A evolução da dignidade da pessoa humana como princípio vetor da previdência social

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22/07/2017 às 14:57
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A dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, mas foi alçada como valor supremo do Estado Democrático de Direito pela Carta Constitucional Brasileira de 1988. Estuda-se aqui esta proeminência axiológica.

RESUMO: A Dignidade da Pessoa Humana não é uma criação constitucional, mas foi alçada como valor supremo do Estado Democrático de Direito pela Carta Constitucional Brasileira de 1988. No presente artigo cientifico, estudar-se-á esta proeminência axiológica do referido princípio e as suas diversas evoluções no decorrer da história da humanidade. O estudo é descritivo e bibliográfico, uma vez que o grande desafio hoje da Previdência Social é conseguir equilibrar as conquistas do passado e a transição para uma nova realidade, tendo como objetivo-fim a proteção do ser humano em situações de necessidade bem como garantir a ele o mínimo existencial.

Neste artigo há um estudo que acompanha a origem histórica da Previdência Social enfatizando, principalmente, a dignidade da pessoa humana como princípio informador e suas sucessivas evoluções e o fato de ser considerado um instrumento de inclusão social em prol da cidadania e o desenvolvimento de uma sociedade livre, justa e solidária.

PALAVRAS-CHAVE: Dignidade da Pessoa Humana; Previdência Social; Direitos Sociais.


1. INTRODUÇÃO

Desde os primórdios tempos da sociedade, o homem primitivo já buscava a sua proteção individual, a racionalização da sua comida e uma forma de proteger-se das intempéries (ausência ou abundância de chuvas que prejudicavam a plantação, a morte dos animais do campo que serviam de comida) que pudessem ameaçar a sua existência. Por isso que BERTRAND RUSSELL já dizia que “...quando um homem primitivo, nas brumas da pré-história, guardou um naco de carne para o dia seguinte depois de saciar a fome, aí estava nascendo a previdência. A previdência simplesmente. Daí para a previdência social foi apenas uma questão de técnica”.[2].

Definir em que momento histórico efetivamente surgiu a Previdência Social seria o mesmo que definir a efetiva velocidade da luz[3]. MOZART VICTOR RUSSOMANO afirma que “não se pode afirmar que o início da previdência social seja o do momento em que o homem guardou o seu alimento para o dia seguinte, na medida em que o pano de fundo da previdência social é o sentimento universal de solidariedade entre os homens, ante as pungentes aflições de alguns e generosa sensibilidade de muitos”.[4]

Alguns doutrinadores defendem que as técnicas de proteção social desenvolveram-se ao longo da história, enquanto outros autores defendem que a previdência social é tão antiga quanto a própria humanidade. O fato é que desde sempre o homem tinha a necessidade de proteger-se.

Assim, desde o surgimento da humanidade, já se notava a preocupação dos indivíduos em criar mecanismos de proteção contra os infortúnios (PULINO, 2001).

Sob a ótica cristã, o homem é concebido à imagem e semelhança de Deus e, por esta razão, todos são iguais. São Thomaz de Aquino foi o primeiro no pensamento cristão a desenvolver o conceito de dignidade da pessoa humana e a necessidade uma intervenção mais profícua da Igreja e do Estado em sua missão social.

Neste período de carência assistencial, em meados do século XIV e XVII surgiram as primeiras manifestações a favor da implantação de um seguro social. Os primeiros indícios de proteção social por parte do Estado surgiu no final da Idade Média, quando uma mudança social e econômica ocorreu na Europa ante a migração de camponeses para as cidades urbanas em busca de melhores condições de vida e de trabalho. Frente à grande contingência de mão-de-obra, cuja maioria ainda não tinha aptidão para o ofício, o número de indigentes e desempregados vagando pelas ruas tornou-se uma preocupação, em especial para a coroa inglesa.

