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Direito internacional privado: fundamentos e desenvolvimento histórico

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20/01/2018 às 13:38
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O texto evidencia as raízes históricas desse ramo jurídico, o equívoco de sua denominação, as principais escolas estatutárias, a sua vinculação com o direito interno e os métodos consagrados atualmente para a solução de conflitos de leis no espaço.

I.  A SOCIEDADE INTERNACIONAL      

A existência do Direito Internacional, seja ele Público ou Privado, implica necessariamente na presença de um ambiente adequado ao seu surgimento, seu desenvolvimento e sua aplicação. Esse ambiente é a Sociedade Internacional.

Como é do conhecimento geral, o Direito é uma manifestação da vida social. Ele é um produto da sociedade, mas, uma vez constituído, passa a ser um dos fatores que a condicionam e a modificam, o que faz com que a sociedade seja, ao mesmo tempo, um fenômeno social e jurídico. O Direito Internacional (DI), portanto, corresponde a uma determinada sociedade internacional, e ela é o meio onde surge o ordenamento jurídico internacional.

Vale registrar que uma sociedade humana surge das relações recíprocas entre indivíduos em um mesmo espaço territorial.  Idêntico fato ocorre no âmbito internacional: coletividades organizadas relacionando-se determinaram a existência da sociedade internacional.

A sociedade internacional surgiu com as primeiras coletividades organizadas. Eram, naturalmente, grupos humanos, e, como tal, por necessidade ou conveniência, estabeleceram relações entre si - daí originando-se a sociedade internacional e o DI, primeiramente o Direito Internacional Público (DIP).  Afinal de contas, as relações pacíficas e prósperas extrafronteiras ou extragrupos só se tornaram viáveis pela existência de normas comuns às dadas coletividades.  Eis aí a aplicação do aforismo “ubi societas ibi jus” (onde há a sociedade há o direito).

Neste particular, é possível asseverar que a sociedade internacional, conquanto de forma regionalizada, já existia na mais longínqua Antiguidade - inegavelmente com características diferentes das atuais -, dada a interrelação entre múltiplos reinos, impérios e cidades-estados autônomas (por ex.: egípcios, assírios, caldeus, hititas, fenícios, judeus, persas, cretenses, gregos e romanos etc.). O fato de que o conceito de Estado, tal qual ainda hoje o entendemos, tenha surgido apenas na Idade Moderna (a partir do século XV), não impede a existência anterior da sociedade internacional, porque o direito e a sociedade variam no tempo (aliás, o direito já nasce velho com relação à sociedade). 

Assim, independentemente da época, se duas ou mais coletividades autônomas  (sejam cidades-estados, países ou impérios) passaram a se relacionar e com isso acordaram normas jurídicas para facilitar ou disciplinar tal relação (impondo-as sobre particularidades de seu convívio – por ex., comércio, crimes, alianças militares etc.), tem-se aí elementos de Direito Internacional Público; ou, se nesse tipo de relação, a presença de estrangeiros gerou conflitos ou questões que obrigaram a  autoridade local a decidir com base entre a lei externa e a “lex fori”, temos aí elementos de Direito Internacional Privado.   

No que concerne ao Direito Internacional Privado, cabe registrar que o mesmo objetiva determinar qual é a norma aplicável a uma relação jurídica, quando entram em choque sistemas jurídicos de dois ou mais Estados, em uma mesma época histórica, possibilitando identificar-se qual a lei que deve prevalecer para solução do caso concreto. Embora tenha se consagrado como ciência jurídica apenas no século XIX, é possível identificar-se elementos ou aspectos relativos ao Direito Internacional Privado em períodos históricos anteriores, bem como sua ausência ou desconhecimento em épocas mais remotas. 


II. DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO - EVOLUÇÃO HISTÓRICA  E  PERSPECTIVAS

Na Antiguidade Oriental não foi possível conceber-se o Direito Internacional Privado, já que ao estrangeiro se atribuía - por motivos religiosos e/ou étnicos – a condição de inimigo, geralmente morto em combate ou escravizado pelos vencedores.  Quando aprisionados, a eles não se conferia qualquer direito, pois este derivava basicamente da religião, da qual o ádvena era excluído. Assim, os estrangeiros eram considerados como “coisas”, recebendo toda a sorte de tratamentos indignos e desumanos. 

Dentre os povos da antiguidade oriental, diga-se de passagem, apenas na legislação da Pérsia e da China, assim como no Pentateuco hebraico, revelou-se alguma tolerância para com os povos estrangeiros.

