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Risco proibido e risco permitido: a adoção da teoria da imputação objetiva pelo projeto de novo Código Penal

02/09/2017 às 16:06
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O Projeto de Lei 236 do Senado é alvo de diversas críticas, uma vez que sua construção, apesar das inúmeras sugestões populares, tem sido considerada antidemocrática, renegando as sugestões por parte de grandes estudiosos do Direito Penal.

RESUMO: O presente estudo discutirá os possíveis impactos da adoção da Teoria da Imputação Objetiva pelo Projeto de Lei 236/2012, oriundo do Senado Federal, que instituirá um novo Código Penal brasileiro. Para tanto, serão colacionados estudos doutrinários a respeito da teoria, sua evolução, variantes e críticas. Ao final, analisar-se-á a legitimidade da escolha legislativa em detrimento das diversas perspectivas teóricas existentes e pelo período de maturação pelo qual ainda vem passando.

Palavras-chave: Imputação Objetiva, Projeto Legislativo, Novo Código Penal.


1. INTRODUÇÃO

A atividade legislativa brasileira nos últimos tempos vem aumentando de forma significativa, acompanhando as reações sociais e interesses de certas categorias. No âmbito penal tal constatação se torna ainda mais evidente, tendo em vista a crescente onda de criminalidade e as novas atividades nocivas ao interesse dos cidadãos, que demandam novas tipificações com escopo de salvaguardar os mais preciosos bens jurídicos.

Nesta senda, o atual Código Penal brasileiro (Decreto-Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940) passou por diversas reformas, sendo que sua parte geral fora totalmente reformada em 1984 pela Lei 7.209/84, de forma a acompanhar as tendências do Direito Penal moderno e da política criminal.

A parte especial do código também ganhou reformas esparsas, incluindo tipos penais e revogando outros que não mais se adaptaram as dinâmicas da sociedade. Assim, visando uma reforma global, fora apresentado ao Senado o Projeto de Lei n° 236/2012 com vistas à aprovação de um novo Código Penal, totalmente reestruturado, sendo que tal diploma conta com mais de quinhentos artigos e inúmeras críticas da doutrina especializada.

Uma das maiores inovações da proposta legislativa em debate diz respeito à adoção da Teoria da Imputação Objetiva, formulada pelas contribuições de Claus Roxin, Günther Jakobs e outros penalistas de grande renome, e que pressupõe a necessidade da criação de um risco relevante com alcance no tipo e que esse risco se realize no resultado concreto, a fim de implicar em sanção penal. Tal fórmula vem adotada expressamente no artigo 14, parágrafo único, do referido projeto, contando com entusiastas e críticos contumazes.

O debate ganha relevância na medida em que o Projeto de Lei n° 236/2012 encontra-se em análise pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania e conta com severas críticas de parte da doutrina.

O presente estudo visa contribuir para com a comunidade jurídica brasileira em face dos debates em torno do nóvel diploma legislativo, em especial quanto aos possíveis impactos que a adoção de tal teoria possa acarretar no ordenamento jurídico, avaliando perspectivas favoráveis e contrárias ao projeto legislativo em comento.

Para tanto, esta investigação será dividida em duas partes: a primeira analisará a Teoria da Imputação Objetiva quanto à sua evolução, postulados e variantes; a segunda parte versará sobre a fórmula legislativa adotada, analisando perspectivas e críticas.


2. RELAÇÃO DE CAUSALIDADE E IMPUTAÇÃO OBJETIVA

Os avanços na dogmática penal dos últimos tempos e suas diversas formulações teóricas implicaram em notáveis avanços para a teoria geral do delito. Superada a fase da responsabilidade penal objetiva e inaugurada a fase humanística, calcada no princípio da culpabilidade, o Estado passou a ver limitado seu poderio quase infinito na delimitação da sanção penal. Nessa perspectiva, as construções doutrinárias representaram importante contribuição para a humanização do Direito Penal.

Quanto às diversas teorias que surgiram ao longo dos tempos, tem-se que as perspectivas causalistas, baseadas nas ciências naturais e na mecanicidade do comportamento, propunham a fundamentação do tipo no conceito de causalidade, bastando que a constituição de uma condição fosse apta a causar o resultado, calcando seus postulados na teoria da equivalência dos antecedentes (ROXIN, 2012).

