Majoritariamente, a doutrina divide o iter criminis (caminho do crime) em quatro fases: a cogitação, a preparação, a execução e a consumação. Dentre as etapas, a única interna e sem potencial de conduzir à aplicação da pena é a da cogitação. Trata-se do brocardo cogitationis poenam nemo patitur (ninguém sofre punição pelo pensamento). Conquanto se discuta sobre a relevância penal da cogitação, esta “profunda e conflituosa batalha que se desenvolve entre impulsos contraditórios e ambivalentes, provindos do consciente e do inconsciente do agente”[1] não é autonomamente punível.
Identificou-se, assim, um “direito à perversão”. Nesse sentido, bem resume Cleber Masson:
“Por se tratar de mera ideia, sem qualquer possibilidade de ofensa ao bem jurídico, não pode ser alcançada pelo Direito Penal. Não é punível: inexiste crime, ainda que na forma tentada. De fato, conduta penalmente relevante é somente aquela praticada por seres humanos e projetada no mundo exterior. É o que se convencionou chamar de direito à perversão: as pessoas, ao menos em seus pensamentos, podem ser más, perversas, ou seja, têm liberdade para arquitetar mentalmente diversos ilícitos penais, sem que haja qualquer tipo de sanção penal”[2].
Não se pretende censurar os adeptos do termo “direito à perversão”, naturalmente inevitável e garboso em uma avaliação aplicada em sede de concurso público, ou mesmo durante a academia. Ainda menor é o objetivo de contradizer a fase penal da cogitação, que, acertadamente, não é capaz de gerar punição alguma. Não poderia ser diferente; do contrário, viveríamos como Tom Cruise, no filme Minority Report, valendo reproduzir a sinopse da ficção científica:
“Washington, 2054. O assassinato foi banido, pois há a divisão pré-crime, um setor da polícia onde futuro é visualizado através de paranormais, os precogs, e o culpado é punido antes do crime ter sido cometido. Quando os três precogs, que só trabalham juntos e flutuam conectados em um tanque de fluido nutriente, têm uma visão, o nome da vítima aparece escrito em uma pequena esfera e em outra esfera está o nome do culpado. Também surgem imagens do crime e a hora exata em que acontecerá. Estas informações são fornecidas para um elite de policiais, que tentam descobrir onde será o assassinato, mas há um dilema: se alguém é preso antes de cometer o crime pode esta pessoa ser acusada de assassinato, pois o que motivou sua prisão nunca aconteceu? O líder da equipe de policiais é John Anderton (Tom Cruise), que perdeu o filho há seis anos atrás em virtude de um criminoso que o seqüestrou. O desaparecimento da criança o fez se viciar em drogas e ainda continua dependente, mas isto não o impede de ser o policial mais atuante na divisão pré-crime. Porém algo muda totalmente sua vida quando vê, através dos precogs, que matará um desconhecido em menos de trinta e seis horas. A confiança que Anderton tinha no sistema rapidamente se perde e John segue uma pequena pista, que pode ser a chave da sua inocência: um estranho caso que não foi solucionado e há um "relatório menor", uma documentação de um dos raros eventos no qual o que um precog viu é diferente dos outros. Mas apurar isto não é uma tarefa fácil, pois a divisão pré-crime já descobriu que John Anderton cometerá um assassinato e todos os policiais que trabalhavam com ele tentam agora capturá-lo”[3].
O roteiro ilustra a importância de afastar o Estado do pensamento humano enquanto apenas pensamento. De outro lado, o raciocínio aproxima as concepções do Direito às passagens bíblicas. Por oportuno, são reproduzidos alguns trechos:
“Porque é do coração que vêm os maus pensamentos, os crimes de morte, os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, as mentiras e as calúnias” (Mateus 15:19); “Mas as pessoas são tentadas quando são atraídas e enganadas pelos seus próprios maus desejos. Então esses desejos fazem com que o pecado nasça, e o pecado, quando já está maduro, produz a morte” (Tiago 1:14). “Mas eu lhes digo: quem olhar para uma mulher e desejar possuí-la já cometeu adultério no seu coração” (Mateus 5:28); “Mas tenham as qualidades que o Senhor Jesus Cristo tem e não procurem satisfazer os maus desejos da natureza humana de vocês” (Romanos 13:14).[4]
Como se percebe, o Estado, vinculado a precitadas proposições, reconhece no indivíduo a inevitabilidade de produção de processos cognitivos minimamente desviados. Assim, admite-se que o córtex cerebral de cada ser humano cogite, pense e medite sobre situações existenciais que, se exteriorizadas em condutas penalmente típicas, antijurídicas e culpáveis (teoria tripartite do delito), seriam puníveis. Não o são, portanto, simplesmente porque o Direito reconhece um espaço mental intransponível e inalcançável.
Contudo, conceber – em razão de aludido raciocínio – um direito à perversão se mostra equivocado, pois isto não corresponde à correta ideia de que a fase da cogitação não pode ser punida.
Primeiro, nos que reconhecem a existência de um verdadeiro direito de ser perverso, não se encontra o dever correspondente, quebrando-se o axioma de que a todo direito corresponde um dever, e vice-versa. Alguém poderia contra argumentar sugerindo que o dever consistiria em não exteriorizar a cogitação perversa, porém este dever já possui um direito correspondente: o de não ser punido pelo Estado pela prática de condutas permitidas ou não proibidas (função limitadora do direito penal).