No mundo romano, o estrangeiro era submetido ao “jus gentium”, que uns poucos autores acreditam ser a raiz do Direito Internacional.  Isso não passa de equívoco, pois o “jus gentium” (direito das gentes) nada mais era que um direito de Roma aplicado por um juízo de exceção (“pretor peregrino”) aos conflitos entre estrangeiros  e/ou  entre estrangeiros e cidadãos locais[1], enquanto o “jus civile”  era destinado exclusivamente aos romanos.

Em outras palavras, inexistia conflitos de leis no contexto do sistema jurídico romano – aos cidadãos, o jus civile; aos estrangeiros, o jus gentium!  Afinal, naquela conjuntura histórica, o que havia era um império romano, constituído pela força das armas, que dominava, em todos os sentidos, os demais povos conhecidos, a eles impondo o seu governo, o seu direito e o seu idioma.

Conquanto se encontre na Idade Antiga as raízes do Direito Internacional Público, a partir da convergência ou convivência de povos diversos, sempre no afã de manter equilibradas as relações de poder, o mesmo não se aplica ao Direito Internacional Privado, que nasce da busca de solução jurídica para questões conflitantes decorrentes de relações entre indivíduos de civilizações soberanas e suas respectivas leis diferentes. Vale dizer, este Direito tem como sua principal base sociológica a pluralidade de governos independentes e, por via de consequência, a existência de diferentes ordenamentos jurídicos, base de conflitos ou disputas entre particulares.

Com a decadência do mundo romano, no século V d. C., verificou-se intensa migração dos denominados povos bárbaros.  Os territórios romanos começaram a ser ocupados ou retomados, e, ao lado da lei do lugar surgiu a ‘lei dos invasores’. Afinal, se o povo emigra, a lei o segue!  Assim, os conquistados e os próprios romanos continuaram afetos ao Direito Romano, enquanto cada horda bárbara[2] se valia do seu próprio ordenamento jurídico. Tem-se aí o chamado princípio da “Personalidade das Leis”, com cada povo mantendo-se fiel aos seus usos e costumes. Com isso, antes da autoridade judicial aplicar a lei, usava-se a fórmula “sub qua lege vives?”- sob qual lei vive? / a que lei deve obediência? -, dirigida aos litigantes. Conforme a resposta, aplicava-se a lei mais apropriada. Mas, como os juízes pouco conheciam das demais leis, muitas vezes as decisões assentavam-se em critérios os mais subjetivos, ao sabor da interpretação judicial.

Com o feudalismo, no qual o indivíduo pobre ou remediado era um “servo da gleba” (estava “preso” à terra de seu suserano), tal postura jurídica foi substituída, passando a prevalecer o princípio da territorialidade das leis, face o regime feudal vigente. Nessa época, principalmente a partir do século IX, o estrangeiro se sujeitava às leis do feudo de maneira exclusiva, não podendo recorrer à lei pessoal.  Esse sistema, é possível deduzir-se, não havendo conflito de leis, prescindia da existência do Direito Internacional Privado, pois inexistia a possibilidade de imposição de outra lei que não o direito local.

Com a expansão dos “burgos”, ou seja, das cidades europeias, que surgiram como forma da população subtrair-se ao peso do autoritarismo dos senhores feudais, principalmente por volta dos séculos XI e XII, e diante do largo e contínuo intercâmbio comercial decorrente, conformaram-se neles um ordenamento jurídico próprio, consolidados aos poucos com as chamadas Cartas ou Estatutos de Liberdade. 

A partir dessa época, quando a ficção da unicidade do direito romano ruiu por terra, surgiu a necessidade de se saber qual o direito a se aplicar nas relações entre povos. Ou seja, ao se fortalecerem e se multiplicarem os burgos europeus, os seus moradores - em especial, os seus mercadores - viram-se diante de uma situação inusitada: não havia mais aquele direito romano único  (que se aplicava a todos os povos), mas, em lugar dele, passaram  a coexistir  dezenas de direitos individuais, representados pelas dezenas de ‘cidades-estados’ daquela época. 

Em decorrência, tornou-se frequente haver demanda entre cidadãos de províncias diferentes perante a instância judicial de uma delas, em que a grande dúvida passou a ser qual o estatuto a ser aplicado no caso concreto. O jurista bolonhês Aldricus, da segunda metade do século XII, apresentou uma solução clássica à essa questão: o juiz deveria seguir o costume que lhe parecesse mais preferível, mais útil e visto como qualitativamente o melhor para a situação sob análise. Com isso, a aplicação das leis ao estrangeiro teve evolução significativa. Tratando-se de matéria de contratos, por exemplo, passou a prevalecer a regra da “lex loci contractus”, independentemente das partes celebrantes, e, no caso de bens, a lei do território de sua localização.

