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As formas de utilização do terreno de marinha

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13/08/2017 às 13:15
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III – O PROBLEMA DO PREAMAR MÉDIO

Na matéria, repito integralmente as conclusões já traçadas por Emmânuel Tobias(obra citada) quando disse:

“O preamar médio do ano de 1831 foi estabelecido antes de 1942 e depois de 1946 como ponto de referência fundiária para os processos demarcatórios dos terrenos de marinha.

No período de 1942 a 1946, reinou a confusão quanto aos limites fundiários dos terrenos e aterros pois o Decreto-Lei nº 4.120-42 alterou completamente a sistemática de demarcação, passando a considerar o preamar daquele ano como ponto referencial, mandando inclusive se abstrair da demarcação a áreas tomadas pelos aterros: 

Art. 3º A origem da faixa de 33 metros dos terrenos de marinha será a linha do preamar máximo atual, determinada, normalmente, pela análise harmônica de longo período. Na falta de observações de longo período, a demarcação dessa linha será feita pela análise de curto período.

§ 1º Para os efeitos deste artigo, a análise de longo período deve basear-se em observações contínuas durante 370 dias. Para a análise de curto período, o tempo de observação será, no mínimo, de 30 dias consecutivos.

§ 2º A posição da linha do preamar máximo atual será fixada pela Diretoria do Dominio da União, de acordo com as observações e previsões de marés, feitas pelo Departamento Nacional de Portos e Navegação ou pela Diretoria de navegação do Ministério da Marinha. 

§ 3º No caso de ser reconhecida a existência de aterros naturais ou artificiais, tomar-se-á, como linha básica de marinhas, a que coincidir com o batente do preamar máximo atual, feita abstração dos referidos aterros.

Ao longo da história, a demarcação dos 19.000 km de costa incluindo praias, baias, ilhas, restingas, estuários e lagoas, banhados por águas cuja oscilação de maré seja de 5 cm, obviamente não pôde ser realizada por completo ou mesmo parcialmente.

Além da vastidão da área a ser demarcada em si (19.000km representam a distância da metade da circunferência terrestre), existe o problema dinâmico no processo: quanto mais o tempo avança, mais difícil fica para os demarcadores encontrarem o dito ponto do preamar médio referenciado na linha de costa  do ano de 1831.

Cientes das dificuldades de demarcação inerentes ao descobrimento dos longínquos referenciais originais, a norma federal de 1946 possibilitou que os demarcadores se orientassem por plantas e documentos históricos que mais se aproximassem daquele ano de 1831, para estabelecer qual foi o preamar de 1831 (sic). 

Art. 10. A determinação será feita à vista de documentos e plantas de autenticidade irrecusável, relativos àquele ano, ou, quando não obtidos, a época que do mesmo se aproxime.

O dispositivo legal é claramente imperfeito e dispensa maiores divagações jurídicas, pois deixa evidente que os demarcadores foram autorizados a arbitrar a LPM em lugar diverso do preamar médio ocorrido em 1831, bastando para isso que não existam documentos, plantas, fotos, ou dados maregráficos de 1831 no trecho delimitado.

Ou seja, em tese a demarcação de um determinado trecho desses 19.000km de LPM poderia ser feita se utilizando a tábua de marés de 30 anos atrás, ou então plantas cartográficas da região com  15 anos de idade,  bastando não haverem dados mais antigos para pesquisa. No caso do nível médio do mar oscilar para cima poucos centímetros com relação ao ano de 1831, a LPM poderia se deslocar centenas de metros costa adentro, seccionando dezenas, centenas ou milhares de propriedades alodiais. Esse é o cenário do absurdo desenhado pela legislação patrimonial federal.

Na prática, o que se vê nos processos demarcatórios findos ou em andamento é que muitas demarcações acabam seguindo a linha de vegetação da praias (linha de jundu) ou tábuas de marés muito recentes (a partir de níveis médios do mar claramente alterados), sem prejuízo de outros critérios demarcatórios obscuros e de precisão duvidosa, assunto bem desenvolvido nos estudos do conhecido professor Obéde Pereira de Lima (Tese de Doutorado Localização geodésica da linha da preamar média de 1831 – LPM/1831, com vistas à demarcação dos terrenos de marinha e seus acrescidos. Florianópolis, 2002)

Registre-se, em tempo, que o conceito de preamar ganhou definição legal no Brasil no ano de 2004, no bojo do Decreto 5300, art. 2º XXII: é a altura máxima do nível do mar ao longo de um ciclo de maré, também chamada de maré cheia.

Se o conceito de preamar só foi estabelecido em lei no ano de 2004, é possível que as LPMs estabelecidas em demarcações anteriores a esse ano tenham utilizado outro critério conceitual, havendo então processos de demarcação da orla realizados com parâmetros técnicos diversos. As consequências técnicas e jurídicas de demarcações feitas em desalinho com o conceito legal  merecem reflexão em artigo à parte. 

