Atos de gestão e de império e a responsabilidade internacional

28/08/2017 às 16:00
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Entenda sobre a responsabilidade internacional do Estado diante dos atos de gestão e de império, a partir da análise dos acontecimentos que ensejaram a declaração de guerra do Brasil à Alemanha, em 1942.

I – O FATO

Durante a Segunda Guerra Mundial, em apenas três dias, cinco navios mercantes brasileiros foram torpedeados pela Alemanha de Adolf Hitler, no litoral do Nordeste, matando mais de 600 brasileiros. Na noite do dia 15 de agosto de 1942, um sábado, o ataque de um submarino alemão ao Baependi, quando navegava pela costa de Sergipe, deixou 270 mortos, e apenas 36 pessoas se salvaram. Foi a maior tragédia brasileira na guerra, até então, e as cenas de horror do naufrágio foram narradas durante dias, meses e anos seguidos pelos sobreviventes.

Com 142 pessoas a bordo, na mesma noite de 15 de agosto, o navio Araraquara foi atacado também no litoral sergipano, resultando na morte de 131 pessoas. No dia seguinte, foi a vez do Aníbal Benévolo, que afundou também em Sergipe e deixou 150 mortos, dos 154 tripulantes. Encerrando a série de ataques alemães, no dia 17, afundaram os navios Itagiba (36 mortos) e Arará (20 tripulantes mortos), ambos no litoral da Bahia.

Os ataques provocaram comoção popular poucas vezes vista no país, que ganhou as ruas com demonstrações de civismo e represálias aos imigrantes alemães, italianos e japoneses. Esses acontecimentos forçaram o governo Vargas a declarar guerra aos países nazifascistas do Eixo, satisfazendo também aos interesses dos Estados Unidos.


II – A RESPONSABILIDADE DO ESTADO ESTRANGEIRO PERANTE PARTICULARES E OS DEMAIS ESTADOS

Ensinou Aguiar Dias (Da Responsabilidade Civil, volume II, 5ª edição, pág. 254) que o principio acolhido pela maioria dos autores, inspira-se na consideração de que a responsabilidade internacional do Estado perante particulares só ocorre em caso de denegação de justiça e esta é mera hipótese, quando o particular não a pedir, valendo-se dos meios oferecidos pelo Estado incriminado para a satisfação do dano.

A denegação de justiça, identificada como infração do dever de proteção jurídica ao estrangeiro é que constitui a verdadeira base da responsabilidade internacional do Estado perante particulares, como aludiram diversos autores, como Hoiger, Möller, Durant, dentre outros.

Observe-se, nessa linha, o voto da maioria das delegações à Primeira Conferência para Codificação do Direito Internacional, em 1930, em Haia, consonante Borchard, La Responsabilité internationele des États à la Conference de Codification de la Haye, em Revue de Droit International et de Législation Comparée, pa´g. 47.

Legitimam tal pensamento: a) a presunção de que, normalmente, o prejudicado se submete à jurisdição local; b) a presunção de que os tribunais do Estado responsável são capazes de fazer justiça ao queixoso; c) a conveniência de evitar controvérsias internacionais, tanto mais por se tratar de interesses privados, menos relevantes, sem dúvida, que os de ordem pública; d) a dificuldade que há, enquanto não esgotados os recursos de que a parte dispõe perante a lei local, de fazer juízo sobre a ilicitude do fato; e) a necessidade de estabelecer, mesmo diante da prova do fato danoso, se este é imputável ao Estado demandado.

Os remédios judiciais oferecidos aos prejudicados pela lei local devem ser efetivos e eficientes, razão pela qual diversos autores que a defenderam estabeleceram como casos em que não se aplica a regra os seguintes: a) falta de garantias de justiça por parte dos tribunais, ou por não terem existência regular ou por serem inacessíveis à parte prejudicada; b a captura ilegal de navios, arresto injusto e prisão ilegal; c) atos arbitrários das autoridades superiores do governo responsabilizado; d) incompetência dos tribunais relativamente aos pleitos movidos por estrangeiros contra o Estado; e) a circunstância de pender sobre os tribunais ameaça ou coação do Executivo ou da população hostil; f) atos de apreciação discricionária do governo; g) impossibilidade de recurso à instância superior; h) os atos ilícitos cometidos por representantes de estado estrangeiro; I) circunstâncias especiais que imponham a exceção.

