8. Forma Federativa de Estado
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 elegeu, como cláusula pé-trea, a forma federativa de Estado (CR/88, art. 60, §4º, I). Portanto, qualquer proposta de emenda constitucional tendente a aboli-la não será nem objeto de deliberação.
Dois dispositivos constitucionais merecem destaque neste tema, quais sejam: art. 18, caput – "A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreen-de a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos dês-ta Constituição"; e art. 19, III – "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: III – criar (...) preferências entre si".
Importante colacionar os ensinamentos de Dalmo de Abreu Dallari sobre esta ques-tão. Segundo ele, "A base jurídica do Estado Federal é uma Constituição, não um tratado. Baseando-se a união numa Constituição, todos os assuntos que possam interessar a qual-quer dos componentes da federação devem ser conduzidos de acordo com as normas cons-titucionais", concluindo que "No Estado Federal as atribuições da União e das unidades fe-deradas são fixadas na Constituição, por meio de uma distribuição de competências. Não existe hierarquia na organização federal, porque a cada esfera de poder corresponde uma competência determinada"20 (grifo nosso).
O eminente Prof. José Afonso da Silva, explicando sobre as vedações constitucio-nais de natureza federativa, dispostas no já mencionado artigo 19 da Carta Magna, expõe que "outro grupo de vedações prende-se (...) ao princípio da paridade entre as entidades da federação (inc. III)", para, mais adiante, asseverar: "A paridade federativa encontra apoio na vedação de criar preferências entre um Estado federado e outro ou outros, ou entre os Muni-cípios de um Estado e os de outro ou do mesmo Estado, ou entre Estado e Distrito Fede-ral"21.
Alexandre de Moraes, comentando sobre o Princípio da Isonomia Federativa (CR/88, art. 19, III) e o Princípio da Imunidade Tributária (CR/88, art. 150, VI, a), explica que, por ser "a federação uma associação de Estados, que se encontram no mesmo plano, não há que se falar em relação de súdito para soberano, de poder reciprocamente"22.
Dessa forma, há que se manifestar pela ausência de hierarquia entre as pessoas po-líticas da federação (União, Estados-membros, Distrito Federal, Territórios e Municípios), e, por conseguinte, pela existência, tão-somente, de âmbitos, áreas de incidência de suas ativi-dades.
9. Orientação Descartada
Declarada e afirmada a ausência de hierarquia, conforme acreditamos ser o correto, pensadores poderiam raciocinar o seguinte: como os entes estão em um mesmo plano, não haveria que se cogitar, efetivamente, a existência de desapropriação de bens públicos; ou seja: à União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios não seria permitido desa-propriar bens uns dos outros.
Em se admitindo essa orientação, ter-se-ia que o §2º do artigo 2º do Decreto-lei nº. 3.365/41 não encontraria abrigo na ordem constitucional inaugurada com a Carta de 1988 por clara afronta ao Princípio Federativo. Além disso, haveria a necessidade de se elaborar um dispositivo com a finalidade de inserir esta posição no texto legal. Como exemplo, apre-sentamos o seguinte: "§4º. A União, Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios não terão seus bens desapropriados em hipótese alguma".
Mesmo respeitando, sempre, as opiniões discordantes, entendemos que este não é o melhor juízo para a questão em comento. Apresentamos nossa opinião no próximo tópico.
10. Orientação Adotada
O Brasil é um Estado Federal. Divide-se, por isso, político-administrativamente, em União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios, sendo todos autônomos entre si. Apesar dessa patente autonomia, cumpre destacar que devem agir na persecução de objeti-vos primordiais. Pensamos, assim, que é a conquista do objetivo que faz-se fundamental, pouco importando para o administrado se o fora realizado por quaisquer dos entes – quando um indivíduo precisa de hospital público para socorrer seu filho, desde que seja oferecido um serviço de qualidade, pouco lhe interessa se a instituição é patrimônio da União, Estado ou Município.
Acreditamos que a persecução dos referidos objetivos comuns (a exemplo do inte-resse público) pode ser constatada em várias passagens do texto constitucional, tais como: art. 3º - objetivos fundamentais da República; art. 5º - direitos individuais; art. 6º - direitos so-ciais; art. 23 – competência comum de todos os entes na guarda da Constituição e conser-vação do patrimônio público (inciso I); e art. 24 – competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal.
Ademais, a organização do Estado através de pessoas políticas faz-se para o melhor desenvolvimento da democracia, posto que aproxima governantes e governados (o acesso do povo é facilitado através de órgãos locais), além de dificultar a concentração do poder23. Mesmo sendo uno o poder, este se divide para viabilizar o melhor desempenho das incum-bências do Estado. Por tal razão, não podem as entidades federadas adotar condutas que se afastem do interesse público.
Aclarado o vínculo existente entre a existência do Estado Federado e o alcance do interesse público, cumpre-nos dissertar sobre os bens públicos.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 5º, XXIV, dis-põe que: "a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilida-de pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressal-vados os casos previstos nesta Constituição". Saliente-se, de início, que a ressalva expres-sa no texto refere-se ao fato de a indenização poder ser paga de outras formas que não em dinheiro, como através de títulos da dívida pública (CR/88, art. 182, §4º, III e art. 184, caput), conforme dantes dissemos.