Dados apresentados no Plano Nacional de Caracterização da SPU, em 2014, atestam que a linha de preamar total "demarcada" era, naquele ano, de 4.247,06 km e a linha não demarcada, 15.159,05 km, de um total de 19.406,11 km.

Nessa estatística, foram consideradas "demarcadas" pela SPU todas as linhas de preamar estimadas (presumidas). Ou seja, linhas que não foram homologadas administrativamente seguindo todos os ritos procedimentais, e registradas no registro público de imóveis, entram no cálculo da SPU como linhas demarcadas.

O plano referido define como  linha de preamar plenamente concluída a demarcada com todos os ritos legais cumpridos, incluindo intimação pessoal dos ocupantes conforme decidido na ADI 4264 pelo STF em 2011, e o registro das plantas e memoriais descritivos em cartório. Esse número não é divulgado no Plano Nacional de Caracterização.

cadastramento federal de imóveis em trechos não plenamente demarcados é um assunto que merece uma melhor análise de todos os operadores do direito envolvidos com o assunto, pois chega às raiais do absurdo o modus operandi atualmente em curso.

Antes da demarcação homologada, em nosso entendimento, a União tem expectativa de direito de propriedade sobre os imóveis localizados na presumida zona de marinha.

Os direitos patrimoniais imobiliários da União sobre terras não demarcadas e sem registro público (terrenos de marinha, terrenos marginais, terrenos ocupados por estradas e vias férreas federais, terras devolutas federais) se encontram em estado potencial até a homologação do processo demarcatório, marco temporal que estrema o domínio público do privado com efeitos ex tunc, e que permite que se efetuem os cancelamentos e retificações nos títulos dominiais conflitantes, pertencentes a terceiros, e obviamente, cobrança de receitas patrimoniais pela União, inclusive de forma retroativa (5 anos)

As superintendências da SPU costumam notificar quaisquer ocupantes de imóveis costeiros (ainda que com título de propriedade alodial) para cadastrarem seus imóveis nos bancos de dados do órgão federal, apenas com base em dados preliminares de cartografia do que será a futura LPM-LLM, não submetidos portanto  ao crivo do contraditório e da ampla defesa técnica e jurídica.

Esses cadastramentos levam à criação de inscrições imobiliárias (RIPs) nos livros e sistemas da SPU, na classificação de imóveis presumidamente da União, procedimento que reputo de legalidade questionável, com base na interpretação sistemática dos artigos 61, 63, 127 e 128 do DL 9760.

Art. 61 - O S.P.U. exigirá de todo aquêle que estiver ocupando imó9...vel presumidamente pertencente à União, que lhe apresente os documentos e títulos comprobatórios de seus direitos sôbre o mesmo. (...)

Art. 63 - Não exibidos os documentos na forma prevista no art. 61, o S.P.U. declarará irregular a situação do ocupante, e, imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a posse do imóvel esbulhado.

Art. 127 - Os atuais ocupantes de terrenos da União, sem título outorgado por esta, ficam obrigados ao pagamento anual da taxa de ocupação. (...)

Art - 128. Para cobrança da taxa, o S.P.U. fará a inscrição dos ocupantes, ex- officio, ou à vista de declaração dêstes, notificando-os.

No caso de a União estar diante de um imóvel com potencialidade de se enquadrar em seu domínio patrimonial (expectativa de direito), os caminhos legais e razoáveis para a solução do problema são diversos:

Em primeiro lugar, pode a União demarcar definitivamente a zona de marinha e acrescidos, homologando e registrando a LPM-LLM no registro federal e no registro público imobiliário, tornando certa sua presunção de propriedade, o que autorizará a promoção dos cancelamentos e retificações necessários nos  títulos de propriedade conflitantes, total ou parcialmente englobados pela zona de marinha demarcada, na forma do art. 1º e 8-B da Lei 6739-1979, aplicável por analogia:

Art. 1º- A requerimento de pessoa jurídica de direito público ao Corregedor-Geral da Justiça, são declarados inexistentes e cancelados a matrícula e o registro de imóvel rural vinculado a título nulo de pleno direito, ou feitos em desacordo com o art. 221 e seguintes da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, alterada pela Lei nº 6.216, de 30 de junho de 1975. (...)Art. 8-B - Verificado que terras públicas foram objeto de apropriação indevida por quaisquer meios, inclusive decisões judiciais, a União, o Estado, o Distrito Federal ou o Município prejudicado, bem como seus respectivos órgãos ou entidades competentes, poderão, à vista de prova da nulidade  identificada,  requerer  o  cancelamento  da  matrícula  e  do  registro  na  forma prevista nesta Lei, caso não aplicável o procedimento estabelecido no art. 8-A. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 28.8.2001)

Se não existir LPM-LLM homologada, a União poderá notificar, com base em seu domínio eminente, o "ocupante"  para que apresente título de domínio da área, que se existir, fará presunção de propriedade contra a União e  terceiros  até  que  venha  a  ser  cancelado  ou  retificado judicial  ou extrajudicialmente, quando da ulterior demarcação homologada e registrada. Esse entendimento encontra guarida na regra do Art. 1.227e 1245 do Código Civil.