E é justamente nesse contexto, diante de situações de conflito entre pessoas que moravam em burgos diferentes, consequentemente com leis diferentes, por questões cíveis ou comerciais, por exemplo, é que surgiu esta vertente do Direito Internacional, que na tradição anglo-saxã da época foi chamada de conflito de leis (“conflicts of law”) e que, no século XIX, na tradição dos países de língua latina, foi denominada de direito internacional privado.  

Interessa, aqui, constatar que essa vertente diz respeito a compatibilizar a aplicação de leis diferentes para solucionar um caso concreto entre pessoas, tanto de natureza cível quanto comercial, mas sempre entre pessoas físicas ou jurídicas. Ou seja, esse direito, quando do surgimento do Estado Nacional (que é um dos marcos do fim da Idade Média), passou a ser um direito interno - da mesma forma que é interno o direito constitucional ou o direito administrativo. Consequentemente, como ele é interno, é potencialmente diferente dos demais, de forma que na atualidade existem mais de duzentos distintos direitos internacionais privados (sem levar-se em consideração, aqui, as unidades territoriais dos EUA com suas peculiaridades federalistas). 

É importante mencionar que o desenvolvimento conquistado pelas cidades-repúblicas do norte da Itália, já por volta do século XIII, foi de tal ordem que elas passaram a promulgar as suas leis específicas (denominada de “estatutos”), legislações que diferiam de cidade para cidade, enquanto ainda conviviam outras com o direito romano e o direito germânico.  Fortaleceu-se aí a necessidade de fixar-se qual a lei que deveria ser aplicada numa cidade a um caso concreto envolvendo indivíduos daquela e de outra localidade. Fatos similares também passaram a acontecer em outros países, como na Alemanha, França, Holanda e Inglaterra. 

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Entre os séculos XIV até XVIII o estudo de tais estatutos e respectivos conflitos regionais levaram à formação de várias teorias voltadas à solução de litígios entre particulares, com a consequente criação das intituladas “escolas estatutárias”, das quais emanaram inúmeras regras doutrinárias objetivando dar solução adequada às diversas espécies de conflitos de leis. Destas, as mais famosas escolas estatutárias foram a italiana (século XIII/XIV), a francesa (século XVI) e a holandesa (século XVII). Alguns autores apontam uma quarta escola, ora identificada por alemã ou como segunda escola francesa (século XVIII), mas que nada inovou em assuntos de Direito Internacional Privado.

Dentre todas, pode-se apontar que o sistema estatutário mais prático foi o italiano (norte da Itália).  Coube aos estatutos italianos a criação dos primeiros instrumentos voltados à solução de casos jurídicos entre pessoas sujeitas a legislações diferentes, que hoje se denominam “regras ou elementos de conexão”.  No contexto da escola italiana emergiram dois grupos de estudiosos, os glosadores (face as glosas apostas a antigos textos romanos) e os pós-glosadores (também conhecidos por “comentaristas”)[3]. Estes últimos instituíram valiosa distinção entre regras processuais (regidas pela lei do foro) e regras de fundo (aplicação da lei do local da realização do ato jurídico), além de estipularem que os delitos se submetem à lei do local onde forem cometidos.

Em resumo, eis os sistemas italianos para soluções nos casos de conflitos interespaciais:  

  1. para os bens imóveis  - aplica-se a lei do lugar (“lex loci”) onde tais bens se encontravam (“lex rei sitae”);
  2. na sucessão  -  a lei de domicílio do  “de cujus”;
  3. no testamento – as formalidades obedecem à lei do lugar onde elaborado o ato de última vontade;
  4. na validade dos contratos e seus efeitos  - a “lei do lugar” onde foi celebrado o contrato (quanto às obrigações decorrentes); e, a “lei do lugar” da execução do contrato (quanto à negligência ou mora na execução); 
  5. no processo  -  diferenciando-se aqui a parte procedimental  (desdobramentos do processo),  a qual se  regia  pela  “lex fori”   (ou seja, a lei do tribunal  que vinculava o feito),  e a  sentença judicial, que se submetia  à “lei do lugar” em que o ato jurídico se efetuava;
  6. nos delitos  -  deviam subordinar-se à lei territorial  (“lex loci”). 