Na matéria é importante a lição de Anzilotti (Teoria generale della responsabilità dello Stato nel diritto Internazionale, Firenze, 1902, pág. 131) quando advertiu: “a relação jurídica que nasce entre os Estados, em consequência de uma violação de direito e na qual se concretiza a responsabilidade, tem o caráter essencial de relação obrigatória”. Assim, da violação da norma jurídica surge, para o Estado que sofreu o dano, um direito contra o autor da ofensa, direito que corresponde a um dever particular positivo a cargo deste.

Por sua vez, Giorgio Balladore Pallieri(Gli efftti dell’atto illecito Internazionale, na Rivista di Diritto Pubblico, 1931, primeira parte, 1931, pág. 64 e seguintes) não contesta que do ato ilícito internacional possa surgir uma pretensão do Estado, seja à reposição do direito violado, seja à reparação do dano, ou a uma satisfação moral; não contesta, igualmente, que algumas dessas formas de reparação têm origem em nova relação obrigatória e subsequentemente à violação de direito.

Mas, recusa concordar em que seja essa teoria exata em todos os seus postos, e, muito menos, em que aquelas relações obrigatórias que se constituem realmente com base no ato internacional sejam o seu efeito peculiar e ocorram, unicamente, quando se tenha a lamentar a violação de uma norma jurídica internacional.

No seu entender, é preciso distinguir, antes de mais, nítida e rigorosamente, entre reintegração ou recuperação do direito lesado, de uma parte, e ressarcimento dos danos sofridos, materiais e morais, de outra. Quando o Estado reclama do outro o ressarcimento dos danos materiais e morais, fa-lo em virtude uma relação nova obrigatória, oriunda do ato delituoso.

Pallieri mostra que a possibilidade de pretender a reintegração do próprio direito violado deriva da existência do direito subjetivo internacional, ao passo que a exigência de ressarcimento do dano se baseia em nova relação obrigatória, seguida ordinariamente de um ato delituoso.

Para Anzilotti, o simples evento danoso, enquanto traduz a consequência da violação da obrigação imposta por um dado acordo, não basta a constituir ato ilícito. Isso acontece, segundo afirmou Aguiar Dias(obra citada, pág. 261), ou porque, dado o caráter ainda rigidamente individualístico das relações internacionais, o Estado não tem o dever de abster-se de atos capazes de acarretar danos aos outros Estados, ou porque os deveres internacionais não têm, de regra, conteúdo econômico e o dano juridicamente relevante não se poderia isolar da violação de terminado direito.

Assim, para que tenha origem a obrigação de ressarcir, é requisito, antes de tudo, que se tenha verificado um dano da espécie ressarcível,  segundo o direito internacional. A circunstância de que se tenha lesado um direito não é senão outro requisito, de valor secundário, para o estabelecimento da obrigação de ressarcimento. Para Pallieri, esta não é uma consequência, nem indefectível nem característica da violação de um direito.


III – A POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA NO BRASIL ; ATOS DE IMPÉRIO E ATOS DE GESTÃO

Juridicamente, atos de guerra são atos de império protegidos pela soberania de cada Estado. Por isso, um Estado só pode se submeter à jurisdição de outro em nome deles por iniciativa própria. Esse foi o entendimento usado pelo ministro Luiz Fux para negar a subida de um recurso que pedia a condenação da Alemanha pelo afundamento de um barco pesqueiro no litoral do Rio de Janeiro em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. O julgamento aconteceu no ARE 953.656.

A decisão que o ministro Fux  tomou diz respeito à história do afundamento do barco pesqueiro Changri-Lá por um submarino nazista, no dia 22 de julho de 1943. O caso ficou mais de 60 anos sendo tratado como um desaparecimento, já que, embora se falasse na possibilidade de um ataque, não havia provas.

Só em 1999 foi que surgiram provas para mostrar que o caso se tratou de uma manobra de guerra — e que o barco não fora vítima de uma tempestade, ou afundara por “falha humana”, como se aventou na época. E a partir dali ações de reparações por danos morais foram levadas à Justiça brasileira por parentes dos tripulantes do Changri-Lá.

Naquele ano, o governo dos Estados Unidos retirou o sigilo de seus registros de guerra referentes a manobras feitas em parceria com a Força Aérea Brasileira na costa do Brasil. E ali estavam registrados depoimentos de 11 tripulantes do submarino alemão U-199, entre eles o capitão, Hans Werner Kraus.