Todavia, tal perspectiva de imputação poderia ocasionar a ampliação do tipo para abarcar todos os eventos que, de algum modo, contribuíram para o evento criminoso. Assim, o problema do regresso ad infinitum haveria de ser resolvido no campo da antijuridicidade ou da culpabilidade. O finalismo de Hans Welzel propôs que a ação humana delituosa não seria produto da mera causação, mas sim do direcionamento do agente para uma finalidade ilícita. Assim, segundo o referido autor:

A ação humana é exercício de uma atividade final. A ação é, portanto, um acontecimento final e não puramente causal. A finalidade, o caráter final da ação, baseia-se no fato de que o homem, graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as possíveis consequências de sua conduta, designar-lhe fins diversos e dirigir sua atividade, conforme um plano, à consecução desses fins (WELZEL, 2009, p. 29).

O sistema finalista, inspirado na capacidade de autodeterminação e direcionamento final da ação, propõe que a causalidade não é suficiente para ensejar responsabilidade criminal, necessitando, pois, de uma finalidade ilícita na realização do ato. Tal vertente teve o mérito de evitar o regresso ao infinito do sistema causalista, uma vez que o dolo passa a ser analisado no tipo (ROXIN, 2012).

Embora o finalismo de Hans Welzel tenha tido o mérito de fixar uma base subjetiva na verificação da conduta (imputação subjetiva), ainda manteve o tipo objetivo preso à causalidade nos moldes da teoria da equivalência das condições.

Para Damásio E. de Jesus (2011) há um declínio do prestígio da causalidade material, ilustrando tal constatação com um exemplo: No Bairro de Zähringen, em Freiburg, na Alemanha, há um bosque conhecido pelas inúmeras descargas elétricas ocorridas durante as tempestades. O sujeito, sabendo do perigo que possa ocasionar a visita a tal local, induz seu pai a fim de que este seja fulminado por uma descarga e morra, com vistas a receber a herança.

Pela teoria dos antecedentes causais o induzimento foi a condição sem a qual o resultado não teria ocorrido. Aplicando-se o princípio da eliminação hipotética e excluindo-se o induzimento a morte seria evitada, respondendo o agente por homicídio doloso. Segundo Damásio E. de Jesus (2011) tal imputação é inválida, pois o sujeito se aproveitou de riscos existentes na vida social (risco permitido) e não pela criação do perigo pelo agente.

Visando combater a causalidade puramente material, a Teoria da Imputação Objetiva surge como alternativa ao nexo naturalístico da causação e teve por alguns dos precursores Larenz, Honig e Claus Roxin, sendo que este último publicou diversos artigos sobre o tema na década de 70 (CALLEGARI, 2014).

Atualmente existem diversas vertentes desta teoria, sendo as mais difundidas as de Claus Roxin e Günther Jakobs. Na perspectiva de Roxin (2012, p. 104) a imputação objetiva pode ser entendida como:

Um resultado causado pelo agente só deve ser imputado como sua obra e preenche o tipo objetivo unicamente quando o comportamento do autor cria um risco não permitido para o objeto da ação (1), quando o risco se realiza no resultado concreto (2) e este resultado se encontra dentro do alcance do tipo (3).

Tem-se, portanto, que sob esta vertente, o resultado típico somente terá atributividade ao autor se este agiu com base em um risco proibido e este se verifica em um resultado concreto dentro da abrangência típica.

O risco permitido pode ser entendido como aquele inerente à vida em sociedade. Com a evolução das ciências e a mutabilidade das relações sociais, novas atividades surgem e demandam maiores deveres de cuidado e, em contrapartida, riscos para os bens jurídicos alheios. Assim, pondera Damásio E. de Jesus (2011, p. 320):

Quando o ordenamento jurídico permite e regula a construção de uma ponte ou a fabricação de um automóvel, um avião, um navio, uma arma de fogo etc., o legislador tem consciência de que a utilização desses bens, ainda que de forma normal, carrega riscos a interesses que ele mesmo pretende proteger.

Logo, quem pratica uma atividade de risco, tolerada pelo Estado e pela sociedade, não pode ser responsabilizado se agiu dentro desse grau de tolerância. Vige o princípio da confiança, pelo qual “pode-se confiar em que os outros se comportarão conforme o direito, enquanto não existirem pontos de apoio concretos em sentido contrário, os quais não seriam de afirmar-se diante de uma aparência suspeita” (ROXIN, 2012, p. 105).

