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Desconsideração da personalidade jurídica e má administração

01/06/2000 às 00:00

Resumo:


  • O artigo aborda a interpretação do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, que trata da desconsideração da personalidade jurídica em casos de má administração.

  • São discutidos conceitos de falência, insolvência, encerramento e inatividade, bem como a necessidade de estabelecer um nexo de causalidade entre a má administração e o prejuízo ao consumidor.

  • É destacada a importância de definir o que constitui má gestão dos negócios societários e a responsabilidade do administrador em casos de encerramento da atividade da sociedade devido à má administração.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

1. Introdução

O art. 28 do Código de Defesa do Consumidor possui inúmeros pontos controversos. Sem dúvida, uma previsão que enseja muita discussão encontra-se na parte final do seu caput, ao tratar da má administração. O dispositivo prevê que poderá ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica, "quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração".

Tal previsão leva a inúmeras interpretações, uma vez que a sua aplicação passa, necessariamente, pela definição da expressão má administração, que com certeza não se restringe ao campo jurídico. Daí a necessidade da elaboração de maiores reflexões acerca do referido dispositivo, partindo da delimitação dos conceitos envolvidos.


2. Falência, Insolvência, Encerramento ou Inatividade

Primeiramente cabe fazermos uma breve referência aos conceitos de falência e insolvência. A primeira, segundo Requião é "a solução judicial da situação jurídica do devedor-comerciante que não paga no vencimento obrigação líquida."(1) Podemos ainda acrescer às palavras do comercialista que na falência o ativo do devedor é inferior ao seu passivo, motivo pelo qual procede-se à execução coletiva de seu patrimônio, de modo que haja igualdade entre os credores.

Já a insolvência, ainda para Requião "é um fato que geralmente se infere da insuficiência do patrimônio do devedor para o pagamento de suas dívidas. O devedor que usou de crédito e está em condições de solver as obrigações contraídas, dele se diz solvente; ao revés, o que se encontra na impossibilidade de fazê-lo se chama insolvente." (2) Enfim, o insolvente é aquele incapaz de satisfazer suas obrigações no tempo certo e na formas normais de pagamento. A determinação da insolvência pode basear-se em quatro sistemas: do estado patrimonial deficitário; da cessação de pagamentos; da impontualidade; e dos atos enumerados em lei. (3)

O encerramento e inatividade das atividades societárias não ensejam maiores referências conceituais face à auto-explicação de suas denominações.


3. Nexo de causalidade

Assim, havendo alguma situação citada acima que cause uma lesão ao consumidor, devido ao fornecimento de produto ou serviço defeituosos, decorrente de atos que configurem má administração, poderá o juiz decretar a desconsideração da personalidade societária. No entanto, voltamos a considerar inoportuna a colocação de tal hipótese entre as causas de superamento, uma vez que novamente nos deparamos com a responsabilidade pessoal do administrador, como ensina Pinho:

          "Não há aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica como em outras hipóteses já mencionadas, mas responsabilização direta dos administradores que por má gestão levaram a empresa a um estado de insolvência ou mesmo encerramento de suas atividades, em flagrante prejuízo aos consumidores. O dispositivo, contudo, é inovador no campo do direito concursal e merece considerações." (4) (93)

Deve, portanto, haver o nexo de causalidade entre a má administração e o estado de falência, insolvência, encerramento ou inatividade da sociedade. Deriva do texto legal a interpretação de que deve ficar estabelecido entre o prejuízo causado ao consumidor e a má gestão do administrador uma relação de causa e efeito. Assim, provando-se o desleixo com as atividades empresariais, poderá ser responsabilizado o administrador que levou a empresa a quebrar, existindo um dano ao consumidor.