Nota-se do disposto no supra citado inciso do artigo 5º, que a Constituição não fez nenhuma menção quanto à propriedade do bem a ser desapropriado, podendo ser tanto do Estado quanto de algum particular. Entendemos que, se se pretendesse excluir da possibili-dade de desapropriação os bens públicos, a própria Carta Magna o teria feito.
Indicado o dispositivo constitucional pertinente, passamos a distinguir as diferentes categorias de bens públicos (dominicais, de uso comum e de uso especial, conforme classi-ficação, quanto à destinação, arrolada no artigo 99 do Código Civil de 2002), citando, poste-riormente, exemplos de aplicação do instituto da desapropriação face a cada um dos tipos apresentados.
Os bens dominicais, apesar de pertencerem ao Poder Público, não possuem qual-quer destinação pública, sendo, neste sentido, desafetados; os de uso comum são os utilizá-veis por qualquer pessoa, como as estradas, ruas, praças e mares; e, por fim, os de uso es-pecial são aqueles destinados a um serviço ou ao estabelecimento da administração, como as repartições públicas, museus, hospitais e universidades. Tal distinção é possível a partir da afetação ou não desses bens, seja ela proveniente de existência natural ou de lei ou ato administrativo.
Quanto aos bens dominicais, imagine-se que o município de São Paulo, objetivando ampliar um de seus hospitais, cercado por montes, com o intuito de fornecer à população um serviço de melhor qualidade (motivação), constata que o terreno ao lado da construção, desafetado, único "vizinho" existente, é de propriedade da União. Com base na ampliação do hospital, clara nos apresenta a possibilidade de desapropriação.
Com relação à desapropriação de bens de uso comum, tomemos como exemplo o seguinte: o Município de Juiz de Fora, buscando construir uma unidade da polícia civil pa-ra reforçar a segurança em determinada região, acaba por encontrar local propício ao me-lhor atendimento à população (motivação), local este situado às margens de uma rodovia estadual, que deveria ter desapropriada parte de uma das vias. A análise do caso concre-to, com todas as suas nuances, é que determinará a solução correta. Como exemplo, in abstrato, possível a referida desapropriação.
Sobre a expropriação de bens de uso especial, que, a princípio, poder-se-ia ter como impossível, esta apresenta-se-nos simples. Suponhamos que o Estado do Rio de Janeiro, dispondo-se a ampliar uma escola, com o intuito de promover um ensino de melhor qualida-de a seus estudantes (motivação), acaba por "esbarrar" em parcela do campus da UFRJ. Novamente é a análise da situação específica que indicará o desfecho. Como proposta, te-mos por factível a desapropriação.
Exposta esta questão, convém aclarar um outro ponto ínsito ao debate suscitado.
Ao dissertar sobre o conceito jurídico de interesse público, dizendo ser este a exten-são pública do interesse pessoal de cada sujeito enquanto partícipe do corpo social, Celso Antônio Bandeira de Mello assevera que "um indivíduo pode ter, e provavelmente terá, pes-soal – e máximo – interesse em não ser desapropriado, mas não pode, individualmente, ter interesse em que não haja o instituto da desapropriação, conquanto este, eventualmente, venha a ser utilizado em seu desfavor. É obvio que cada indivíduo terá pessoal interesse em que exista dito instituto, já que, enquanto membro do corpo social, necessitará que sejam li-beradas áreas para abertura de ruas, estradas, ou espaços onde se instalarão aeródromos, escolas, hospitais, hidroelétricas, canalizações necessárias aos serviços públicos etc., cuja disponibilidade não poderá ficar à mercê da vontade dos proprietários em comercializá-los"24.
Pois bem. Se nem ao indivíduo (administrado), com seus legítimos interesses parti-culares, pessoais, é possível escusar-se de um procedimento expropriatório que incida so-bre seus bens, que dirá à Administração, cuja atividade deve, pautada pela supremacia do interesse público, buscar o melhor e mais justo para a sociedade.
Isso posto, tema relevante o de saber-se o que, afinal, deve ser entendido por "inte-resse público". Temos que este é um conceito jurídico indeterminado, o que, desde já, traz-nos um assunto polêmico: em quais circunstâncias cabe ao Poder Judiciário a análise e fis-calização de atos administrativos motivados pelo interesse público?
Em reflexão sobre o assunto, após a leitura de texto do Prof. Hartmut Maurer25 (tra-duzido pelo Dr. Luís Afonso Heck), de artigo do catedrático Eduardo García de Enterría26 e da doutrina de Eros Roberto Grau27, acabamos por admitir o seguinte posicionamento, por parecer-nos o mais acertado e coerente.
