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A questão do convencimento judicial

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22/11/2004 às 00:00
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7 Objeções à tese da verossimilhança preponderante

Não há como negar que o juiz não pode apreender a essência da verdade e que a prova não pode ser pensada como meio capaz de reconstruir os fatos da causa. Isso não significa, entretanto, conforme já dito, que o juiz não deva procurar se convencer a respeito da verdade.

Ou melhor, não é porque a verdade do processo é construída através da participação das partes e do próprio juiz, e, nesse sentido, não pode ser confundida com a "verdade" dos fatos - que é inatingível -, que o juiz pode definir o conflito de interesses com base na tese da verossimilhança preponderante, como pretendia a doutrina sueca e parte da doutrina alemã. O juiz, ainda que não possa buscar, na perspectiva gnoseológica, a verdade dos fatos – até porque essa não pode sequer ser a sua intenção -, evidentemente não pode abrir mão da necessidade de se convencer para julgar o mérito.

Aliás, mesmo aqueles que desejam que o juiz dê ganho de causa à parte cujo direito é mais verossímil, encontram um obstáculo insuperável na sustentação dessa teoria. É que não é possível medir, em termos matemáticos, a graduação de uma prova ou de um conjunto de provas, o que impediria a devida justificação da "verossimilhança preponderante". É preciso que exista algo externo à prova para justificar a redução da sua exigência.

De qualquer forma, não há como negar a obviedade de que o juiz, para julgar adequadamente, deve buscar se convencer da verdade [24]. Ora, supor que o juiz, em regra, deve proferir a sentença com base na verossimilhança que preponderar, é simplesmente imaginar que o juiz não precisa se convencer para julgar.

Não há dúvida de que a dificuldade de prova e a natureza do direito material podem justificar a redução das exigências de prova no caso concreto, dando ao juiz a possibilidade de se contentar com a verossimilhança. Mas, isso somente pode ser admissível em casos excepcionais, e não como regra.

A verossimilhança somente pode ser vista como regra no chamado juízo sumário, ou melhor, quando o juiz deve decidir antes de dar às partes a devida oportunidade de participação. É certo que a tutela antecipatória se funda no princípio da probabilidade. Mas, isso não é decorrência da dificuldade de prova ou da natureza do direito material discutido, mas sim uma limitação natural derivada da postecipação do contraditório, isto é, de uma limitação à participação imposta pela própria lei processual.


8 O convencimento judicial e a regra do ônus da prova

Como visto no último item, em casos excepcionais o juiz pode julgar, fundado na dificuldade da prova e nas particularidades do direito material, com base em verossimilhança.

Mas, por enquanto é oportuno tratar da questão relativa ao julgamento com base na regra do ônus da prova, ou mais precisamente, da situação em que o juiz, por não ter se convencido de que o autor provou o fato constitutivo, proferiu a sentença afirmando que a regra do ônus da prova não foi observada.

É claro que o juiz, quando não convencido pela prova das partes, pode determinar prova de ofício. Acontece que essa possibilidade não é suficiente para permitir elucidar todos os casos concretos, especialmente porque, na maioria das vezes, não há outras provas a produzir ou o juiz desconhece os meios de prova que efetivamente podem auxiliar. Portanto, a tão decantada tese de que o juiz deve determinar prova de ofício deve ser vista como uma idéia simplista e ingênua caso tenha a pretensão de se constituir em uma alternativa ao julgamento baseado na regra do ônus da prova.

Em alguns casos, o juiz pode estar em estado de dúvida no momento de sentenciar. Nessas hipóteses, se a dificuldade da prova e as características do direito material em litígio não justificarem a chamada "redução do módulo da prova" ou a inversão do ônus da prova, não resta outra saída ao juiz senão julgar improcedente o pedido com base na regra do ônus da prova.

Portanto, além de ser falsa a suposição de que o juiz sempre julga depois de "ter descoberto a verdade", é impossível afirmar que o juiz pode deixar de julgar por não estar convencido. No máximo, o que alguém poderia dizer é que a sentença, quando lastreada em dúvida, não produz coisa julgada material, quando se teria uma espécie de coisa julgada "secundum eventum probationis". Porém, a aceitação dessa tese eliminaria a própria razão de ser da coisa julgada material, que é, como se sabe há muito, a de impedir a eternização dos conflitos. Dizer que uma sentença, que trata do litígio, não se reveste da autoridade da coisa julgada material, é simplesmente afirmar que ela não tem valor algum. Ou mais precisamente: retirar a coisa julgada da sentença é o mesmo que concluir que o juiz está autorizado a não julgar [25].

SALAVERRÍA, em excelente obra sobre a motivação das sentenças, lembra que se é possível esperar até o final dos tempos a solução definitiva do debate a respeito do local em que nasceu Colombo, um conflito obviamente não pode ser colocado no congelador até que surja uma informação capaz de permitir a sua solução à distância de qualquer dúvida. Conforme explica, os assuntos submetidos ao juiz – como a maioria dos concernentes à vida prática – devem ser resolvidos imperiosamente em um prazo de tempo; "con pruebas si las hay bastantes o, si no, resignadamente con presunciones" [26].