Deste modo, se houver qualquer das hipóteses mencionadas sem que tenha concorrido a má gestão, não há que se falar em responsabilidade do administrador. Aqui o consumidor que tiver arcado com algum prejuízo deverá habilitar seu crédito como qualquer outro credor. Não corrobora com esse entendimento Luciano Amaro, que não vê sentido no encerramento de empresa próspera não ensejar a desconsideração, ainda que sua construção tenha ocorrido com base em produtos defeituosos, bem como a empresa bem administrada e insolvente, enquanto que o encerramento, por má administração seja sancionado com a desconsideração. (5) Tal hipótese, ainda segundo Amaro está colocada de forma errada, como podemos ver em suas palavras:

          " Em suma, parece-nos mal posta a hipótese legal, já pela falta de nexo entre a qualidade de sua administração e os eventuais prejuízos do consumidor, já pela falta de isonomia entre o tratamento dado ao consumidor da empresa encerrada por má administração, e o conferido ao consumidor que tenha tido a infelicidade ser cliente de uma empresa bem administrada que encerrou suas atividades." (6)

Reforçamos a nossa posição contrária a este entendimento. Não vemos falta de isonomia entre as duas classes de consumidores colocadas acima. É notório que a atividade comercial é de risco. Risco este assumido não apenas pelo empresário, mas também por quem com ele contrata. Não nos parece sensato punir um administrador que, não obstante todos esforços e diligências, não obteve êxito em sua empreitada empresarial, fato não raro nos tempos atuais onde as dificuldades e instabilidades do mercado vitimam várias empresas que procedem com a maior lisura.

Dessa forma, se o administrador que deu causa, devido ao seu desleixo gerencial, ao encerramento da sociedade, responderá pelo prejuízo causado ao consumidor, caso contrário este poderá habilitar seu crédito como qualquer credor da sociedade.


4. Má Administração

Para que se possa responsabilizar o administrador pelo encerramento da atividade da sociedade devido à má administração, é preciso definir o que é má gestão dos negócios societários.

Primeiramente, o administrador deve ter a diligência necessária na condução dos negócios da sociedade. É o princípio do bonus pater familias, exigido pelo Código Civil (arts. 1.300 e 1.301), pela Lei das Sociedades Anônimas (art.153) e pelo Código Comercial (art.142) (7), donde tira-se que aquele deverá agir como se estivesse cuidando dos próprios negócios, respondendo pelos danos que vier a causar devido a não observância destes preceitos. Tais normas de exercício da função remontam à legislação norte-americana, como explica Pinho:

          "Esse padrão de conduta, conhecido no Direito norte-americano como standart of care for directors, encontrado em inúmeras leis estaduais e expressamente previsto no § 2ºdo art. 35 do Revised Model Business Corporation Act – RMBCA, modelo federal de legislação societária, e que o nosso legislador chamou de dever de diligência, é o que os autores têm reconhecido como dever básico, do qual os demais são meros desdobramentos. (8)

Dessa forma, segundo Kriger Filho, a má administração deve ser "entendida como desleixo na prática de atos destinados a dirigir uma determinada soma de negócios ou afazeres, em completo desatentamento às técnicas propugnadas pela ciência da administração." (9)

Já Coelho, define a má gestão empresarial nas seguintes palavras:

          "Quando ele [administrador] desatende às diretrizes fixadas pelas técnicas administrativas, pela chamada ciência da administração, deixando de fazer o que estas recomendam ou fazendo o que elas desaconselham, e deste ato sobrevêm prejuízos à pessoa jurídica, ele administra mal; e se ocorrer à falência da sociedade comercial, a insolvência da sociedade civil, associação ou fundação, ou mesmo encerramento ou inatividade de qualquer uma delas, em decorrência da má administração, então será possível imputar ao administrador a responsabilidade pelos prejuízos sofridos por consumidores." (grifamos) (10)

Ao tratar do tema, Amaro que, como já dito, apesar de não considerar apenas a má administração como ensejador da responsabilidade pelo encerramento da atividade da sociedade, assim a definiu:

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"(...) a ‘má administração’ não se há de confundir com as práticas abusivas citadas no período inicial do dispositivo; traduz ela atos de gerência incompetente que, antes de tudo, são danosos para a própria pessoa jurídica e que podem ensejar, portanto, responsabilidade do administrador perante a própria empresa. Por desfalcar patrimonialmente a sociedade, a má administração atinge, indiretamente, o consumidor." (11)


5. Conclusão

Diante do que foi apresentado, podemos caracterizar a má administração como a prática, por parte do administrador, de atos que não condizem com os preceitos da ciência da administração, nem com a diligência necessária para um empresário que preza pela continuidade de sua empresa. Ou seja, o bom administrador deve atentar para o risco do negócio a ser realizado, de modo que a sociedade esteja apta a suportar as conseqüências que dele poderão advir.