Esses atos de guerra seriam protegidos por imunidade de jurisdição.

Os Estados nacionais gozam de imunidade de jurisdição em relação a outros, mas há possibilidades de relativização dessa imunidade. Seria o caso da  contratação de um “funcionário subalterno” para trabalhar numa embaixada como um ato de gestão.

Em 1812, no caso Exchange vs McFaddon, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que “a jurisdição da nação dentro de seu próprio território é necessariamente exclusiva e absoluta. Não é suscetível de qualquer limitação que não seja imposta por ela mesma”.

Em fevereiro de 2012, a Corte Internacional de Justiça (CIJ) julgou caso parecido. Naquela ocasião, o tribunal deu razão à Alemanha numa reclamação contra a Justiça da Itália, que vinha condenando o Estado alemão em diversos casos a pagar indenizações como forma de reparação por atos militares cometidos durante a Segunda Guerra.

No mesmo julgamento, a CIJ decidiu que a imunidade de jurisdição “prevalece mesmo diante de acusações que denotem graves violações a direitos humanos, como sói ocorrer em atos de guerra”. “Com efeito, conforme a evolução do alcance da imunidade de jurisdição já apresentado, os atos bélicos praticados por Estado estrangeiro durante período de guerra correspondem a atos de império, decorrentes do exercício de seu exclusivo poder soberano”.

Os chamados atos de império, como os atos de guerra, “decorrem do exercício do direito da soberania estatal”. Portanto, a imunidade de jurisdição só poderia ser relativizada se o próprio Estado permitisse.

Quanto a ação militar em época de guerra, há diversos julgados no sentido de que ela em periodo de guerra constitui ato típico de império que confere ao estado estrangeiro imunidade à jurisdição brasileira para responder à ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes da morte de tripulante de uma embarcação.

O Supremo Tribunal Federal enfrentou a matéria no julgamento do Recurso Extraordinário com agravo 953.656 - RJ, onde se discutiu a responsabilidade civil por danos materiais e morais em ação indenizatória proposta contra Estado estrangeiro em razão de afundamento de barco durante o período da segunda guerra mundial. Discutiu-se que tratava-se de ato de império e ainda com relação a imunidade de jurisdição.

No que se refere à imunidade de jurisdição que alcança os privilégios e garantias dos representantes de um país junto a outro, há importantes tratados que disciplinam a questão, especificamente as Convenções de Viena sobre as Relações Diplomáticas (1961) e sobre Relações Consulares (1963), promulgadas internamente pelos Decretos 56.435/1965 e 61.078/1967. Entretanto, como ressalta Francisco Rezek, “embora voltadas primordialmente à disciplina dos privilégios diplomáticos e consulares, as convenções de Viena versam no seu contexto a inviolabilidade e a isenção fiscal de certos bens – móveis e imóveis – pertencentes ao próprio Estado acreditante, não ao patrimônio particular de seus diplomatas e cônsules”, não se encontrando ali “norma alguma que disponha sobre a imunidade do Estado, como pessoa jurídica de direito público externo, à jurisdição local” (Francisco Rezek. Direito Internacional Público: curso elementar. São Paulo:Saraiva, 2013, p. 213).

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NO julgamento do RO – 60/RJ, tem-se o que segue:  

“Encontra amparo no direito consuetudinário, nos termos do axioma “par in parem non habet judicium”, ou seja, “nenhum Estado soberano pode ser submetido contra sua vontade à condição de parte perante o foro doméstico deoutro Estado, como ainda ensinou Francisco Rezek ( Direito internacional público: curso elementar. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.175).

A  evolução do direito das gentes - no sentido de limitar a imunidade gozada pelos Estados, aplacando situações injustas que ficavam ao desabrigo de reparação - fez-se perceber no Brasil por ocasião do julgamento da Apelação Cível n. 9.696 – caso Genny de Oliveira –, quando então o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de processar ente soberano externo em causas envolvendo crédito de natureza trabalhista.

O referido acórdão foi assim ementado:

Estado estrangeiro. Imunidade de jurisdição. Causa trabalhista.

Não há imunidade de jurisdição para o Estado estrangeiro, em causa de natureza trabalhista.