Não há mais como supor que a decisão jurisdicional encontre fundamento na verdade, pois é óbvio que não existe uma verdade, mas tantas versões de verdade quantas forem necessárias. Cada parte tem a sua, e o juiz, para proferir a decisão, elabora a própria - que pode ser a versão inteira ou parcial de uma das partes.

É certo que o juiz deve buscar se convencer da verdade. Mas, essa convicção se faz com base na argumentação ou nas provas trazidas ao processo, inclusive as determinadas de ofício, o que gera uma verdade construída no processo. O que legitima a decisão jurisdicional ou a coisa julgada é a devida participação das partes e do juiz, ou melhor, as próprias regras que criam as balizas para a construção da verdade processual.

Não se confunda tudo isso com a possibilidade de a parte propor ação rescisória quando, após a sentença, obtiver documento novo, "cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável" (art. 485, VII, CPC). Essa hipótese, como é evidente, não abre ensejo para a simples rediscussão do litígio, uma vez que admite a rescisão da sentença que produziu coisa julgada material, e isso quando a parte puder apresentar documento cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, e capaz, por si só, de lhe assegurar resultado favorável.

Embora o art. 485, VII do CPC fale em documento, cuja existência a parte ignorava ou de que não pôde fazer uso, é correto interpretar documento como abrangente de qualquer meio técnico não existente à época em que o conflito foi discutido, e assim compreender o caso excepcional e exemplar da investigação de paternidade. Com efeito, não há como deixar de observar que, quando se pensa em documento novo, supõe-se documento existente à época da ação, mas que não pôde ser utilizado, e que esse raciocínio não pode ser empregado diante do DNA, pois esse não constitui documento ou algo que existia na época da ação. O exame de DNA é um meio técnico novo para se pôr em evidência um fato que foi afirmado na ação, ou uma prova pericial que não pôde ser realizada para demonstrar o fato afirmado, por consistente em técnica que ainda não podia ser utilizada [27].

Frise-se que a possibilidade de ação rescisória com base em documento novo nada tem a ver com a suposição de que a coisa julgada é legitimada pela verdade. A coisa julgada encontra legitimação, como já foi dito, na adequada participação das partes e do juiz e, assim, nas próprias regras que tornam legítima a construção da verdade processual. Quando se entende que a participação, diante da não possibilidade do uso de um documento ou meio técnico, foi prejudicada, confere-se à parte a possibilidade de propor ação rescisória. É pouco mais que evidente que tal possibilidade não se fundamenta na idéia de que a verdade ainda não foi encontrada, até porque a ação rescisória pode ser julgada improcedente. A ação rescisória com base em documento novo, que é limitada no tempo - como qualquer outra rescisória - em razão da necessidade da estabilização dos conflitos, relaciona-se com a necessidade de adequada participação das partes no processo.


9 Os direitos difusos e coletivos e as hipóteses em que a lei afirma que a sentença de improcedência por insuficiência de provas não gera coisa julgada material

É interessante abordar as hipóteses em que a lei, tratando de direitos difusos e coletivos, afirma que a sentença de improcedência por insuficiência de provas não gera coisa julgada material.

Segundo o art. 1º da Lei da Ação Popular, "qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio ou da receita ânua de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos". Considerando que a ação popular diz respeito a direitos difusos, e que uma sentença de improcedência, fruto da participação de um só cidadão, poderia prejudicar a todos, e até mesmo resultar de uma deficiente – e quem sabe proposital – deficiência de instrução do processo com provas, concluiu o art. 18 dessa mesma lei: "a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".

Na Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), que também trata de direitos difusos e coletivos (art. 1º), o art. 16 possui a mesma inspiração: "a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova".

O Código de Defesa do Consumidor, também ao tratar dos direitos difusos e coletivos, praticamente repete a idéia no art. 103, I e II: "Nas ações coletivas, de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81".

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Todos esses dispositivos têm o mesmo desejo: possibilitar a discussão do litígio que, em princípio, seria solucionado contrariamente aos direitos difusos e coletivos em razão de insuficiência de provas. Essa "insuficiência de provas" seria o sinal de que a parte que foi a juízo para defender os direitos difusos e coletivos poderia ter atuado de modo deficiente ou, o que é pior, de maneira intencionalmente precária.

Isso evidencia, em primeiro lugar, que a sentença de improcedência por insuficiência de provas nada tem a ver com a sentença própria ao mandado de segurança, em que o juiz apenas julga o mérito quando tem prova documental. No caso de direitos difusos e coletivos não há restrição ao julgamento do mérito pelo motivo de não existir prova documental, mas sim limitação à coisa julgada por ter a sentença de improcedência baseado-se em provas insuficientes.

Quando não há prova documental no mandado de segurança, o juiz não julga o mérito, mas apenas afirma que a via do mandado de segurança não é adequada. Mas, nas ações relativas a direitos difusos e coletivos, a insuficiência de provas obriga o juiz a proferir uma sentença de improcedência.

