4. A litigiosidade crescente e o agravamento da crise do Poder Judiciário: os dados do Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça
O relatório “Justiça em Números”, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, revelou que tramitam aproximadamente cem milhões de processos judiciais no Brasil com perspectiva de crescimento do acervo processual.
A referida pesquisa constatou de forma contundente que o quantitativo de processos aumentou 30% em um ano, tendo sido ajuizados mais 28 milhões de feitos no ano de 2014, os quais não foram julgados e arquivados na mesma proporção, aumentando-se ainda mais o estoque de demandas pendentes.
De acordo com o relatório, a série histórica da movimentação processual do Poder Judiciário permite visualizar o aumento contundente do acervo processual no período, visto que os casos pendentes (70,8 milhões) crescem vertiginosamente desde 2009 e, atualmente, equivalem a quase 2,5 vezes do número de casos novos (28,9 milhões) e dos processos baixados (28,5 milhões).
Dessa forma, mesmo que o Poder Judiciário fosse paralisado sem ingresso de novas demandas, com a atual produtividade de magistrados e servidores seriam necessários, no mínimo, 02 anos e meio de trabalho para que se julgasse todo o estoque. Entretanto, como não se julga sem contraditório, antever o tempo para sentenciar um processo é pura alquimia, o encontro da pedra filosofal. Como historicamente a entrada de processos é sempre superior à saída, a tendência é de crescimento do acervo. Além disso, apesar do aumento de 12,5% no total de processos baixados no período 2009-2014, os casos novos cresceram em 17,2%, fato que contribuiu para o acúmulo do estoque de processos.
Ou seja, mesmo diante de todo o arcabouço legislativo introduzido para a melhoria do Sistema de Justiça no Brasil, o Poder Judiciário não consegue reduzir nem o quantitativo de processos ajuizados, aumentando ano a ano o número de casos pendentes.
Na Justiça Federal, por exemplo, tramitam aproximadamente 12 milhões de demandas, o que gera a carga de trabalho absurda e desumana de aproximadamente 7.000 processos por magistrado. E, a despeito do congestionamento, a Justiça Federal brasileira é um dos ramos mais produtivos do Poder Judiciário, uma vez que cada um dos seus magistrados resolve de forma definitiva uma média de 2.113 processos por ano, segundo dados do Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça divulgado em 2015.
Os cinco tribunais regionais federais do país registraram aumento de demanda processual de 20,8% apenas em 2014, segundo aponta o referido relatório Justiça em Números. O levantamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça – CNJ registrou que, depois de anos de relativa estabilidade, com variação de 3% entre 2009 e 2013, o total de processos novos na Justiça Federal chegou a 4 milhões em 2014, um aumento de 700 mil casos em relação a 2013.
Esse cenário demonstra que, embora tenham sido criados por lei diversos mecanismos que se prestam a fomentar a racionalidade na utilização do serviço judiciário, a exemplo do processo eletrônico e das novas técnicas de julgamento dos recursos extraordinários (repercussão geral) e especiais (recursos repetitivos) já referidas, a perspectiva concreta e realista não é de redução de acervo e, principalmente, não é de celeridade processual, estando longe disso.
Com o atual quantitativo de demandas, torna-se distante a concretização dos direitos à razoável duração do processo e à efetividade da jurisdição, mesmo com o incremento de recursos materiais, o que confere à população tão somente a possibilidade de mero ajuizamento de demandas judiciais - um acesso à justiça meramente formal -, e não a solução célere e efetiva dos conflitos.
O Brasil vive um crescimento exponencial da sua litigiosidade e a crise, nesse cenário que se apresenta, não será remediada e tampouco atenuada pela nova legislação processual que não ataca diretamente a causa do problema.
5. A morosidade dos tribunais – ineficácia prática da criação de novas técnicas de julgamento para agilização dos processos
Outro ponto relevante, que não pode ser ignorado na presente análise, relaciona-se com o papel e a atuação prática dos tribunais diante das novas técnicas de julgamento já implementadas para “remediar” a crise de morosidade da Justiça.
Tal abordagem se faz necessária para verificar, a partir de diagnósticos do Poder Judiciário, se, de fato, a concentração nos tribunais do poder de decisão dotado de eficácia vinculante e erga omnes a partir de inovações de técnicas de julgamentos repercute necessariamente na celeridade da prestação jurisdicional e na uniformização da jurisprudência – tônica das reformas legislativas.
No relatório da pesquisa Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça de 2005, anterior à reforma processual, foi diagnosticada uma alta sobrecarga dos tribunais em face do nível de recorribilidade das decisões judiciais. Somando-se os casos novos que ingressaram no 2º grau com o número de casos pendentes de julgamento, e dividindo-se este montante pelo número de magistrados, chegou-se aos seguintes denominadores referentes à carga de trabalho:
Média nacional por magistrado/ministro:
Justiça comum federal (TRF’s): 23.321 casos (processos ou recursos) por magistrado, em 2ª instância.
Justiça estadual (TJ’s): 1.221,41 casos (processos ou recursos) por magistrado, em 2ª instância.
STF: de 25.367 processos por ministro, em 2005.
Constatou-se, ainda, que um quantitativo elevado de processos se refere apenas a alguns temas e poucos litigantes, principalmente na Justiça Federal, onde os números de demandas repetitivas (em matéria tributária e previdenciária, por exemplo) e propostas por ou contra o poder público são expressivos.
Ou seja, mesmo se tratando de ações que envolvem poucos litigantes e temas repetitivos, os tribunais de 2º grau no âmbito da Justiça Federal não conseguem julgá-las em tempo razoável, estando o contingente de processos em constante elevação.