Ademais, mostra-se incompreensível o “ter” direito que somente se apercebe no momento em que já não mais se tem. Que direito é esse, que existe, mas logo que gera seu único fruto possível, um comportamento, torna-se um ilícito? Se a origem é lícita, porém invisível, por qual razão, justamente quando explícita, demonstrando sua existência ao Estado e aos demais indivíduos, passa a ser um “não-direito”? Se um animal é um sujeito de direitos, qual é o seu dever? Se um humano pensante pensa (ora!), qual é o seu dever com o pensamento, em si, e não com eventual conduta dele derivada? São indagações que refutam a existência de um direito à perversão.
Outrossim, o objeto da ciência jurídica, como é manifesto, constitui-se da relação circular e simbiótica entre direito objetivo e direito subjetivo. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira:
“Na sua polivalência semântica, a palavra Direito ora exprime o que o Estado ordena, impõe, proíbe ou estatui, ora significa o que o indivíduo postula, reclama e defende. Quando alguém se refere ao preceito emanado da autoridade, chamao direito, porque aí enxerga a norma de conduta, revestida de autoridade. Quando alude à projeção individual da norma, ou ao seu efeito, igualmente lhe dá o nome de direito. Para distinguir um e outro sentido, qualificao, no primeiro caso, como Direito Objetivo (ou ordenamento jurídico), traduzindo o comando estatal, a norma de ação ditada pelo Poder Público, e é nesta acepção que se repete secularmente que ius est norma agendi. [...] No segundo caso, acrescentalhe outro adjetivo para denominálo direito subjetivo, abrangendo o poder de ação contido na norma, a faculdade de exercer em favor do indivíduo o comando emanado do Estado, definindose ius est facultas agendi”[5].
Por seu turno, perversão, à letra, é o “ato ou efeito de perverter, a mudança para um estado ou situação considerado pior, a depravação, o desvio patológico do comportamento considerado normal”[6]. Perverso, na linha, é aquele que “tem péssimas qualidades morais, que mostra perversão, traiçoeiro, que ou quem tem intenção de fazer o mal ou de prejudicar”[7]. Note-se a exigência de que a perversão seja demonstrada.
Relembrem-se as advertências de Roberto Lyra, para quem “a maior dificuldade, numa apresentação do Direito, não será mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel”. Mais à frente, pontifica: “A diversidade das palavras atinge diretamente a noção daquilo que estivermos dispostos a aceitar como Direito”[8].
Precisamente nesse ponto reside a problemática exposta: aceitar a existência de um direito à perversão implicaria em prejudicar a aparente intenção dos próprios adeptos do termo, isto é, aquiescer com que o Estado regulamente a psique humana. Se hoje é direito, amanhã pode tranquilamente ser um não-direito, a justificar a intromissão do Estado no pensamento humano. E isso não se restringiria à seara penal.
Destarte, além de não ser dado ao Direito a confecção de um estatuto do pensamento, por concretamente impossível, não se postula ao Estado a tutela do pensamento, pelo mesmo motivo. Não há, por conseguinte, direito. É imperioso reconhecer que há situações que antecedem o ordenamento e suas pretensões e, assim, não há falar em direito, sob pena de permitir ao Estado a exorbitância de suas atribuições, em afronta a fundamentais condições humanas.
Convenhamos: pudéssemos conhecer o pensamento do próximo e, com precisão matemática, distinguir o grau de um pensamento criminoso, ainda no interior da mente humana, não operaríamos, ao menos, uma tutela inibitória, mesmo que sem pena, com o objetivo de livrar a vítima do prejuízo certo? Novamente, que direito é esse que poderia ser combatido, se tal tecnologia (infelizmente) existisse? De direito não se trata, mas sim de situação por ele inalcançável e, por tal razão, sempre acertadamente impunível e irregulável.
Por derradeiro, resta a reflexão proposta por Friedrich Nietzsche, em “Aurora”:
“Livres agentes e livres-pensadores – Os livres agentes se acham em desvantagem frente aos livres-pensadores, porque os homens sofrem mais visivelmente com as consequências dos atos do que dos pensamentos. Levando-se em conta, porém, que tanto uns como outros buscam a satisfação, e que já o pensar e enunciar coisas proibidas dá satisfação aos livres-pensadores, todos se equivalem quanto aos motivos; e, no tocante às consequências, a balança penderá mesmo contra o livre-pensador, desde que não se julgue a partir da primeira e mais tosca evidência – ou seja: como todo o mundo julga. Há que retirar boa parte da calúnia lançada sobre os homens que romperem através de uma ação a autoridade de um costume – geralmente são chamados de criminosos. Todo aquele que subverteu a lei de costume existente foi tido inicialmente como homem mau: mas se, como sucedeu, depois não se conseguia restabelecê-la e as pessoas acomodavam-se a isso, o predicado mudava gradualmente; - a história trata quase exclusivamente desses homens maus, que depois foram abonados, considerados bons!”[9]
Notas
[1] BECKER, Marina. Tentativa criminosa: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Siciliano Jurídico, 2004. p 51.
[2] MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte geral. Volume I. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. p. 362.
[3] Disponível em: ‹http://www.adorocinema.com/filmes/filme-34917/›. Acesso em: 15 Aug. 2017.
[4] Disponíveis em ‹http://bible.com›. Acesso em: 15 Aug. 2017.
[5] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Volume I. 30 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 31.
[6] Disponível em: ‹https://dicionariodoaurelio.com/perversao›. Acesso em: 08 Aug. 2017
[7] ‹https://dicionariodoaurelio.com/perverso›. Acesso em: 08 Aug. 2017
[8] LYRA, Roberto. O que é direito. 11 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
[9] NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Parágrafo n°. 20.