O risco proibido é o desvalor da ação e a criação de um perigo reprovado pelo ordenamento e, a princípio, implica em tipicidade da conduta, seja dolosa ou culposa. Afinal, “o perigo é o mesmo para todas as espécies de infrações penais” (JESUS, 2011, p. 321).

Por sua vez, o alcance do tipo inclui o gênero do resultado produzido (JESUS, 2011), ou seja, excluindo resultados que estão fora do alcance da proteção da tipificação penal (SANTOS, 2015).

Na vertente de Günther Jakobs, adotada por André Luís Callegari (2014), tem-se que a imputação objetiva possui as seguintes instituições dogmáticas: risco permitido, proibição de regresso e imputação ao âmbito de responsabilidade da vítima.

O risco permitido pressupõe uma conduta aceita pela generalidade de pessoas que interagem no meio social. Assim, tem-se que:

No marco da realização de atividades arriscadas existem determinados espaços que desde o princípio não se encontram abarcados pelas normas penais de comportamento por responder a uma configuração vital que é tolerada de modo geral; as condutas realizadas nesse marco estão cobertas por um risco permitido (CALLEGARI, 2014, p. 68).

São condutas que constituem indiferentes penais (não abrangidas pelo campo penal) justamente pelo fato de que são aceitas com naturalidade pela comunidade ainda que provoquem riscos a bens jurídicos.

A proibição de regresso evita que um comportamento inócuo implique participação em um delito, ou seja, um comportamento que não viola o papel social do cidadão não pode ser tido por típico caso o outro sujeito da relação incorpore um vínculo em uma “organização não permitida”. Assim, um comportamento “estereotipado” não sujeita o autor ao vínculo da imputação caso reste estabelecido que não haja comportamento em comum (CALLEGARI, 2014).

Por fim, a responsabilidade da vítima pode ser determinante em relação ao sistema de imputação. Tal instituto é verificado quando “o titular de um bem jurídico (“vítima”) empreende conjuntamente com outro (“autor”) uma atividade que pode produzir uma lesão desse bem jurídico” (CALLEGARI, 2014, p. 75).

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A vítima tem papel fundamental no resultado, diferindo da proibição de regresso em que a contribuição do autor é inócua, não havendo comportamento conjunto. Na responsabilidade da vítima “é precisamente o fato de que atividade conjunta pode ser atribuída ao responsável preferente – o titular dos bens – o que permite afirmar a falta de tipicidade da conduta do autor” (CALLEGARI, 2014, p. 73).

Além destas perspectivas, há outras diversas construções a respeito do tema. Assim, por exemplo, as ações que diminuem o risco não são imputáveis ao tipo objetivo, ainda que sejam causas de um resultado concreto sob a perspectiva causal e sejam cobertas pela consciência do agente responsável por essa diminuição (ROXIN, 2012). Da mesma forma, há a incidência da imputação caso o sujeito amplie o risco já existente ou exceda as limitações do risco tolerado (JESUS, 2011).

As diversas questões em torno dessa nova sistemática da teoria geral do delito vêm repercutindo no ordenamento jurídico pátrio, contando com entusiastas e críticos. O debate tende a ser ampliado, uma vez que o projeto de novo Código Penal a adota expressamente. Tal conjuntura será analisada no item seguinte.


3. A OPÇÃO LEGISLATIVA E A CRÍTICA DOUTRINÁRIA

Como qualquer novidade no campo das ciências jurídicas a possibilidade de aprovação de um novo código gera incertezas, críticas e elogios. A mais recente tentativa de inovação legislativa, o Projeto de Lei do Senado n° 236, visa a instituição de um novo Código Penal, pondo fim ao atual código elaborado na década de 1940 e reformado em 1984, ganhando uma nova parte geral, além das reformas esparsas na parte especial.

Entre os diversos pontos polêmicos, tem-se a adoção expressa da teoria da imputação objetiva, cuja previsão encontra-se no artigo 14 e parágrafo único do referido projeto:

Art. 14. A realização do fato criminoso exige ação ou omissão, dolosa ou culposa, que produza ofensa, potencial ou ofensiva, a determinado bem jurídico. Parágrafo único. O resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo.

