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Religião e Estado.

Críticas da Teoria Pura à Sociologia Compreensiva

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27/11/2004 às 00:00
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Da Aplicabilidade de tais criticas à sociologia da religião

Quando Kelsen afirma que a sociologia, ao tentar definir o direito, tem tanto mais sucesso quanto mais consiga aproximar sua definição da definição jurídica, o faz em função de ser o direito uma "ordem social", definida como um conjunto sistemático de normas válidas. Também a religião é abarcada por este conceito, e não apenas ela, mas também a moral, a etiqueta, a música, a ciência, a família e praticamente todas as ordens ou estruturas tão freqüentemente estudadas por sociólogos.

De fato, como seria a sociologia capaz de definir a religião? Suponhamos uma definição sociológica do anglicanismo. Ora, o anglicanismo é normalmente definido por uma "ciência" normativa, uma teologia. Na medida em que a definição sociológica se afastasse dessa definição ter-se-ia que determinados indivíduos, considerados anglicanos do ponto de vista do estudioso normativo da religião, seriam considerados não anglicanos do ponto de vista sociológico, e vice-versa.

Seriam os católicos não praticantes "católicos" em um sentido sociológico? A pastoral da criança e as comunidades eclesiais de base são "católicas"? Uma pseudomissa realizada por um falso padre para fiéis que desconhecem esta situação é uma "missa" sociologicamente falando? Ou ainda, quando o comportamento de um homem em acordo com a ética católica (digamos, a abstenção de relações sexuais pré-matrimoniais) poderia ser considerado "religioso"? o católico não praticante que se abstenha de relações sexuais fora do matrimônio comete um ato "religioso" virtuoso ou pecaminoso? Esta ação é objeto de estudo da sociologia da religião?

A sociologia da religião, da mesma forma que a sociologia do direito, estuda os comportamentos humanos que, de acordo com o ponto de vista "normativo" em sentido kelseniano, isto é, de acordo com o ponto de vista jurídico ou religioso, são comportamentos jurídicos ou religiosos. Todas as perguntas acima são respondidas por um conhecimento normativo da religião, e não por um conhecimento sociológico. Isto porque a sociologia, enquanto tem a ação humana como objeto de estudo, não é capaz de apreender o sentido objetivo dos fenômenos sociais, e não existe qualquer outro sentido, senão o insondável sentido subjetivo que, quando expresso, se torna objetivo.

Pretendo mostrar agora que estas críticas estão fundamentadas na teoria pura do direito de Kelsen e que, portanto, esta teoria e a sociologia compreensiva têm o mesmo objeto de estudo.

Os fundamentos da crítica kelseniana

O problema que se coloca aqui é o que segue: se a sociologia estuda o comportamento efetivo de indivíduos que consistem no estado e na religião, por exemplo, e a teoria pura estuda normas abstratas, têm estes estudos objetos distintos, sendo incabível, portanto, qualquer contradição entre elas, salvo se as críticas que o autor da teoria pura formula não estiverem ancoradas em sua teoria.

A teoria pura do direito tem como princípio metodológico fundamental a distinção entre um plano factual e um normativo. Mas isto não é feito como na sociologia weberiana em que o normativo é afastado como interferência subjetiva no estudo científico. Normas e valores são coisas distintas, e a descrição de normas e a prescrição de normas também são coisas distintas. Valores não são passíveis de descrição em termos causais.

Quando se diz que "João crê que não se deve matar" não se descreve um determinado valor, mas antes um determinado fato. A sociologia se ocupa de tais fatos, mas não apenas.

Como decorrência da distinção entre fatos e normas, Kelsen pretende separar o estudo do direito (que nada mais é do que um conjunto de normas) do estudo dos fatos, de quaisquer fatos, sejam eles movimentos de astros ou comportamentos de seres humanos. O direito não é composto pelas ações de juízes. O comportamento dos homens não passa de comportamento de homens, não faz surgir qualquer ente superior, nem implica a validade de qualquer sentido.

Quando a sociologia compreensiva pretende estudar a "ação social", engloba em um só objeto de estudo a ação empírico-causal e o sentido desta ação. Isto não implica qualquer problema na medida em que tal sentido é entendido psicologicamente, ou seja, determinados estados possivelmente neurofisiológicos de indivíduos concretos. No entanto, na medida em Weber define a relação social como ações sociais com sentidos reciprocamente orientados e pretende que o estado, a moral, a religião sejam relações sociais assim definidas, retira destes objetos sua característica específica.

