Meira (1991, p. 394) o grande feito de Bolonha foi a difusão de seu ensino jurídico, sistematizado por Glosadores e pós-glosadores, que alicerçava-se nos preceitos compilados pelo Imperador Justiniano, onde todo um renascimento da ciência jurídica se deu com a releitura dos documentos produzidos no século VI.
A França, a Bélgica, a Holanda, a Inglaterra, Espanha, Suíça e Portugal, todas as nações, de Leste e do Oeste europeu, se abeberraram nas fontes romanas, transladadas para os séculos posteriores ao XI pela força renovadora da Universidade de Bolonha. O mundo, que anteriormente conhecia duas grandes forças: o Cristianismo medieval e o Império (O poder dos Príncipes), passou a conviver com outro poder, que se alevantava bem alto, o do Direito, através do ensino e da aplicação prática. (MEIRA, 1991, p. 394)
De tal forma, conforme palavras de António Manuel Hespanha, “os resíduos de direito romano então conhecidos e, sobretudo, os seus principais livros, redescobertos no Norte da Itália no século XII, são então tidos como direito do Império, de vocação universal; logo, como direito comum” (HESPANHA, 2003, p. 104).
De tal forma, conforme explica Lopes (2008, pp.112-116), para os medievais o método de ensino pautava-se na autoridade de um texto normativo que, entretanto, estaria distante do dogmatismo puro e simples. Não se tratava de mero palavrismo, havia um debate filosófico acerca do sentido das palavras, estilo argumentativo característico próprio dos juristas. De tal forma, a tradição jurídica romano-germânica passa não só pela compilação dos textos de Justiniano, autoridade do passado, mas pelas autoridades do presente que participam de um ambiente de debates.
2.2 A Universidade de Paris
Em tempo, é preciso notar que a universidade medieval não era constituída de um único conjunto físico de instalações com sede própria como poderia indagar pela realidade dos dias de hoje. Como destacou José Reinaldo “as aulas são dadas onde o professor conseguir alugar um espaço, ou na sua casa, ou em algum recinto cedido pela comuna, ou pela Igreja, ou por um convento (LOPES, 2008, p. 106).
Juntamente com Bolonha, a Universidade de Paris é considerada, por diversos autores pesquisados, pioneira da família romano-germânica, servindo também de modelo para as demais universidades do período estudado. Verger (2001) é um desses autores que destaca Paris como foco de debate intelectual, enxergando-a como modelo para outras universidades:
Paris tornou-se, verdadeiramente, no século XIII, um foco maior de debate intelectual e de renovação das idéias. Centenas de jovens clérigos foram ali formados nas técnicas mais refinadas do trabalho intelectual, segundo métodos seguros. Evidentemente, este trabalho intelectual comportava regras às vezes rígidas, (...) mas a qualidade do ensino universitário parisiense levou a se fazer progressos decisivos em direção à autonomia, para não se dizer, à profissionalização, da cultura erudita. A figura ainda um pouco vaga das pessoas de saber passou a estar associada a um tipo social bem preciso e excepcionalmente prestigioso, o doutor. Compreende-se que a universidade de Paris tenha se tornado então um modelo que se procurava imitar e reproduzir em toda a parte em que se fizesse sentir a aspiração a uma semelhante promoção da cultura. (VERGER, 2001, p.208)
Em relação à origem precisa da Universidade de Paris, temos que, mais importante que definir a data de surgimento dessa instituição é apontar sua importância para o contexto medieval, que não encontra precedentes de modelo semelhante na antiguidade clássica.
Portanto, não iremos debater fontes que questionam esse marco, mas seguir uma visão de pragmatismo ao adotar o posicionamento da professora Mara Leite Simões (2013, p. 137), que demarcou o surgimento da Universidade de Paris em 1150, quando as Escolas de Artes Liberais e as de Teologia se agruparam às Escolas de Direito e de Medicina na região da Île de la Cité, sendo considerada, geralmente, a escola catedral de Notre-Dame seu berço.
