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A desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar

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Resumo:


  • A desconsideração da personalidade jurídica é um remédio processual para responsabilizar o administrador pelas obrigações assumidas pela pessoa jurídica.

  • A aplicação distorcida da teoria da desconsideração pode ter efeitos danosos no processo falimentar.

  • A teoria da desconsideração da personalidade jurídica é essencial para preservar a justiça no processo falimentar e a prosperidade das atividades empresariais.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A desconsideração da personalidade jurídica tem sido utilizada de forma distorcida pelos tribunais, o que possui efeitos especialmente danosos no processo falimentar.

Resumo: A desconsideração da personalidade jurídica é um remédio processual pelo qual se busca responsabilizar o administrador pelas obrigações por ele assumidas, embora aparentem ser da pessoa jurídica. Freqüentemente, esta inovação tem sido utilizada de forma distorcida pelos Tribunais, o que possui efeitos especialmente danosos no processo falimentar. A disregard doctrine, como é conhecida à teoria da desconsideração, é um instrumento de preservação da pessoa jurídica, fundamental para a prosperidade das atividades empresariais, sendo ainda um meio de preservar-se a Justiça no processo falimentar.

Palavras chaves: Pessoa jurídica. Personalidade jurídica. Responsabilidade. Administrador.  Desconsideração. Processo falimentar.

Sumário: 1.Legitimidade. 2. Juízo competente. 3.Limites do pedido. 4.Dos efeitos jurídicos da desconsideração da personalidade jurídica.


Introdução

A pessoa jurídica é uma das criações mais importantes, não só para a atividade empresarial, como para a própria prosperidade social. Para sua efetiva eficácia a Lei lhe atribui personalidade jurídica. Daí, ter-se o princípio pelo qual a sociedade possui existência distinta de seus componentes ou constituintes.

Por ser um ente incompleto, a pessoa jurídica depende das pessoas físicas que tomem decisões em seu lugar, para a efetivação das relações jurídicas que lhe são necessárias. Para tanto, atribui-lhes poderes suficientes para esta gerência, numa relação de confiança e responsabilidade.

Contudo, como somente o ser humano é detentor de potencialidade para a autonomia completa, este freqüentemente busca benefícios além dos que lhe foram outorgados pela pessoa jurídica, contrariando os princípios jurídicos que cercam a existência de qualquer sociedade.

Diante destes fatos, a Lei prescreve sanções para os administradores que praticam ilícitos no exercício de seus poderes sociais.

Contudo, a prática trouxe situações em que este gestor pratica atos plenamente lícitos, pois não contrariam a Lei, mas que acabam por trazer injustiças na solução de conflitos, posto que a pessoa jurídica é responsabilizada por obrigações que não são suas, prejudicando terceiros de boa-fé que, somente pela aparência, com ela se relacionaram.

Diante desta situação, a doutrina vem construindo uma teoria que permite ao juiz, dentro de seu cauteloso arbítrio e diante de certos pressupostos, desconsiderar a existência da pessoa jurídica, alcançando aqueles que escapam de suas responsabilidades através do manto protetor da personalidade jurídica da sociedade. Trata-se da teoria da desconsideração da personalidade jurídica ou, como originalmente, a disregard of legal entity doctrine.

Esta teoria não tem sido adequadamente recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo diversas vezes confundida com a responsabilização do administrador por atos ilícitos. Isto tem ocorrido tanto na legislação quanto na jurisprudência nacional.

Esta aplicação equivocada é especialmente prejudicial quando uma falência está envolvida, dada a gravidade das relações jurídicas que cercam este processo jurisdicional.

Este artigo traz um singelo estudo sobre esta teoria tão atuante nos tribunais brasileiros, posto que é freqüentemente convocada em processos executivos. Restringiu-se, no entanto, às sociedades anônimas e às sociedades por quotas de responsabilidade limitada, pois, além de ser as modalidades mais utilizadas pelos empresários nacionais, possuem limitação da responsabilidade dos mesmos ao capital social integralizado. Ante esta limitação da responsabilidade, incide a teoria da desconsideração.


1. Legitimidade

A falência é um processo executório coletivo, no qual vários credores, dentro do princípio do pars conditio creditorum, concorrem na satisfação de seu crédito. Contudo, a atuação dos credores alterou-se radicalmente com a vinda da Lei de Recuperação Judicial e Falência.

Isto porque a prática demonstrou que os poderes recebidos pelos credores eram demasiadamente amplos, sendo um dos motivos da lentidão do processo falimentar.

O legislador, na Lei de Recuperação Judicial e Falência, viu por bem restringir a atuação dos credores no processo falimentar.

Pela nova legislação, a atuação dos credores normalmente é de forma coletiva, seja através do Comitê de Credores, seja através da Assembléia Geral.

Somente é possível a atuação individual dos credores em hipóteses específicas da lei, tais como para impugnação de habilitação de crédito, manifestação sobre pedido de restituição de bens e pedido de destituição do administrador judicial ou membro do Comitê de Credores.