A Escola Francesa, por seu turno, se desenvolveu no século XVI, tendo como principais representantes Charles Dumoulin, que elaborou a teoria da autonomia da vontade, e Bernard D’Agentré, que advogou a tese do territorialismo.

Já na Escola Holandesa (século XVII), que, almejando a independência, optou por acolher e radicalizar a teoria territorialista de D’Argentré, os principais expoentes foram Paul e Jean Voet, Christian Rodenburg e Ulrich Huber, tendo este último se notabilizado pela tese da “comitas gentium” (cortesia internacional), como única forma de se permitir a aplicação extraterritorial das leis internas. 

Com a evolução dos sistemas jurídicos dos países, principalmente europeus, fato ocorrido só por volta do século XIX, é que o Direito Internacional Privado ganhou o caráter de ciência jurídica, notadamente pelo surgimento dos dois de seus maiores doutrinadores, até hoje assim considerados: o americano Story e o alemão Savigny.

O nome da disciplina, aliás, se deve ao juiz da Suprema Corte e professor de Harvard, Joseph  Story, que cunhou a expressão “Private International Law” [4], além de estabelecer duas máximas fundamentais nesta matéria: a) cada nação decide autonomamente em que medida deve aplicar o direito estrangeiro; b) é de interesse mútuo admitir o direito de outro país, ou seja, um governo deve procurar fazer  justiça aos nacionais de outro país, para que seus nacionais também tenham justiça naquele país estrangeiro.  Essa questão recebeu influência da escola holandesa, que propagara a ideia da cortesia internacional (a “comitas gentium”). [5]

Destacou-se, também, nesse período, o jurista Friedrich Carl Von Savigny, que desenvolveu a “teoria da recepção do direito”, calcada na ideia de que os povos civilizados têm que enfrentar os mesmos problemas e, por isso, há a necessidade de se compor um direito que atenda as exigências comuns para os principais problemas. Para ele, diante da ampliação do interrelacionamento entre povos diversos, o interesse estatal e individual exige uma igualdade no tratamento de questões jurídicas conflitantes, com a padronização de soluções idênticas em qualquer país onde se der o julgamento.

Para F. von Savigny, ao se deparar com um confronto ou concorrência de leis no espaço, cabe ao Direito Internacional Privado investigar e descobrir a qual legislação/direito cada relação pertence, ou seja, cabe-lhe determinar a sede de cada relação jurídica [6]. Neste ponto, destaca-se por inestimável a contribuição de Savigny, pois toda relação jurídica que se correlacione com direitos estrangeiros necessariamente demonstra uma sede ou centro de gravidade, cabendo à lei do lugar da análise apontar a fórmula que sirva à solução do caso concreto. Ainda a respeito de Savigny, cite-se que foi ele quem defendeu a tese de que os indivíduos devem se submeter à “lei do domicílio”, o qual deve regular o estado e a capacidade das pessoas, assim como o direito de família.

Também se notabilizou no século XIX o jurista e professor italiano Pasquale Stanislao Mancini, mentor do moderno Direito Internacional Privado italiano, o qual defendeu como principal critério de conexão a nacionalidade, entendendo-se que as regras de interesse individual são aplicáveis a todas as pessoas por sua nacionalidade, não importando o lugar onde estejam.

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Sobre o autor
Wagner Rocha D'Angelis

Advogado, historiógrafo e professor universitário. Mestre e Doutor em Direito. Especialista em Direito Internacional, Mercosul e Direitos Humanos. Ex-Coordenador do Grupo Especial de Defesa dos Direitos Humanos do Estado do Paraná e ex-Presidente da Comissão Estadual de Direitos Humanos da OAB-PR. Presidente da Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL) e presidente do Centro Heleno Fragoso pelos Direitos Humanos (CHF). Membro Titular do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná (IHGPR), do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e da Comissão de Estudos sobre Violência de Gênero da OAB – Seccional do Paraná (CEVIGE). Jurista com várias obras publicadas, dentre as quais: Direitos Humanos - A luta pela Justiça (Rio de Janeiro: CVBJP / Educam), Direito da Integração & Direitos Humanos no Século XXI (Curitiba: Juruá) e Direito Internacional do Século XXI - Integração, Justiça e Paz (Curitiba: Juruá).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

D'ANGELIS, Wagner Rocha. Direito internacional privado: fundamentos e desenvolvimento histórico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5316, 20 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/59913. Acesso em: 24 nov. 2024.

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