Em 1563, foram instituídas as primeiras paróquias autorizadas a gerir o dinheiro público destinados aos pobres, sendo estes separados por idade, tipo de invalidez, capacidade laborativa, ou puramente ociosidade ao trabalho. A assistência social aos indigentes não era de responsabilidade direta do Estado, mas sim da Igreja, auxiliando cada qual em suas necessidades e utilizando (quando possível) sua mão de obra em beneficio da própria paróquia. Havia grande adesão pois a Igreja era vista como elo entre Deus e a Terra.

Em 1601, na Inglaterra, foi promulgada primeira disciplina jurídica de proteção social: a Lei dos Pobres, que nada mais é do que uma compilação de leis assistencialistas em cujas principais disposições destaca-se a permanência da taxa compulsória às paróquias, a necessidade do trabalho para as igrejas em troca de alimentação e moradia, o açoitamento público para aqueles que podiam trabalhar mas não queriam, e por fim, uma remuneração mínima de existência para aqueles que não tinham capacidade laborativa, como os idosos.

A lei dos pobres era marcada pela arbitrariedade da Igreja e do Estado em detrimentos dos pobres, uma vez que os indigentes eram açoitados e condenados à morte em casos de negação ao trabalho, e idosos e enfermos excluídos da sociedade por não oferecer um retorno financeiro. Na realidade, os cidadãos deviam renunciar os seus direitos políticos e civis em troca do fornecimento, por parte do Estado, de mantimentos para subsistência. O Estado passou a ter um caráter intervencionista-assistencialista, sendo responsável por gerir e efetivar os programas de apoio social mediante a cobrança de um imposto a ser pago pelos chefes de família. Segundo RUSSOMANO (1978, p. 02):

“Essa “oficialização da caridade” – como foi dito certa vez – tem importância excepcional: colocou o Estado na posição de órgão prestador da assistência àqueles que – por idade, saúde e deficiência congênita ou adquirida – não tenham meios de garantir a sua própria subsistência. A assistência oficial e pública, prestada através de órgãos especiais do Estado, é o marco da institucionalização do sistema de seguros privados e do mutualismo em entidades administrativas [...] Hoje, compreende-se que nesse passo estava implícita a investida de nossa época, no sentido de entender os benefícios e serviços da Previdência Social à totalidade dos integrantes da comunidade nacional, a expensas, exclusivamente do Estado, e não apenas aos associados inscritos nas entidades de Previdência Social.”

Ainda assim, havia muita arbitrariedade e a população estava insatisfeita. A necessidade de se estabelecer um padrão mínimo de proteção aos trabalhadores nasceu com a Revolução Industrial, deflagrada principalmente na Inglaterra. O surgimento das grandes máquinas a vapor, o alto número de desempregados e acidentados, além do crescente índice de morte, fez surgir na população um sentimento de revolta e de crescimento dos movimentos sociais que clamavam por melhores condições de trabalho. A Lei dos Pobres (Poor Law) deu espaço para o desenvolvimento do Estado protetor, que serviu de alicerce para que Chanceler Alemão Otto Von Bismark, com o apoio dos sindicatos, institui-se, em 1883, diversas leis previdenciárias, instituindo um Seguro Social de caráter geral e obrigatório, contra doença, acidentes, invalidez e velhice na Alemanha.

Pode-se assim afirmar que a Previdência Social surgiu a partir do binômio homem-trabalho no ambiente urbano pois as leis de seguro obrigatório de Bismarck foram resultado da grande turbulência social-política enfrentada em terras germânicas pela recém-nascida classe trabalhadora.

Esta visão de um Estado protetor rapidamente se espalhou por toda a sociedade europeia e para a América nos séculos seguintes. O seu conceito está totalmente interligado com o conceito dos direitos sociais trazidos pelo Estado de Bem-Estar (Well-fare State). Em simples palavras, o Estado de Bem-Estar é a assistencial estatal prestada à sociedade enquanto nação democrática, independente do patamar social, mas garantidor de direitos para todos. Houve o abandono do individualismo clássico e o reconhecimento da figura do Estado como ente governante, que interferia na sociedade promovendo amplos e diversificados programas em busca da justiça social. Transformava-se em um Estado Paternal. NOBERTO BOBBIO (1998, p. 416) assim assegura:

“[...] na realidade, o que distingue o Estado assistencial de outros tipos de Estado não é tanto a intervenção direta das estruturas públicas na melhoria do nível de vida da população quanto o fato de que tal ação é reivindicada pelos cidadãos como um direito”.