Além disso, ambos os colegiados atuam como fiscais ou como órgão de deliberação da atuação do administrador judicial, que substituiu o antigo síndico da falência, sendo que este possui poderes para demandar em juízo na busca da responsabilização do falido e composição da massa falida. 

Logo, o administrador judicial possui legitimidade para pleitear a desconsideração, posto que as alíneas “i” e “o” do inciso III, do artigo 22, prescrevem sua obrigação de “praticar os atos necessários à realização do ativo e ao pagamento dos credores” e “requerer todas as medidas e diligências que forem necessárias para o cumprimento desta Lei, a proteção da massa ou a eficiência da administração;”

Desta forma, é sua obrigação, ante a presença dos critérios para a aplicação da teoria da desconsideração, pleitear sua incidência, sob pena de destituição e responsabilização, nos termos dos arts. 31 e 32 da Lei de Falências.

Em relação à legitimidade do Ministério Público, a antiga Lei da Falência, nos termos do seu artigo 210, dava legitimidade para o representante o Parquet pleitear a incidência da teoria da desconsideração, posto que o dispositivo legal lhe permitia, dentro dos interesses da Justiça, requerer tudo quanto julgue pertinente ao sucesso da falência e a observação da Lei.

Este dispositivo não foi repetido pela Lei de Recuperação Judicial e Falência, o que acabou trazendo insegurança quanto a legitimidade do representante do Ministério Público para pleitear a desconsideração.

Isto porque o Ministério Púbico, tal qual na lei anterior, possui ampla atuação no processo falimentar, podendo, entre outras coisas, pleitear a destituição do administrador judicial ou de membro do Comitê de Credores, impugnar a habilitação de credores, manifestar-se nos pedidos de restituição e interpor qualquer recurso previsto na lei.

Ocorre que, o art. 210 da antiga Lei de Falências apenas refletia uma das funções institucionais do Ministério Público, que é a defesa da Ordem Jurídica, tal qual determina o art. 127, caput, da Constituição Federal.  Aliás, esta é exatamente a razão da ampla atuação do Ministério Público no processo falimentar, vez que este freqüentemente em muito atinge a Sociedade, cuja defesa cabe precipuamente aos membros do Parquet.

Logo, não há porque imputar de ilegítima, a atuação do membro do Ministério Público que, diante de clara hipótese de incidência da teoria da desconsideração, pleiteia sua incidência.

Outra discussão refere-se à possibilidade de o juiz decretar a desconsideração de ofício.

O artigo 28 da Lei 8.078/90, o Código de Defesa do Consumidor, que prevê a incidência da teoria da desconsideração, é interpretado como uma norma direcionada ao juiz da causa consumerista, o qual poderá desconsiderar a pessoa jurídica no caso concreto, de ofício, já que todos os pleitos relativos às relações de consumo possuem interesse público.

Por sua vez, o art. 50 do Código Civil, tratando da mesma matéria, é claro em dispor que o pleito para a desconsideração é de iniciativa única e exclusiva da parte, abrindo apenas exceção ao Ministério Público, quando já estiver atuando no processo ao menos como fiscal da lei.

Especificamente quanto ao processo falimentar, para aqueles que seguem o entendimento pelo qual seja necessário um processo de conhecimento, é impossível o deferimento da desconsideração de ofício.

Contudo, se levado em consideração o inciso VII do art. 99 da Nova Lei de Falências, que repetiu o inciso VI do parágrafo único do art. 14 da antiga Lei de Falências, o qual prescreve como dever do juiz providenciar todas as diligências convenientes ao interesse da massa, entende-se que, com fundamento em provas, que sustentem a ocorrência da fraude, do abuso de direito ou da confusão patrimonial, o juiz presidente da falência poderá decretar a desconsideração quando da sentença de quebra ou convolação de uma recuperação judicial ou extrajudicial em falência.

Entretanto, tal possibilidade deve ser vista com cautela, já que diante da excepcionalidade e complexidade da medida, a aplicação da teoria da desconsideração não deve ser deferida de ofício em qualquer hipótese, sob pena de incidir em claro desrespeito ao contraditório e à ampla defesa, principalmente se se tratar de fraude, já que a fraude não se presume, exigindo o devido processo legal, principalmente com o advento do Novo Código Civil, que possui como um de seus princípios basilares, o da Boa-fé.

Referentemente ao polo passivo da demanda, muito se discute a respeito da legalidade de se promover qualquer medida executória contra o administrador da sociedade primeiramente imputada pela obrigação exequenta. Isto acontece porque somente se perquire da desconsideração da personalidade jurídica na fase de execução, sendo que o administrador é responsabilizado sem ter sido parte do processo de conhecimento.

