4. Dos efeitos jurídicos da desconsideração da personalidade jurídica
O principal efeito da incidência da teoria desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar é a arrecadação de bens do administrador, o qual comporá a massa falida objetiva, reforçando a possibilidade de mais credores terem seu crédito satisfeito, saneando o mercado pela volta de capital.
Contudo, este entendimento quanto a composição de massa única não é pacífico. Adalberto Simão Filho cogitava a possibilidade de, na forma do art. 71 da antiga Lei de Falências, formarem-se duas massas patrimoniais: uma formada pelos bens arrecadados do administrador em razão da desconsideração e outra comum, composta pelos bens arrecadados do falido.
Segundo o autor, em razão da possibilidade de obter-se a desconsideração da personalidade jurídica apenas pelo fato da falência, conforme dispõe o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, somente os credores consumidores concorreriam a massa decorrente da desconsideração:
“Se superação se deu tão só pelo fato da falência, a pedido de um credor-consumidor, somente este poderia ser beneficiado na participação ao rateio desta nova massa que se abre.
Por outro lado, se a superação se deu não por força do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, mas em virtude de fatos que provaram a necessidade absoluta desta situação jurídica, todos os credores deveriam participar neste novo rateio, respeitando-se as suas preferências e privilégios originários, inclusive no que tange ao credor consumidor cuja preferência nesta nova massa advém da lei como mencionado.” [2]
Com o devido respeito ao autor, embora exista o art. 4° do Código de Defesa do Consumidor que impõe a proteção ao consumidor nas relações de consumo, não existe expressa previsão legal quanto ao eventual privilégio do crédito do consumidor em execuções coletivas. Sendo assim, embora seja um paradoxo, tal crédito deve ser tomado como quirografário.
Desta forma, não existe razão para privilegiar-se o consumidor num processo falimentar.
Neste sentido, somente haverá a desconsideração se ocorrer fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial em abuso da personalidade jurídica, independentemente da natureza do crédito.
Assim, não havendo créditos privilegiados, não há porque se ter duas massas distintas. Principalmente, porque esta situação é amplamente contrária ao princípio do pars conditio creditorum. Talvez por isto mesmo que as disposições do art. 71 do Decreto-lei 7.661/45 não foram repetidas pela Lei de Recuperação Judicial e Falência.
Além disso, como já ressaltado, não se trata de bens arrecadados em razão de responsabilidade solidária, mas em razão da desconsideração da personalidade jurídica.
Outro destaque importante a ser feito é o fato de que a incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica não significa a extensão da falência ao administrador, salvo se este era sócio com responsabilidade ilimitada, quando, nos termos do art. 81 da Lei de Recuperação Judicial e Falência, terá sua falência decretada juntamente com a sociedade empresária.
Assim, não há o que se falar em falência do administrador, posto que não se cogitou quanto a sua insolvência ou prática de qualquer dos atos previstos no art. 94 da Lei de Recuperação Judicial e Falência. Este apenas praticou uma fraude, um abuso de direito ou deu causa a uma confusão patrimonial, mas não praticou quaisquer dos atos que causem sua falência.
Somente seria caso de estender-se os efeitos da falência se todos os bens de empresa controlada fossem arrecadados em razão da desconsideração. Neste caso, a promoção de processo falimentar próprio é essencial, respeitando-se o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa e todos os demais direitos fundamentais e demais previstos na Lei 11.101/05 e demais legislações pertinentes.
Este é o entendimento apresentado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, do qual se pode citar:
Ementa oficial: “Falência – Extensão de seus efeitos a outra empresa – Providência que, implicando na desconsideração da personalidade jurídica da atingida, pressupõe prova segura a indicar a comunhão das empresas – Ônus da prova que não compete a esta, nem a seus sócios, mas sim a quem tenha interesse na extensão, a partir do próprio síndico da falida, sem prejuízo da propositura de revocatória – Agravo de empresa a que se estendeu falência de outra provido, para tornar insubsistente sua quebra – É capital não olvidar que a decretação de falência se faz em processo próprio, garantido o contraditório e a plena defesa daquele cuja quebra está sendo pedida. Assim, o estender os efeitos da falência de uma empresa a outra, o que vale colocá-la como também falida, sem processo exclusivo, é situação excepcional.” (TJSP, 5ª Câm., A.I. N° 97.946-4. Rel. Marco César, j. 04.03.1999, v.u.)