Entretanto, Weber afirma que o que confere a "unidade" a uma relação social é o "sentido" pela qual se os atores se orientam. Surge aqui um problema deveras sério. Se a ação social é uma ação com sentido e a relação social é um composto de duas ou mais ações sociais com sentidos reciprocamente orientados, têm-se duas ou mais ações e dois ou mais sentidos, invariavelmente. Uma relação social que envolva cinco indivíduos é composta por cinco "comportamentos" e cinco "sentidos" subjetivos. Como então pode a unidade de uma ordem social, de um costume, uma convenção, do direito ou da religião ser dada pelo sentido que orienta a ação, se há uma pluralidade tão grande de sentidos quanto há de indivíduos?

Tem-se, portanto, em Weber, o surgimento de um "sentido" extraindividual que confere unidade aos fenômenos sociais.

Se refizermos brevemente e ao contrário o caminho realizado por Weber para chegar à definição de Estado ou de Religião teremos o seguinte quadro: Um estado é uma ordem legítima coercitiva. Uma ordem legítima coercitiva é uma ordem que tem como características o sentido específico da "obrigatoriedade" de seus preceitos e a "coerção". Uma ordem é uma relação social permanente. Uma relação social permanente é um conjunto de ações sociais cujos sentidos são orientados reciprocamente. Ora, se assim é, um estado apenas poderia existir na medida em que os sentidos subjetivos individuais se orientam reciprocamente, sendo que todos eles devem ainda conter as características de "obrigatoriedade" (não necessariamente como senhores, mas podendo também o ser como súditos) e "coercitividade".

É evidente que este estado seria muito mais efêmero que o objeto de estudo weberiano. Assim também a religião é definida em termos semelhantes, mas substituindo as características pela regulação da relação com o mundo supra-sensível e a disponibilidade de bens de salvação.

Se, entretanto, admitirmos que há um sentido, qualquer que seja, que confere unidade ao conjunto de ações humanas concretas a que chamamos religião ou estado, e nos perguntarmos por qual seja este sentido, seremos impelidos a responder que é o "direito" ou a "religião". Assim, o objeto de estudo da sociologia da religião é a ação humana orientada por um sentido religioso. E a ação humana é orientada por um sentido religioso se for orientada por uma religião, que, por sua vez é um conjunto de ações humanas com um sentido religioso.

A definição de religião ou estado em Weber é, portanto, ou cíclica ou efêmera.

Weber me parece estar repleto de razão na medida em que procura o objeto de estudo da sociologia nos indivíduos concretos. Ainda está com a razão quando encontra um importante determinante das ações humanas nos sentidos subjetivos concretamente pensados. Pareceria ainda mais correto se afirmasse que, do ponto de vista da sociologia causal simplesmente não há estado ou religião enquanto unidades, mas simplesmente uma pluralidade de sentidos subjetivos.

A sociologia causal, segundo Kelsen, portanto, é incapaz de empreender um estudo científico do estado ou da religião exatamente pelos mesmos motivos que a jurisprudência é incapaz de efetuar um estudo científico do comportamento empírico de seres humanos, quais sejam, o ser e o dever ser constituem duas construções cognitivas diversas e não é possível, portanto, realizar qualquer dedução lógica em que as premissas sejam de uma espécie e as conclusões de outra.

Portanto, a crítica de Kelsen à sociologia do direito weberiana está ancorada nos mesmos fundamentos que dão ensejo à metodologia da teoria pura do direito. Se Kelsen, a partir das conclusões de sua teoria, é capaz de criticar Weber, o é tão somente porque a teoria weberiana ultrapassa os limites de uma teoria do comportamento humano para se tornar uma teoria híbrida que trata tanto do comportamento humano (que inclui o sentido subjetivo) quanto do sentido objetivo, ou seja, construtos lógicos de idéias.

Não é possível, portanto, encontrar o conceito de "autoridade" a partir de fatos, já que a autoridade é a competência para emitir ordens válidas, e não a possibilidade ou probabilidade de obter obediência. A legitimidade é a validade de uma ordem e a validade é a obrigatoriedade, o dever de obediência, e não a probabilidade ou possibilidade de seres humanos de fato obedeçam.

Um "caminho de salvação" não é um conjunto de comportamentos que com determinada probabilidade homens realizam, mas um conjunto de regras que devem seguir para obter recompensas (que são sanções) outorgadas por seres não humanos.