Também, em Paris, papel importante possuíram os colégios, legítimos albergues onde os estudantes estrangeiros residiam. Esses locais logo se tornaram centros de ensino. Certamente, o mais famoso foi o colégio criado por Robert de Sorbon, em 1257. A propriedade, com uma grande biblioteca, uma capela e dormitórios para o conforto dos seus estudantes, juntou-se à Faculdade de Teologia, no coração da Paris medieval. De século em século, a faculdade, que é chamada mais tarde "Sorbonne", desempenha um papel cada vez maior na vida do reino francês, envolvendo-se ativamente no debate intelectual[4].
Nas palavras de Lopes (2008, p. 109), marco relevante para a Universidade de Paris foi a proibição, por ordem de Honório III e a pedido do rei, em 1219, do ensino do direito romano devido ao receio de que o imperador germânico, com auxílio dos juristas em geral, reclamasse alguma ascendência sobre o rei da França.
Obradó (1996, p. 39) destacou que, indubitavelmente, Paris teve papel de grande relevo durante a Idade Média e por lá passaram brilhantes intelectuais da época como Alberto Magno, Boaventura e São Tomás de Aquino, cujas obras tiveram notória influência na teologia e filosofia. Portanto, em Paris, prevaleceu o debate entre a teologia e filosofia: o embate teórico. Essa ênfase do pensamento filosófico, na França, propiciou, mais adiante, o surgimento do Iluminismo.
SANTO ALBERTO O "Grande" e SANTO TOMÁS DE AQUINO sistematizam o peripatetismo criando um novo quadro definitivo para a filosofia cristã. Deve-se a entrada dos Dominicanos nas Faculdades em 1255, a introdução integral e sistemática do aristotelismo, o que as transformou em Faculdade de Filosofia. (ARRUDA, 1943, p. 49)
Para Rashdall (1953, pp. 3-4), nenhuma outra escola irá influenciar tão significativamente o desenvolvimento do pensamento europeu quanto as universidades medievais. As corporações como Bolonha e Paris, que acabamos de tratar, bem como a Universidade de Oxford, a ser comentada adiante, eram coletivos que buscavam a materialização de seus ideais de modo a modificar os caminhos dos povos daquela época, buscando respostas às necessidades que se apresentavam.
A universidade, não menos do que a Igreja Romana e a hierarquia feudal encabeçada pelo Imperador Romano, representa uma tentativa de concretizar um ideal de vida em um dos seus aspectos. Ideais convertem-se em grandes forças históricas pela sua corporificação em instituições. O poder de corporificar seus ideais era o gênio peculiar do pensamento medieval, assim como seu defeito mais evidente assenta-se na correspondente tendência para materializá-los (...) Nossa atenção estará voltada em sua maior parte confinada às primeiras e típicas universidades (...) quando nós comparamos Bolonha com Paris e Paris com Oxford e Praga, verificamos que as universidades de todos os países e de todas as épocas são, na realidade, adaptações, sob várias condições, de uma e mesma instituição. (RASHDALL, 1953, pp. 3-4)
De acordo com as palavras de Oliveira (2007, p. 114), tanto o Papado quanto os príncipes encaravam as universidades como pontos singulares de apoio político e cultural. Tanto que editaram leis e bulas com o objetivo de instituí-las, protegê-las e, também, nelas intervir. Já tratamos aqui que a autonomia dessas instituições não era em sentido amplo, mas relativa. De tal modo, os casos estudados, Paris e Bolonha, gozavam de tal proteção.
Dois fatos que exemplificam a influência desses poderes, nesse contexto, são a Authentica Habita, de Frederico Barba Roxa, de 1158, e a bula de Gregório IX intitulada Parens scientiarum universitas, de 1231. Ambas foram promulgadas para proteger a vida e os interesses dos estudantes e mestres e para organizar a vida acadêmica nas instituições citadas.