Deve-se ficar claro que a teoria de desconsideração da personalidade jurídica não significa o fim da pessoa jurídica ou mesmo o fim da autonomia patrimonial da mesma, mas sim uma solução para os problemas que poderiam realmente levar as estas conseqüências, se não houvesse um meio para coibir os abusos sobre a personalidade jurídica. A disregard doctrine, se bem aplicada, é esta solução, sendo, portanto, uma inovação fundamental para o pleno desenvolvimento econômico e principalmente, da Justiça.
Conclusão
A pessoa jurídica é umas das criações humanas mais importantes no que concerne não apenas aos fins empresariais, mas principalmente aos fins sociais. A distinção e a autonomia patrimonial entre a sociedade e seus componentes têm se mostrado essencial para a evolução econômica, daí ter este princípio protegido por diversos ordenamentos jurídicos.
Contudo, a personalidade jurídica não pode ser vista como uma concessão legal absoluta. Diante da fraude, do abuso de direito e da confusão patrimonial, o juiz, em seu cauteloso arbítrio, pode desconsiderar a personalidade jurídica no caso concreto, responsabilizando o administrador que ludibria o credor sob o manto protetor da pessoa jurídica.
Importante ressaltar que a desconsideração da personalidade jurídica visa a proteção das relações que envolvam o uso abusivo da pessoa jurídica. Os atos contrários à lei praticados pelo administrador são punidos por previsões legais específicas, sendo que caberá a disregard doctrine (termo inglês originário da teoria da desconsideração) quando o ilícito ocorrer no uso abusivo da pessoa jurídica.
Especificamente em relação ao processo falimentar, a teoria da desconsideração possui algumas peculiariedades interessantes. Diante da discussão sobre a necessidade de ação autônoma cognitiva para a aplicação da disregad doctrine ou pela simples utilização da forma incidental, a Lei de Recuperação Judicial e Falência possui previsões legais eficazes tanto para quem adota a primeira posição, através da previsão legal do art. 82, como para quem adota a segunda posição, devido à amplitude das informações e procedimentos do processo falimentar, como vem sendo defendido pela jurisprudência.
Independentemente da posição adotada, o mais importante é proporcionar a garantia ao princípio constitucional do devido processo legal, através da ampla defesa e do contraditório, sob pena de ilegalidade da aplicação da teoria da desconsideração, mesmo com base apenas no art. 5° da Lei de Introdução ao Código Civil.
Dentro deste contexto, deve-se perquirir quanto à legitimidade para a desconsideração. Esta exceção pode ser promovida pelo administrador judicial, que tem o dever de promover a obtenção da desconsideração na composição do ativo da massa falida ou pelo membro do Ministério Público que atue no processo falimentar, desde que haja interesse público.
Devido ao princípio da coisa julgada, a doutrina discute sobre a legitimidade do administrador em figurar no pólo passivo da demanda. Especificamente no processo falimentar, não é necessário utilizar-se da figura do litisconsórcio eventual ou alternativo para a efetivação da teoria da desconsideração, posto que administradores são legitimados na falência em razão da própria natureza do processo.
Assim como tem-se a legitimidade do administrador na demanda desconsideratória, o juízo competente não poderia deixar de ser o juízo universal da falência, que, em regra, concentra os litígios que envolvem a massa falida.
O pedido da aplicação da teoria da desconsideração deve-se basear em fatos que denunciem a presença de pressupostos ensejadores desta exceção, posto que este remédio processual não se confunde com as ações de responsabilidade, como já dito acima. Além disso, não deve buscar a arrecadação de todos os bens do administrador, mas somente os suficientes para abranger os lucros obtidos pelo mesmo na relação jurídica envolvida pela fraude, abuso de direito ou confusão patrimonial.
Entre os efeitos da incidência da disregard doctrine, a mais importante é a arrecadação dos bens do administrador, que comporá a massa falida única, em respeito ao princípio do pars conditio creditorum.
Deve-se destacar, no entanto, que, desta forma, não se estende os efeitos da falência ao administrador, posto que somente é possível decretá-la mediante processo autônomo, com base no art. 94 da Lei de Recuperação Judicial e Falência.
Este efeito é importante para deixar bem claro que a teoria da desconsideração, mesmo no processo falimentar, não é um instrumento para desapropriar o administrador, tampouco para obter sua responsabilização pelas obrigações da empresa, sob pena de encaminhar-se para o fim da personalidade jurídica da sociedade.
Trata-se de um remédio para o uso abusivo da pessoa jurídica, pelo qual se busca responsabilizar quem realmente obrigou-se no negócio, superando a aparência enganosa e preservando-se a lealdade nas relações jurídicas empresarias, tão ausente em nossos dias.
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Notas
[1] COELHO, Fábio Ulhoa, op. cit., p. 54.
[2] SIMÃO, Adalberto Filho, op. cit., p. 22.