O relatório da Justiça em Números divulgado, em 2015, pelo CNJ destaca o aumento da taxa de congestionamento nos tribunais federais para 70,5% em 2014, maior índice da série histórica correspondente ao período de 2009 a 2014. Vale dizer, de cada 100 (cem) processos em tramitação nos tribunais federais, aproximadamente 70 (setenta) não tiveram solução definitiva, o que demonstra a situação alarmante do congestionamento da 2ª instância.
A situação não é diferente nos tribunais superiores, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, que, mesmo diante de novas técnicas de aceleração de julgamentos, não conseguiram diminuir a litigiosidade e, principalmente, não conseguiram, até o presente momento, uniformizar as teses jurídicas – papel que lhes foi atribuído pela Constituição.
De acordo com o relatório de 2015 do CNJ, o Superior Tribunal de Justiça iniciou o ano de 2014 com um estoque de 351.450 processos, quase 12% a mais do que no ano anterior. O número de processos baixados no ano e a produtividade tanto de servidores da área judiciária quanto de ministros diminuíram em relação ao período anterior. Com isso, estima-se que, ao final de 2014, o estoque tenha crescido 11%, mantendo a tendência histórica de crescimento do acervo.
Numa pesquisa feita no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no período de outubro de 2014 a janeiro de 2015, constatou-se que a demora na resolução dos recursos repetitivos no Superior Tribunal de Justiça e da Repercussão Geral no Supremo Tribunal Federal somente faz crescer o número de processos sobrestados ou suspensos na Presidência ou Vice-Presidência dos Tribunais de Justiça e nos Tribunais Regionais Federais brasileiros, tornando esses institutos inócuos em relação à finalidade para a qual foram criados.
De acordo com dados informados pelo próprio Supremo Tribunal Federal, desde 2007, ou seja, num período de uma década, a Corte julgou 354 temas com repercussão geral, apenas 55% dos 642 casos que tiveram a repercussão geral reconhecida até julho de 2017.
No primeiro semestre de 2017, foram julgados apenas 36 recursos com repercussão geral. A demora dos julgamentos, gerando o sobrestamento de milhares de processos por prazos indefinidos, atenta contra o Direito, por violentar a segurança jurídica, a previsibilidade decisória almejada pelo instituto e, igualmente, a duração razoável do processo.
O problema da ineficiência dos tribunais é muito bem ilustrado pelo estudo de caso realizado pela juíza federal Vânila Moraes acerca das demandas repetitivas referentes à cobrança do reajuste de 28,86% por servidores públicos federais. Identificou-se que o tempo entre o surgimento do conflito – na situação específica, a violação à isonomia ocorreu em junho de 1993 com a concessão do referido reajuste apenas aos militares – e a decisão do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a repercussão geral do tema em 06 de outubro de 2010, transcorreram mais de dezessete anos. No caso, o Poder Público insistiu em recorrer às Cortes Superiores, embora já existisse, desde 2000, súmula da própria Advocacia-Geral da União no sentido da concessão do reajuste.
A situação se repete em relação a vários outros temas controvertidos pendentes de análise nos tribunais superiores, demonstrando que as modificações legislativas não conseguiram acelerar os julgamentos.
É certo que o CPC/2015 não resolverá o problema de represamento dos processos e da demora dos tribunais para o julgamento das temáticas relevantes. Aliás, antes mesmo da sua entrada em vigor, foi publicada a Lei n. 13.256, de 04 de fevereiro de 2016, modificando o art. 12 no intuito de flexibilizar o critério da ordem cronológica para julgamento dos processos. Sem sucesso, contudo, porque a interposição da palavra “preferencialmente” com a intenção de conferir discricionariedade ao órgão julgador não prospera. A ultrapassagem na ordem cronológica pressupõe fundamentação clara sobre as razões autorizativas. Do contrário, há violação à isonomia e à impessoalidade, favorecendo alguns em detrimento de vários desafortunados.
A referida lei também suprimiu o §10º do artigo 1.035 e o §5º do artigo 1.037. Os referidos dispositivos estabeleciam um marco temporal de duração da suspensão de processos em todo território nacional prevista no artigo 1.037, II, o que poderia induzir maior agilidade dos tribunais superiores no julgamento dos recursos repetitivos, impedindo que tal suspensão se eternizasse pela mora dos tribunais ao julgar os recursos.
Em face da revogação dos prazos limites, o sistema de julgamento de recursos pelos tribunais superiores pode manter, sem qualquer sanção ou filtro, a situação de suspensão de centenas de milhares de processos por prazo indeterminado. Isso significaria uma verdadeira cláusula de barreira que atende àqueles que lesam o direito de toda a sociedade, as concessionárias de serviço público, as instituições financeiras, o Estado, os corruptos, inviabilizando direitos e garantias fundamentais, o mais básico de todos os direitos humanos, conforme Cappelletti, o do pleno acesso à justiça.
A garantia de acesso à justiça não deve ser entendida como a mera admissão do processo ou a possibilidade de ingressar em juízo; é sim, a garantia de que os cidadãos possam demandar e defender-se adequadamente em juízo, isto é, ter acesso à efetividade no processo com os meios e recursos a ele inerentes de modo a obter um provimento jurisdicional justo, construído em tempo razoável a partir do amplo debate e participação democrática dos sujeitos interessados.
Sem olvidar, ainda, de que isto poderá causar uma perniciosa e inconstitucional discricionariedade dos tribunais superiores em escolher quando determinadas temáticas deverão ser dirimidas e quando deverão ser mantidas em suspensão.