Estas afirmações são demasiado distintas daquilo que normalmente se afirma em sociologia para que possam deixar de ser colocadas em pauta. O trabalho de Hans Kelsen não apenas indicou que a jurisprudência estava cometendo um grave erro ao buscar auxílio em conceitos sociologicamente construídos, mas também que a sociologia comete outro erro tão grave quanto quando constrói conceitos que representam sentidos abstratos e coletivos a partir de dados empírico-causais, já que, empírico-causalmente, não há sentidos coletivos.


A relevância da teoria kelseniana para a Sociologia

A sociologia tem como objetivo a explicação do comportamento humano e não a mera descrição de normas. Que relevância poderia ter uma teoria que afirme que os tradicionais objetos de estudo da sociologia não se prestam a uma análise causal? Penso que o compromisso do sociólogo, como o de qualquer cientista, é com a verdade mais que com a manutenção e construção de um objeto de estudo próprio, donde creio não ser esta uma pergunta que possa colocar em xeque aquilo que anteriormente se afirmou. Ademais, a teoria pura não afirma que seja impossível o estudo causal do comportamento humano, nem o estudo científico da sociedade, mas apenas que sejam duas coisas distintas.

A sociologia, enquanto estudo empírico-causal nada mais é do que o estudo do comportamento de seres humanos individuais. Não é, pois, em nada diversa de uma psicologia do comportamento de seres humanos. Enquanto estudo de comportamentos humanos passados, suas causas e conseqüências, a sociologia não é diferente da história. O que a sociologia comporta de específico é a preocupação com determinadas "estruturas", que não passam de "sentidos objetivos" com ajuda das quais pretende compreender o comportamento de seres humanos individuais, ou melhor, o grande problema da sociologia é realizar a passagem da "ação" à "estrutura", que é uma espécie de passagem do "fato" ao "valor", sabidamente impossível.

O resultado de um estudo que nas premissas aceite tanto normas quanto valores é sempre uma conclusão normativa (o que não implica ser valorativa no sentido weberiano), tal estudo é o que normalmente se chama "casuística", não sociologia. Quando tomamos como dados a comunhão dos santos e os sacramentos que conferem perdão, não concluímos que os católicos deixarão de ter uma vida metódica, ou que o farão com determinada probabilidade, mas, simplesmente, que estão autorizados pela ordem a ter um comportamento desregrado e obter, posteriormente, o perdão. Ou melhor, que não estão proibidos de obter perdão após o comportamento desconforme.

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Da mesma forma o protestante que deve obedecer às determinações divinas sob pena de jamais saber que é salvo ou de saber que já foi condenado desde toda a eternidade, sem a possibilidade de obter perdão não nos deve fazer concluir que o protestante agirá metodicamente, mas que deverá fazê-lo segundo determinada ordem.


Uma teoria pura da sociedade

Justificativa

O pensamento de Hans Kelsen nos leva a concluir pela necessidade de construir uma teoria pura da sociedade, ou seja uma teoria que distinga o estudo do sentido do estudo da ação. Contrariamente aos esforços da sociologia contemporânea, a metodologia da teoria pura nos leva a separar a ação da estrutura, submetendo aquela a um estudo empírico causal, buscando o rigor lógico e os métodos das ciências naturais (experimentação, indução, dedução) e esta o rigor lógico das ciências ideais, que lidam com sistemas de idéias de forma lógica (matemática, lógica, jurisprudência).

Em que nos poderia ajudar uma ciência deste tipo? Ora, constata-se empiricamente que os profissionais mais procurados por quem quer que tenha alguma necessidade de conhecedores de ciências sociais são aqueles que detém um conhecimento normativo e não aqueles que detém um conhecimento empírico-causal. São os juristas e contadores. Ambos detém um conhecimento normativo, mas que alcançou um nível de especialidade e complexidade muito distinto daquele alcançado pela sociologia e antropologia. O economista é procurado como um profissional que conhece uma ordem normativa, não como um profissional que conhece o comportamento de seres humanos. Assim também o pedagogo. Isto indica que tais profissionais são, no mínimo, úteis.

É quase desnecessário dizer que os homens, ao menos aparentemente, tomam as ordens sociais, no sentido aqui trabalhado, como ordenadoras de suas condutas. A impossibilidade de passar-se de um conhecimento do comportamento efetivo dos homens não nos deve fazer perder de vista que em grande número dos casos o comportamento humano é altamente previsível e tanto mais quando se conhece a ordem normativa a que ele se crê submetido.

Quem conhece o catolicismo dificilmente poderá explicar causalmente de maneira precisa o comportamento dos católicos, mas com muito mais dificuldade se encontrará um estudioso do catolicismo que não nos possa dizer muito sobre este mesmo comportamento, ainda que jamais tenha visto um católico.