Sobre este aspecto, Fábio Ulhoa Coelho apresenta seu entendimento no seguinte sentido:

“Em outros termos, quem pretende imputar ao sócio ou sócios de uma sociedade empresária a responsabilidade por ato social, em virtude de fraude na manipulação da autonomia da pessoa jurídica, não deve demandar esta última, mas a pessoa ou pessoas que quer ver responsabilizada.” [1]

A doutrina tem solucionado esta questão trazendo à tona a figura do litisconsórcio eventual ou alternativo, comum nas ações em que não se sabe ao certo quem é o autor a quem será imputada a responsabilidade. Sendo um exonerado da obrigação de se pagar, pode ser condenado o outro.

Sendo assim, os administradores, diretores e sócios que possuem obrigações no processo falimentar e havendo a constatação de que os mesmos utilizaram da pessoa jurídica para fins pessoais, são partes legítimas para compor a relação jurídica processual no pólo passivo na demanda do pleito da desconsideração na falência.


2. Juízo competente

A competência do juízo falimentar, nos termos do artigo 3° da Lei de Falências, é o do local onde o empresário possui seu principal estabelecimento empresarial.

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Na vigência da antiga Lei de Falências, seu art. 7°, §2° estabelecia o juízo universal da falência nos seguintes termos:

“O juízo da falência é indivisível e competente para todas as ações e reclamações sobre bens, interesses e negócios da massa, as quais serão processadas na forma determinada nesta lei.”

A Lei de Recuperação Judicial e Falência manteve a universalidade do juízo falimentar ao reproduzir em seu art. 76, as disposições do citado art.7°, § 2° da antiga lei.

Ante a unidade do juízo, evita-se a dispersão excessiva dos interesses que envolviam a massa falida, submetendo as principais decisões do processo falimentar ao juiz que preside o processo.

Assim, com a declaração da falência, surge o chamado juízo universal da falência, que possui força atrativa e competência para todas as ações sobre bens, interesses e negócios da massa falida.

Sendo assim, não há como estabelecer outro juízo competente que não o juízo universal da falência para processar o pleito da desconsideração da personalidade jurídica que envolve direitos ou interesses da massa falida, ainda que a aplicação da disregard doctrine seja feita em ação autônoma.

Contudo, esta alteração não muda a competência mesmo para eventual ação autônoma para a incidência da desconsideração, posto que esta sempre será conexa ao processo falimentar, vez que comum o objeto e a causa de pedir em relação ao processo falimentar em si.

Afinal, desde a vigência da antiga Lei de Falência, envolvendo principalmente direitos relativos a crédito, há a universalidade do juízo, que mostra-se essencial para a satisfação do princípio pars conditio creditorum.


3. Limites do pedido

Mesmo considerando que a única possibilidade para se obter a desconsideração da personalidade jurídica seja por uma ação autônoma, esta apenas deverá assemelhar-se à ação de responsabilidade prevista no art. 82 da Lei de Recuperação Judicial e Falência, posto que esta existe unicamente para se apurar a responsabilidade dos administradores.

O art. 82 da Lei de Recuperação Judicial e Falência manteve a busca da responsabilização dos administradores, fazendo referência à ação indenizatória do Código de Processo Civil.

Sendo assim, a responsabilização do administrador, na forma do art. 82 da Lei de Recuperação Judicial e Falência, não se confunde com a ação para obtenção da desconsideração da personalidade jurídica, mas apenas se assemelham, como já exposto, pois ambas, por razões distintas, tratam da responsabilização do administrador.

Desta forma, é essencial que não se trate de responsabilização do administrador por ações ou omissões em razão da sociedade e que venham a prejudicá-la, mas de atos em favor do administrador e na aparência, praticados pela sociedade, para que seja aplicada a teoria da desconsideração.

Assim, havendo dúvida sobre se é caso de responsabilização ou de desconsideração, o mais apropriado é promover-se a ação de responsabilidade prevista no art. 82 da Lei de Recuperação Judicial e Falência para se apurar a ocorrência de ilícitos societários ou de pressupostos da desconsideração, posto que esta ação é mais abrangente.

Uma vez que haja indícios para a aplicação da teoria da desconsideração, o legitimado para seu pedido deverá delimitar o alcance da superação, não apenas no que se refere ao valor a ser arrecadado entre os bens do administrador, como também pelo fundamento de seu pedido.

Ao final, caberá ao juiz fixar a quantia expropriada, que deverá corresponder ao lucro auferido pelo administrador na relação jurídica concreta que ensejou a aplicação da teoria da desconsideração. É importante ressalvar, principalmente por tratar-se de um processo falimentar, que os bens do administrador não estão sujeitos à arrecadação em sua totalidade, mas apenas dentro do limite do caso implicado pela desconsideração.

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Sobre os autores
Lilian Cavalieri Ito

Advogada. Pós graduada em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio de Jesus. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Michel Ito

Procurador do Município de Diadema. Diretor do Departamento de Rendas do Município de Diadema. Pós graduado pela Faculdade Damásio de Jesus e pela Faculdade Internacional Signorelli. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ITO, Lilian Cavalieri ; ITO, Michel. A desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5303, 7 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59720. Acesso em: 18 dez. 2024.

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