Não cabe aqui e nem é nosso campo de estudo, definir qual a melhor técnica administrativa a ser escolhida pelo administrador, isto deve ser objetivado pelo magistrado na situação concreta, de acordo com os fatos apresentados.

Como se pode notar, a definição de má administração é demasiadamente teórica, o que faz com que o bom senso do juiz seja o mais importante na aplicação deste dispositivo. É preciso que se tenha em mente se, no caso concreto, há indícios de que o administrador realmente não se cercou da diligência necessária e não seguiu o caminho mais propício para o gerenciamento correto e probo de seus negócios. Ou seja, se o administrador agiu de boa-fé, visando o interesse da sociedade, mas, no entanto foi vítima de uma política econômica nociva à empresa, ou de um fracasso gerencial dentro dos riscos normais da atividade, não há possibilidade de responsabilizá-lo, uma vez que não deu causa ao fim das atividades societárias. A própria Lei das Sociedades Anônimas, em seu art. 159, § 6º, exclui a responsabilidade civil do administrador quando se verificar que esse agiu de boa fé e visando o interesse da companhia.

Por outro lado, temos como exemplo de responsabilidade do administrador, pelo encerramento das atividades da sociedade por má administração, o disposto na da Lei nº 6.024/74, que trata da liquidação de instituições financeiras, que em seus arts. 39 e 40 determina que os administradores respondem solidariamente com a instituição por seus atos ou omissões.

A regra posta na segunda parte do artigo em análise, apesar de representar uma garantia ao consumidor, não se trata, portanto, de hipótese ensejadora de desconsideração da personalidade jurídica. E a responsabilidade do administrador que der causa à falência, insolvência, encerramento ou inatividade da sociedade, deverá, obrigatoriamente, ter um nexo de causalidade com a má administração e, em não havendo esta última, deverá o consumidor lesado habilitar-se no concurso creditório para ver seu prejuízo ressarcido pela pessoa jurídica.


NOTAS

  1. REQUIÃO, R. Curso de Direito Falimentar. 1993, p. 5.
  2. REQUIÃO, R. Op. cit., p. 57.
  3. REQUIÃO, R. Op. cit., p. 58.
  4. PINHO. L. F. de. A desconsideração da personalidade jurídica e a proteção do consumidor no Código de Defesa do Consumidor. Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, 4, p. 93.
  5. AMARO, L. Desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito Mercantil, 88, p. 77.
  6. AMARO, L. Op. cit., p. 77.
  7. PINHO. L. F. de. Op. cit. p. 95.
  8. PINHO. L. F. de. Op. cit. p. 95.
  9. KRIGER FILHO, D. A. Aspectos da desconsideração da personalidade societária na lei do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, 13, p. 83.
  10. COELHO, F. U. O empresário e os direitos do consumidor. 1994, p. 227-228.
  11. AMARO, L. Desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito Mercantil, 88, p. 77.

BIBLIOGRAFIA

AMARO, Luciano. A desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, nº 88, p. 70-80.

COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994.

KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade societária na lei do consumidor. São Paulo: Revista de Direito do Consumidor, nº 13, p. 78-86.

PINHO, Luciano Fialho de. A desconsideração da personalidade jurídica e a proteção do consumidor no Código de Defesa do Consumidor. Belo Horizonte: Revista da Faculdade de Direito Milton Campos, nº 4, 1997, p. 77-101.

REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Falimentar.15º ed. São Paulo: Saraiva, 1993. v. 1.

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Sobre o autor
Rafael Peixoto Abal

advogado tributarista em Florianópolis (SC), mestrando em Direito pela UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABAL, Rafael Peixoto. Desconsideração da personalidade jurídica e má administração. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 42, 1 jun. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/598. Acesso em: 22 dez. 2024.

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