Ademais desta evidência, uma teoria pura da sociedade é capaz de apresentar sentidos que na realidade se apresentam de forma amorfa e de difícil apreensão de uma forma clara e sistemática.

Uma tal teoria permite ainda uma comparação entre diversas ordens, dando a conhecer diferenças lógicas importantes e, até onde se tem evidência empírica, sempre que os homens têm tempo, recursos e interesse em determinado aspecto da vida, tendem a torná-lo lógico e sistemático no sentido de isento de contradições. Daí que o conhecimento acerca de incompatibilidades lógicas entre determinadas idéias pode resultar em importantes descobertas para a sociologia.

Aliás, desta espécie têm sido as descobertas mais relevantes nas ciências sociais. A compatibilidade entre o "Espírito do Capitalismo" e a "Ética Protestante", a incompatibilidade daquele e o "Hinduísmo", e outras religiões, o que leva a uma dificuldade na construção de uma espécie de "teodicéia" no sentido de uma alternativa coerente a uma contradição lógica, são importantes descobertas "sociológicas", dotadas de valor ainda que fossem empiricamente falsas, pois revelam um estudo que Kelsen chamaria de "ciência normativa".

Toqueville mostra que o catolicismo é compatível com a idéia de igualdade entre os homens simplesmente chamando a atenção para que a hierarquia católica é pouco diferenciada e que os hierarquicamente superiores são colocados em um mundo à parte, de modo que os que restam, são iguais. Esta análise não significa que sejam causalmente iguais, que as mesmas causas resultariam nos mesmos efeitos se incidissem sobre qualquer deles, mas que devem ser tratados da mesma forma. É, portanto, uma conclusão normativa.

Durkheim percebe que uma determinada estrutura normativa é capaz de gerar possibilidades diferenciadas de suicídio. Assim, se apenas eu sou responsável por minha vida, apenas eu devo responder por seu destino. Como não posso ser punido após a morte, o suicídio não implica sanções, donde estou autorizado a me matar. Esta conclusão não é causal, mas normativa. Da mesma forma, se minha vida é responsabilidade coletiva, se não a devo a mim mesmo, mas a meus semelhantes, aqueles responderão por minha morte, ainda que eu mesmo a provoque, donde não posso me matar sob pena de incorrer meus semelhantes em uma determinada sanção. O catolicismo estabelece esta última relação (em função da comunhão dos santos), enquanto o protestantismo aquela. Isto não decorre de qualquer análise empírica e não pode ser contestado por estatísticas, mas por argumentos lógicos dedutivos.

Metodologia

A metodologia da teoria pura, que entendo ser uma teoria pura da sociedade e não apenas do direito, está em larga medida desenvolvida. Trata-se de um estudo lógico dedutivo de normas válidas em função da pressuposição da validade de uma norma fundamental. A sociedade seria, portanto, um conjunto não sistêmico de ordens normativas coerentes internamente e independentes entre si.

A sistematização destas ordens consiste na desconstrução dos conceitos em normas de comportamento humano na forma "Se A, então deve ser B senão C, de acordo com D", onde A é uma situação que dá ensejo à obrigação, B é a obrigação, C a sanção e D o fundamento de validade.

As diferentes ordens sociais não têm qualquer empecilho lógico a regular qualquer "área" do comportamento humano, donde se conclui que ordens sociais não se diferenciam por seu conteúdo. São elas distintas por seu fundamento de validade. Nem todas as normas podem ser reconduzidas a um mesmo fundamento de validade. Assim, não se pode dizer que a obrigação de assistir à missa aos domingos decorra da Constituição de um estado.

Considerando que normas não agem e que são meros significados, as relações que podem manter entre si são limitadas. A revogação, a superioridade, inferioridade e algumas outras praticamente esgotam as possibilidades. Uma ordem normativa não pode ter qualquer relação com outra senão as relações próprias à teoria dos conjuntos. Isto torna o estudo factível, lógico e sistemático.

O erro que deve ser evitado é o de buscar de alguma forma entender que tal estudo resolva por quaisquer meios a questão acerca de como os homens agem. Esta pergunta deve ser respondida empírica e causalmente.

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Sobre o autor
Nelson do Vale Oliveira

sociólogo, mestrando em sociologia pela Universidade de Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson Vale. Religião e Estado.: Críticas da Teoria Pura à Sociologia Compreensiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 508, 27 nov. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5983. Acesso em: 25 abr. 2024.

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