Os reformadores elegeram a imputação objetiva como o “centro filosófico do sistema penal” (LEITE, 2015). Assim, a imputação do resultado passa a ser condicionada a uma criação ou ampliação de um risco relevante com alcance dentro do tipo penal.

O problema em se adotar uma teoria recente e com diversas variantes logo mobilizou parte da doutrina que teceu diversas críticas. Nesse sentido, Alaor Leite (2015, p. 22) afirma que nem o próprio Claus Roxin, um dos precursores da imputação objetiva, “chegaria ao delírio de impô-la como ‘centro filosófico’ ao legislador e de fazê-la vigorar, em uma de suas variantes, de forma cogente no país”.

Afinal, nem sequer a Alemanha tem uma fórmula igual ao do projeto. Insta salientar que o próprio Roxin fora coautor da reforma operada pelo Projeto Alternativo de Código Penal alemão de 1966 e que implicou na reforma de 1975 do referido diploma e, em momento algum, entendeu ser necessária a inclusão de um dispositivo tal qual se encontra no projeto brasileiro (LEITE, 2015).

Conforme anteriormente destacado, a imputação objetiva teve suas origens nos trabalhos de Larenz e Honig, por volta de 1927 e 1930 (QUEIROZ, 2014) e de Claus Roxin em diversos artigos publicados na década de 70 (CALLEGARI, 2014). Devido à suas recentes construções, há quem proponha que a controversa teoria não deva ser positivada:

Não se adotam teorias controvertidas em textos legais, um imperativo de conhecimento geral dirigido aos legisladores, tal como aquele que determina que não se devem fazer piadas em velório. Talvez esse singelo exemplo fosse mais eloquente do que os empréstimos de termos cujo conteúdo nossos reformadores parecem desconhecer (LEITE, 2015, p. 22).

Assim, tem-se que, segundo esta perspectiva, não seria viável a adoção de uma fórmula em particular de imputação, uma vez que a doutrina não é uníssona quanto à adoção de uma ou de outra modalidade da teoria.

Para Juarez Cirino dos Santos (2015) a definição de fato criminoso constante no artigo 14 do projeto é boa, porém peca ao assumir a imputação objetiva, uma vez que os conceitos adotados ainda estão em formação ou são indetermináveis. Ressalta o ilustre autor que a linguagem utilizada é imprecisa, causando perplexidades no aplicador e destinatário da norma. Tal crítica é acompanhada por Juarez Tavares, para quem a fórmula criada por Roxin foi erroneamente empregada pelo projeto. Assim, afirma que:

O ensinamento de Roxin não foi adotado de maneira definitiva e correta; foi traçado indevida e incorretamente. Vou ler novamente o dispositivo, o qual diz o seguinte: “o resultado exigido somente é imputável a quem lhe der causa e se decorrer da criação ou incremento de risco tipicamente relevante, dentro do alcance do tipo”. Primeiramente, há uma manifesta redundância: “tipicamente relevante” e “dentro do alcance do tipo”. Claro, se é tipicamente relevante só pode estar dentro do tipo; onde estaria? Que linguagem escorreita! (TAVARES, 2015, p. 62).

Além da redundância, alerta o supracitado autor, as expressões “criação” e “incremento” são sinônimas, fruto da tradução errônea da obra de Roxin. Ademais, a expressão “risco tipicamente relevante” estaria equivocada, eis que não é o risco que é tipicamente relevante, mas sim o risco juridicamente relevante ou não autorizado, pois nem sempre a violação de determinado risco é típica, como avançar um sinal vermelho sem ocasionar um acidente (TAVARES, 2015).

Também há críticas quanto ao “alcance do tipo” que está relacionada às hipóteses de auto ou heterocolocação em perigo, da assunção de responsabilidade pelo exercício de certas funções ou pelo critério da autorresponsabilidade, uma vez que não foi bem esclarecida pelo legislador que se utilizou de termos genéricos. Nesse sentido, tem-se a seguinte crítica:

Uma argumentação jurídica não pode se resumir, assim, a indicar elementos genéricos, como o alcance do tipo. Deve esclarecer melhor como esse elemento deverá limitar a imputação. Caso contrário, o enunciado legal de nada serviria ao intérprete, que só poderia decidir acerca de seu alcance em face do fato concreto. A referência ao alcance do tipo, em virtude de sua imprecisão terminológica, constitui, como está, uma cláusula puramente programática sem utilidade (TAVARES, 2015, p. 64).