Art. 1227 Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. (...)

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. § 1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a ser havido como dono do imóvel. § 2º  Enquanto  não  se  promover,  por  meio  de  ação  própria,  a  decretação  de invalidade do registro, e o respectivo cancelamento, o adquirente continua a ser havido como dono do imóvel.(grifei)

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Por fim, entendemos que a União só poderá cadastrar provisoriamente o imóvel em área presumida como de marinha se ocupada sem título justo de propriedade.

Na hipótese do ocupante de imóvel costeiro não ter título dominial de imóvel em área de marinha presumida, ou seja, em área não demarcada e homologada, e o cartório de registro de imóveis informar a inexistência de qualquer registro público naquele terreno, estará a União autorizada por lei a arrecadar o imóvel e a declarar a irregularidade da posse valendo-se do poder de polícia decorrente de seu domínio eminente, com base no art. 63 do DL 9760, ficando qualquer ocupação nessa área sujeita às regras do regime ocupacional de maneira provisória até que se finalize a  demarcação e homologação e se produza o título declaratório do direito de propriedade imobiliária da  União.

Art.63  - Não  exibidos  os documentos na forma prevista no art. 61, o S.P.U. declarará  irregular a situação do ocupante, e, imediatamente, providenciará no sentido de recuperar a União a posse do imóvel esbulhado.

O cadastro deverá ser feito com a anotação de que o imóvel se encontra arrecadado pela União e de que a área está em processo de demarcação. Efetivada a demarcação e homologada administrativamente a LPM-LLM, se constatado que a área cadastrada realmente se situa nos limites da LLM, o ato homologatório servirá como título declaratório de propriedade definitiva da União, que poderá promover o registro imobiliário, a fim de se matricular o imóvel contido na zona de marinha.

Se a área estiver fora da zona de marinha, a União poderá promover a regularização fundiária da área nos termos da Lei 9636-98, não como terreno de marinha, mas como próprio nacional urbano ou rural, através de ação discriminatória.

Em resumo, não é outra a razão pela qual o DL 9760-1946, no seus artigos 61 e 63, manda a União notificar aqueles que estiverem em áreas de sua propriedade potencial a apresentarem os títulos de domínio particular: TÍTULO EMANADO DO REGISTRO PÚBLICO EM NOME DE TERCEIRO ELIDE A PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE PÚBLICA FEDERAL, ATÉ PROVA DESCONSTITUTIVA EM CONTRÁRIO!

Observo que  a Súmula 496 do STJ diz que os registros de propriedade particular de imóveis situados em terrenos de marinha não são oponíveis à União. Ora, apenas a demarcação HOMOLOGADA pode definir, nos termos da própria Súmula e das regras de direito administrativose a unidade imobiliária realmente está ou não situada em zona de marinha, e se títulos dominiais validamente atribuídos a terceiros são de fato inválidos.

Logo, títulos de propriedade particular de imóveis em zona de marinha NÃO SÃO OPONÍVEIS à União se, e  somente se ocorrerem as duas situações:

a) ela tiver homologado sua demarcação;

 b) não tiver havido prévio destaque legal do imóvel do domínio público, nos termos das regras de direito patrimonial da União.

título dominial da União, como já ditotem natureza declaratória de propriedade patrimonial pública com eficácia ex tunc, e ao mesmo tempo, desconstitutiva de títulos particulares contraditórios não validamente atribuídos. Esse título será documento hábil para encaminhamento ao registro público imobiliário para fins de abertura de matrícula das unidades imobiliárias abrangidas no trecho, devidamente acompanhado das plantas e memoriais descritivos.

O mesmo título servirá para a União proceder à retificação, bloqueio ou pedido de cancelamento dos títulos de terceiros contraditórios com seu direito, particulares ou de outro ente público, desde que não validamente atribuídos aos últimos. O procedimento  de acertamento do registro público será conduzido pelo próprio oficial de registro imobiliário e seu juiz corregedor, nos termos das regras de retificação e cancelamento de registro definidas na Lei 6015-1973 e da Lei 6739-1979”.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. As formas de utilização do terreno de marinha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5156, 13 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59537. Acesso em: 29 mar. 2024.

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