Trilhando este caminho, pode-se afirmar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos tornou-se a pedra fundamental de uma nova geração de deveres e direitos fundamentais[5], que impôs uma reestruturação do Estado bem como de toda a estrutura de controle da sociedade globalizada tendo como princípio a dignidade da pessoa humana. Esta gênese criou um vínculo seminal entre o Estado e o indivíduo, uma vez que somente poderia ser alcançada a plena dignidade quando o objetivo-fim do Estado fosse a justiça e a ordem social. Assim, em seu artigo XV estabeleceu:

“1. Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e, direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu controle”

No ensinamento de Celso Barroso Leite, a proteção social:

“é o conjunto de medidas de caráter social destinadas a atender a certas necessidades individuais, mais especificamente, às necessidades individuais que, não atendidas, repercutem sobre os demais indivíduos e em última análise sobre a sociedade. É sobretudo nesse sentido que se pode afirmar, como afirmei, que a proteção social é uma modalidade de proteção individual”.[6]

Insta mencionar que foi a partir de 1934 que a histórica constitucional brasileira passou a sofrer grandes influências do modelo germânico-constitucional. A Carta Magna de 1988 trouxe normas constitucionais que buscam a construção de uma justiça social que garanta a evolução permanente da concepção do mínimo existencial evitando-se, assim, o retrocesso social e estabeleceu que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana (artigo 1o inciso III) e o primado do trabalho (artigo 1o inciso IV). A própria Constituição Federal tem uma significação extremamente elevada pois estabelece o conjunto de normas e princípios, que se dizem fundamentais, e que são utilizados como base da organização política da sociedade.

A partir deste momento, o Estado passou a garantir à sociedade brasileira os direitos sociais, culturais e econômicos. RABENHORST[7] define que: “o termo “dignidade” vem do latim dignitas, que designa tudo aquilo que merece respeito, consideração, mérito ou estima). A dignidade é, acima de tudo, uma categoria moral; significa a qualidade ou valor particular que atribuímos aos seres humanos em função da posição que ocupam na escala dos seres”) protegida contra as arbitrariedades do Estado. Tendo em vista a enorme carga de abstração que o termo carrega, a conceituação prática da “dignidade” não tem encontrado unanimidade entre os doutrinadores apesar do fato de que estas múltiplas definições acabam por complementar-se.

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KARL LARENZ reconhece na “dignidade pessoal a prerrogativa de todo ser humano em ser respeitado como pessoa, de não ser prejudicado em sua existência (a vida, o corpo e a saúde) e de fruir de um âmbito existencial próprio”[8]. Já ERNESTO BENDA afirma que a “dignidade humana como parâmetro valorativo, evoca, inicialmente, o condão de impedir a degradação do homem, em decorrência de sua conversão em mero objeto da ação estatal”.[9].

Dentro deste conceito de dignidade, não se pode esquecer os ensinamentos do filósofo Immanuel Kant que define a pessoa humana como um fim em si mesmo e, portanto, não pode ser utilizado como meio de cumprimento de vontades alheias. Assim, Kant afasta a idéia da instrumentalização e coisificação do ser humano que, em sua visão estritamente filosófica, merece respeito e consideração por parte do Estado contra todo e qualquer ato que viole os seus direitos fundamentais.

Buscando exatamente esta proteção contra infortúnios que pudessem ocorrer com os trabalhadores (problemas de saúde, acidentes de trabalho, ambientes insalubres, desemprego e morte) houve a demonstração que o Estado não oferecia garantia nenhuma aos seus cidadãos.