A razão dessa diferença é simples: no mandado de segurança, a inexistência de prova documental faz ver que a via processual é inadequada, enquanto que, nas demandas coletivas, a insuficiência de provas tem apenas relação com a possibilidade de instrução deficiente da ação adequada. Ou melhor: no primeiro caso não há a espécie probatória exigida, o que impede o julgamento do mérito – seja favorável ou desfavorável ao autor -, e, no segundo, a insuficiência de provas gera o julgamento de improcedência.

Assim, a real diferença entre as hipóteses está em que, no mandado de segurança, não existe cognição exauriente quando não há prova documental (cognição exauriente "secundum eventum probationis"), ao passo que, nas demandas coletivas, a sentença é proferida - e, assim, a cognição é exauriente -, existindo somente uma limitação à formação da coisa julgada material.

Lembre-se que o juiz pode produzir prova de ofício, especialmente nas demandas coletivas, dada a relevância do direito material em litígio e o fato de apenas um dos legitimados à sua defesa estar em juízo. Assim, a insuficiência de provas somente pode ser o resultado de um processo em que se deu às partes e ao juiz a devida oportunidade de participação. O fato de o juiz, após tudo isso, não ter formado a sua convicção a respeito da verdade, deve viabilizar um julgamento de procedência - com base na redução das exigências de prova - ou um julgamento de improcedência - com base na regra do ônus da prova.

Para se admitir que o julgamento com base em insuficiência de provas é um julgamento fundado em cognição exauriente "secundum eventum probationis", teríamos que concluir que o juiz, no caso de insuficiência de provas, não deve julgar, o que é absolutamente contrário aos fundamentos do direito processual civil e à própria letra das normas antes referidas, que falam em improcedência.

Ou, ainda, admitir que a sentença de improcedência somente abre oportunidade para ação baseada em "nova prova" quando afirmar expressamente a insuficiência de provas. Perceba-se, porém, que então não haveria razão para distinguir a sentença baseada em insuficiência de provas e o não-julgamento, pois a improcedência, atrelada pelo juiz à sentença, seria um qualificativo sem valor algum. O juiz estaria dizendo que proferiu sentença de improcedência para esconder que não julgou por não ter provas.

Acontece que o juiz pode estar convencido, diante das provas produzidas, que o autor não tem razão, e assim entendê-las como suficientes. Nesse caso, se outro legitimado possuir "nova prova", estará proibido de propor nova ação? Como é evidente, tal proibição estaria negando as próprias razões das exceções legais – previstas nos artigos antes referidos - à coisa julgada material. Recorde-se – apenas para evitar mal entendidos - que se o juiz souber que existe uma prova que não foi utilizada pela parte, deve determinar a sua produção de ofício, o que obriga à distinção entre a impossibilidade de o juiz prever uma "nova prova" e a possibilidade dele determinar a produção de ofício de prova - que ele obviamente conhece - não utilizada pela parte.

Se é possível pretender rediscutir a demanda coletiva com base em "nova prova", para se evitar que um direito difuso ou coletivo seja prejudicado pela atuação deficiente ou maliciosa de um legitimado, não há qualquer motivo para entender que "nova prova" é somente aquela que não existia, que era desconhecida ou que não pôde ser utilizada pelo autor da demanda anterior. Considerada a própria razão de ser da limitação à coisa julgada, não há como deixar de concluir que, toda e qualquer prova não produzida e valorada no processo encerrado, pode ser qualificada como "nova prova".

Mas, se é assim, cabe esclarecer que essa "nova prova" deve ser indicada na petição inicial da nova demanda coletiva, dando-se ao juiz, com isso, apenas a possibilidade de saber se tal prova não foi valorada anteriormente. É lógico que, ao lado dessa "nova prova", o juiz deverá considerar as provas que já foram valoradas, pois não se nega a possibilidade do aproveitamento da prova já produzida, mas apenas a necessidade de que, ao lado dessas, seja indicada e produzida uma "nova prova" [28].

Como se vê, toda sentença que se baseia em fato que deixou de ser devidamente provado para conduzir à procedência da demanda coletiva pode ser revista em ação posterior fundada em "nova prova". Por isso não produz coisa julgada material e, assim, ainda que não proposta nova ação, não merece a mesma credibilidade da sentença por ela acobertada. Isso quer dizer, basicamente, que ainda que não seja proposta ação fundada em "nova prova", a sentença de improcedência, nessas circunstâncias – ainda que nada tenha dito sobre a insuficiência de provas -, pode ser discutida por qualquer legitimado, logicamente com base em "nova prova", em qualquer outra ação em que o réu na demanda coletiva pretenda utilizá-la.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marinoni

professor titular de Direito Processual Civil dos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UFPR, mestre e doutor em Direito pela PUC/SP, pós-doutor pela Universidade de Milão, advogado em Curitiba, ex-procurador da República

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINONI, Luiz Guilherme. A questão do convencimento judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 503, 22 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5966. Acesso em: 18 abr. 2024.

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