Talvez a maior crítica ao disposto no artigo 14, parágrafo único, do projeto de código seja a imprecisão dos termos aplicados e da redação que pouco esclarece a respeito dos institutos. Para Luís Greco a inovação é desnecessária, embora não seja nociva, propondo as seguintes sugestões:

Primeiramente, qualificar o risco de “proibido” ao invés de “tipicamente relevante”, porque algo que é pressuposto do tipo não pode, por sua vez, pressupor tipicidade; segundo, suprimir a passagem “dentro do alcance do tipo”, uma vez que apenas um autor dentro os inúmeros defensores da teoria reconhece a exigência desse requisito. Não é adequado que um Código se filie a opiniões isoladas, máxime quando elas pouco diferem substancialmente da opinião mais aceita (GRECO, 2015, p. 108).

De fato, adotar um critério isolado na doutrina, ainda que provindo de Claus Roxin, é renegar as diversas variantes tão boas quanto esta. Resta evidente o erro legislativo em restringir determinados institutos a um posicionamento de um único autor, uma vez que o Direito Penal é construído democraticamente pela doutrina e jurisprudência.

Distanciando-se das inúmeras falhas legislativas do projeto e analisando a teoria em si, percebe-se ainda certa rejeição por parte da doutrina. Enrique Gimbernat Ordeig, por exemplo, critica a imputação objetiva no que toca aos crimes culposos, pois:

Se o agente se mantém dentro do risco permitido, não há imputação objetiva simplesmente porque não existe culpa alguma, já que o autor, atuando dentro do risco socialmente tolerado, não infringe, assim, o dever objetivo de cuidado, de sorte que não é necessário apelar à teoria da imputação objetiva (QUEIROZ, 2014, p. 237).

Assim, o risco permitido resume-se a ausência de imprudência, negligência ou imperícia, ou seja, de culpa. Constitui, pois “uma proposta de nova linguagem jurídico-penal para solução de velhos problemas” (QUEIROZ, 2014, p. 239), pois a violação objetiva de um cuidado passa a ser o risco desaprovado e o nexo de antijuridicidade passa a ser a realização do risco.

Claus Roxin elenca como opositores da teoria Armin Kaufmann e Struensee, e mais recentemente, Hirsch e Küpper, sendo que:

Uma recusa, em princípio, à imputação objetiva encontra-se hoje somente entre reduzido círculo dos finalistas, os quais não desejam levar a cabo a exposta mudança do ponto de gravidade dogmático para o tipo objetivo, e sim manter a dominância do lado subjetivo do tipo, favorecido pela teoria finalista da ação (ROXIN, 2012, p. 126).

 De fato, as vozes mais resistentes à adoção da imputação objetiva advêm do finalismo de Hans Welzel, uma vez que a doutrina da ação final é centrada na subjetividade da conduta, mas continua presa à causalidade da teoria equivalência das condições. No mesmo sentido, André Luís Callegari afirma que:

Nessa evolução também constitui-se um fato surpreendente: o de que apenas se tenha que constatar a existência de resistências teóricas na doutrina; se se prescinde de algumas vozes críticas provenientes do campo do finalismo, é chamativa a facilidade com que a nova doutrina foi incorporada a diversas construções dogmáticas (CALLEGARI, 2014, p. 65).

Todavia, as ideias finalistas estão há muito tempo consolidadas, tendo sido incorporadas aos diversos ordenamentos jurídicos, inclusive adotada em diversos aspectos pelo atual Código Penal. De outro lado, as tendências funcionalistas e a moderna imputação objetiva começam a ganhar corpo em diversos países europeus e adeptos na América Latina e no Brasil. A explicação para a celeuma entre adeptos e opositores talvez esteja calcada na sua construção recente, cujos postulados estão em constante construção e revisão:

Na realidade, sob o verniz unificador que lhe outorga seu surpreendente êxito, a teoria da imputação objetiva ainda não se encontra firmemente assentada. E isso não só porque o tempo transcorrido é curto para consolidar uma série de instituições dogmáticas concretas, mas por uma razão de fundo: porque não está claro o conceito de imputação objetiva, a própria idiossincrasia teórica dessa evolução dogmática (CALLEGARI, 2014, p. 65-66).