As leis de Bismarck são consideradas, mundialmente, o marco inicial do que hoje é conceituado como Seguridade Social pois foi a partir da Alemanha que o sistema previdenciário passou a se espraiar para toda a Europa e, posteriormente, à América e Ásia.[10]

O ano de 1923 é considerado o marco inicial da previdência social no Brasil pois foi a partir do projeto de Lei criado pelo Deputado Elói Chaves que as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs) passaram a existir. Segundo Menicucci (1994), esta data é considerada o grande marco porque “as tentativas anteriores [de se criar uma previdência social] tiveram alcance muito limitado e poucas vezes foram efetivamente implantadas”. Na época, a Previdência Social era tida como uma instituição de natureza civil e privada, uma vez que a sua administração era realizada por um colegiado composto por representantes dos empregados e empregadores, excluindo qualquer tipo de ingerência estatal nestas instituições.

Apesar de algumas leis esparsas, foi em 1960 que foi instituída a LOPS (Lei Orgânica da Previdência Social) que organizou todo os sistema previdenciário, uniformizando as prestações e contribuições sociais e, em 1966, houve a criação do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), unificando todas as instituições previdenciárias até então existentes em um único órgão federal.

Por fim, em 1991, houve a promulgação da Lei Federal 8.213/91, que tratou sobre os benefícios e prestações previdenciárias e a Lei 8.212/91, que trouxe a fonte de custeio do sistema securitário brasileiro.

A Previdência Social, estrategicamente estabelecida dentro do Capítulo destinado à Ordem Social (artigo 201 e 202) e ligada diretamente aos direitos fundamentais (dignidade, saúde, proteção à maternidade, o trabalho e a assistência aos desamparados) está conectada umbilicalmente com a noção do Estado Democrático de Direito.

Conforme visto, a cada passo dado na história da humanidade desenvolveram-se técnicas de proteção social sempre buscando a proteção da dignidade do ser humano, o bem estar social e modos de superação de eventuais situações que pudessem privar o homem de uma vida com o mínimo existencial.

Vivencia-se uma crescente insegurança na Previdência Social marcada pela concessão cada vez maior de prestações sociais e um decréscimo na capacidade estatal de suprir esta demanda.

O princípio da dignidade humana deve nortear a Administração Pública e toda a Sociedade com o objetivo de que, nos próximos anos, não existem brasileiros sem a cobertura previdenciária. O grande problema da Previdência Social no Brasil não está na infundada alegação do “déficit” previdenciário, mas sim no desconhecimento da população brasileiro do que é a previdência social e quais são os seus direitos, o que acaba por trazer um descrédito para o Sistema não somente da Previdência mas também da Seguridade Social como um todo.

O Estado não pode deixar de acolher esta tendência de ter o ser humano como valor supremo, centro e fim das suas proposições e centro de todo o universo jurídico previdenciário a ser constituído.  O grande desafio da Previdência Social, sem dúvida, é garantir a aplicabilidade deste direito fundamental à previdência social, que verdadeiramente assegure um Estado Democrático de Direito, buscando a construção de um Estado justo e solidário a todos:

“Dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida. [...] Daí decorre que a ordem econômica há de `ter por fim assegurar a todos uma existência digna, a ordem social visará à realização da justiça social, a educação para o desenvolvimento da pessoa[...]”[11]

Diante das novas formas de organização da sociedade, a Previdência Social tem se adequado às novas realidades sociais e econômicas ao longo da história.

Ora, a preservação da dignidade da pessoa humana é dotado de universalidade e deve ser protegido em nível internacional. Essa aproximação entre o Estado e a Sociedade, desde a instituição do Welfare State, garantiu a ele a figura de um agente provedor.

Conforme visto, a Previdência Social atual protege desde a concepção até a morte do segurado, cumprindo então com o fundamento constante na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Carta Constitucional Brasileira de 1988. Vê-se o relevante papel da Previdência Social com caráter universal para consolidar o processo de inclusão social e a conquista de índices satisfatórios de cidadania democrática e solidária, com a garantia estatal de concessão do mínimo existencial para uma vida com dignidade.        

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Mestrado em Direito Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP

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