Depois de, entusiasticamente, distinguir os vocábulos "termo" (signo lingüístico do conceito) e "conceito" (significado – aquilo que se quer dizer – do termo), Eros Grau asseve-ra que "atos motivados por razões de interesse público não são atos discricionários. ‘Inte-resse público’ é termo de ‘conceito indeterminado’ (vale dizer, de uma noção). Logo, interes-se público deve, em cada caso, ser interpretado (relembre-se que interpretação = aplica-ção). Ninguém ao dele tratar, jamais, exercita atividade discricionária. (...) Atos motivados por razões de interesse público – bem assim todos e quaisquer atos de aplicação de ‘con-ceitos indeterminados’ (vale dizer, de noções) (= juízos de legalidade) – estão, evidentemen-te, sujei-tos ao exame e controle do Poder Judiciário"28. Mais adiante, certifica: "Indetermina-do o termo do conceito de interesse público (...), a sua interpretação (interpretação = aplica-ção) reclama a escolha de uma, entre várias interpretações possíveis, em cada caso, de modo que essa seja apresentada como adequada", atentando-nos para o fato de que "verifi-ca o Judiciário se o ato é correto. Não, note-se bem – e desejo deixar isso bem vincado –, qual o ato correto"29 (grifos nossos).
Segundo o mestre Enterría, "un error común y tradicional, y de penosas consecuencias para la historia de las garantías jurídicas, há sido confundir la presencia de conceptos de esa naturaleza en las normas que ha de aplicar la Administrsción com la existencia de poderes discrecionales em manos de ésta", concluindo, mais além que "Hay, pues, y esto es esencial, una unidad de solución justa en la aplicación del concepto a una circunstancia concreta. Aqui está lo peculiar del concepto jurídico indeterminado frente a lo que es próprio de las potestades discrecionales, pues lo que caracteriza a éstas es justamente la pluralidad de soluciones justas posibles como consecuencia de su ejercicio"30.
Em resumo, seguindo a postura de Enterría, acreditamos que a indeterminação dá-se apenas em abstrato, pois todo conceito é determinável diante de um caso concreto, o que acaba por traduzir a existência de apenas uma solução justa a cada situação individual-mente considerada.
Enterría afirma, ainda, que "allí donde estemos en presencia de un concepto jurídico indeterminado, allí cabe com perfecta normalidad una fiscalización jurisdiccional de su aplicación"31. Mais a frente, citando Véase E. Roca32, expõe: "He aquí, por ejemplo, el concepto de casa ruinosa, típico concepto jurídico indeterminado. Ante una casa determinada no cabe más que una sola solución justa: la casa es ruinosa o no es ruinosa. Es claro entonces que esta determinación no puede ser objeto de una faculdad discrecional, sino que se trata de un problema de aplicación de la Ley en un caso concreto. El Tribunal Supremo, com absoluta corrección, no ve ningún obstáculo en entrar en el fondo de si existe o no existe casa ruinosa en el caso particular, y de rectificar, por consiguiente, el juicio de la Administración"33 (grifo nosso).
Da mesma maneira, entendemos que ou a desapropriação atende ao interesse públi-co ou não atende. Por isso, parece-nos evidente que cabe ao Poder Judiciário a análise do caso determinado, ainda mais em sendo verificada questão relacionada a bens públicos.
Sintetizando o controle desse Poder dos atos expropriatórios de bens públicos, te-mos que este não deveria fazer-se necessário por conta da indisponibilidade do interesse público, sendo os "processos" de desapropriação resolvidos administrativamente, com o re-conhecimento, por parte dos entes da Administração, do interesse merecedor de primazia. Contudo, como nem sempre a solução justa, nesta seara, será a adotada, já que, infeliz-mente, conforme notícias quase que diárias, alguns governantes utilizam de sua posição pa-ra agir de maneira ilógica e destoante da finalidade social do Direito, somos pela possibilida-de de o Poder Judiciário controlar os ditos atos, posto que, conforme preceitua o artigo 5º, XXXV da Constituição de 1988, "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos". Sem dúvida alguma, o respeito ao interesse público por parte da Administração revela-se como direito, se não de todo cidadão individualmente considerado, ao menos como figura integrante da sociedade (direito coletivo ou difuso).
Assim, cabe ao Poder Judiciário a apreciação dos atos expropriatórios, analisando a presença ou não do interesse público primário, sempre a ser perseguido, dizendo a solução compatível com este.
De acordo com o Supremo Tribunal Federal, em julgamento de mandado de segu-rança, "O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plena-mente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República. O regular exer-cício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constitui-ção, não transgride o princípio da separação de poderes"34.
No mesmo sentido, em acórdão, o Superior Tribunal de Justiça asseverou: "Segundo a doutrina e jurisprudência, a interpretação dos atos administrativos deve levar em conta seus princípios basilares. Dentre eles, destaca-se o da supremacia do interesse público, que só poderá ser mitigado em caso de expressa previsão legal. Desta feita, é defeso ao Poder Judiciário adentrar ao mérito administrativo, a fim de aferir sua motivação, oportunidade em que só lhe é permitido analisar eventual transgressão do diploma legal"35.
Interpretamos, assim, que, em sendo defeso ao Judiciário aferir a motivação de ato administrativo diante de eventual violação legal, mais importante ainda tal aferição nos ca-sos em que a possível transgressão se dê face a um princípio, qual seja, o da supremacia do interesse primário, informador de todo o Direito Público.