Em todo caso, conforme alerta Paulo Queiroz (2014), a imputação objetiva é importante na medida em que visa responder de forma adequada a uma pretensão garantista de política criminal. Qualquer tentativa teórica que vise aumentar o nível de proteção às garantias fundamentais e a uma melhor forma de determinação da responsabilidade criminal merece respaldo, mas desde que devidamente discutida pela comunidade jurídica. Atribuir unilateralmente a um texto legal determinada corrente teórica em detrimento de outra é renegar o caráter democrático da discussão acadêmica e jurídica.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme acima destacado, a necessidade de revisão dos diplomas legislativos constitui uma forma de acompanhamento da dinâmica social e das novas necessidades punitivas, assim consideradas aquelas condutas que atentem contra os mais relevantes bens jurídicos.

De outra parte, a incessante atividade doutrinária ganha importante destaque na busca pela solução das falhas do ordenamento jurídico. O legislador, desta feita, não pode estar alheio a essa evolução, incorporando, quando for o caso, as mais relevantes construções teóricas a fim de tornar a ciência jurídica mais democrática.

A Teoria da Imputação Objetiva constitui uma das mais recentes construções doutrinárias no campo das ciências penais, ganhando adeptos em diversos países do mundo. Apesar da importância da obra de Claus Roxin, adotar exclusivamente a fórmula desse grande penalista em detrimento das demais construções a respeito do tema é renegar o caráter democrático do debate jurídico.

O Projeto de Lei 236 do Senado é alvo de diversas críticas, uma vez que sua construção, apesar das inúmeras sugestões populares, tem sido considerada antidemocrática, renegando as sugestões por parte de grandes estudiosos do Direito Penal.

Ao positivar a imputação objetiva em seu artigo 14, parágrafo único, o projeto de código relegou as demais vertentes dessa teoria a segundo plano, tendo em vista que a mesma se encontra em fase de maturação de seus conceitos e postulados, com variações sensíveis a depender do autor.

Portanto, ainda que seja uma tentativa de melhora da política criminal e da teoria geral do delito, a ausência de debates e a adoção unilateral de determinada corrente doutrinária como “centro filosófico do sistema penal” e a incerteza quanto a possíveis alterações da teoria e alcance de seus conceitos implica no reconhecimento da ilegitimidade desta opção legislativa.


5. REFERÊNCIAS

BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado PLS 236/2012. Reforma do Código Penal Brasileiro. Disponível em: <http://www.ibadpp.com.br/wp-content/uploads/2013/03/PSL-236.pdf >. Acesso em: 26 de agosto de 2017

CALLEGARI, André́ Luís. Teoria geral do delito e da imputação objetiva. São Paulo: Atlas, 2014.

GRECO, Luís. Princípios fundamentais e tipo no novo projeto de Código Penal (Projeto de Lei n° 236/2012 do Senado Federal). In: LEITE, Alaor (organizador). Reforma Penal. São Paulo: Atlas, 2015

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, Volume 1: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2011

LEITE, Alaor. A reforma da reforma da parte geral reformada do Código Penal – Subsídios para a história do Projeto de Novo Código Penal (PLS 236/2012). In: LEITE, Alaor (organizador). Reforma Penal. São Paulo: Atlas, 2015

QUEIROZ, Paulo. Curso de Direito Penal: Parte Geral. Salvador: JusPodivm, 2014

ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2012

SANTOS, Juarez Cirino dos. A reforma penal: Crítica da disciplina legal do crime. In: LEITE, Alaor (organizador). Reforma Penal. São Paulo: Atlas, 2015

TAVARES, Juarez. Projeto de Código Penal. A reforma da Parte Geral. In: LEITE, Alaor (organizador). Reforma Penal. São Paulo: Atlas, 2015

WELZEL, Hans. O Novo Sistema Jurídico Penal: Uma introdução à doutrina da ação finalista. Tradução de Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009

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Sobre o autor
José Ednaldo Calixto Silva

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Leão Sampaio – UNILEÃO.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, José Ednaldo Calixto. Risco proibido e risco permitido: a adoção da teoria da imputação objetiva pelo projeto de novo Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5176, 2 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60067. Acesso em: 21 nov. 2024.

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