Em princípio, esta deve ser processada e julgada pela Justiça do Trabalho, se ajuizada depois do advento da Constituição Federal de 1988 (art. 114).

Na hipótese, porém, permanece a competência da Justiça Federal, em face do disposto no parágrafo 10 do art. 27 do A.D.C.T da Constituição Federal de 1988, c⁄c art. 125, II, da EC nº 1⁄69.

Recurso ordinário conhecido e provido pelo Supremo Tribunal Federal para se afastar a imunidade de jurisdição reconhecida pelo Juízo Federal de 1º Grau, que deve prosseguir no julgamento da causa, como de direito.

(AC n. 9.696-3⁄SP, relator Ministro Sydney Sanches, Plenário, julgado em 31⁄05⁄1989)

Na ocasião, o eminente Ministro Francisco Rezek prolatou voto, acompanhado pelos demais ministros, no qual registrou, com a proficiência de costume, que a imunidade de jurisdição no Brasil encontrava respaldo apenas na aplicação do costume externo e, por conseguinte, deveria evoluir com ele, acompanhando as novas tendências do direito internacional.

Nas palavras do douto relator:

Quanto a esta imunidade – a do Estado estrangeiro, não mais a dos seus representantes cobertos pelas Convenções de Viena -, o que dizia esta Casa outrora, e se tornou cristalino no começo da década de setenta? Essa imunidade não está prevista nos textos de Viena, não está prevista em nenhuma forma escrita de direito internacional público. Ela resulta, entretanto, de uma antiga e sólida regra costumeira do Direito das Gentes. Tal foi, nas derradeiras análises da matéria, a tese que norteou as deliberações do Supremo.

(...)

Independentemente da questão de saber se há hoje maioria numérica de países adotantes da regra de imunidade absoluta, ou daquela da imunidade limitada – que prevalece na Europa ocidental e que já tem fustigado, ali, algumas representações brasileiras -, uma coisa é certíssima: não podemos mais, neste Plenário, dizer que há uma sólida regra de direito internacional costumeiro, a partir do momento em que desertam dessa regra os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha e tantos outros países do hemisfério norte. Portanto, o único fundamento que tínhamos – já que as convenções de Viena não nos socorrem a tal propósito – para proclamar a imunidade do Estado estrangeiro em nossa tradicional jurisprudência, desapareceu: podia dar-se por raquítico ao final da década de setenta, e hoje não há mais como invocá-lo.

Com o leading case, a Suprema Corte abandonou a vetusta orientação de modo a acompanhar a tendência que emergia nos principais centros de estudo do direito internacional e que já encontrava ressonância na jurisprudência de outros países, qual seja, a de que a abrangência da imunidade de jurisdição deve ser restringida.

A partir de então, passou-se a adotar tese que se baseia na natureza do ato estatal, preservando a imunidade de jurisdição apenas nos casos de ato de império, que são expressão direta da soberania, afastando-a, porém, nas hipóteses de ato de mera gestão, em que o Estado atua como particular, em atividades tipicamente negociais.

Os países da então Comunidade Econômica Europeia, entre os quais o Estado-réu, celebraram, em 1972, convenção internacional (European Convention on State Immunity), pela qual declinam de sua imunidade soberana em litígios envolvendo responsabilidade civil, conforme se extrai de seu artigo 11:

Article 11: A Contracting State cannot claim immunity from the jurisdiction of a court of another Contracting State in proceedings which relate to redress for injury to the person or damage to tangible property, if the facts which occasioned the injury or damage occurred in the territory of the State of the forum, and if the author of the injury ordamage was present in that territory at the time when those facts occurred.

_________________________________________________________ ____

Artigo 11: Um Estado signatário não poderá invocar imunidade de jurisdição perante a Corte de outro Estado signatário em procedimentos relacionados à indenização por lesão à pessoa ou dano à propriedade tangível, se os fatos que ocasionaram a lesão ou o dano ocorreram no território do Estado foro, e se o autor do ferimento ou dano estavapresente neste território no momento em que os fatos ocorreram.

Inspirados na convenção europeia, os Estados Unidos promulgaram o Foreign Sovereign Immunities Act (1988), impondo diversas limitações à imunidade de jurisdição dos demais Estados perante o seu Poder Judiciário, entre as quais merece destaque:

1605. General exceptions to the jurisdictional immunity of a foreign state

(a) A foreign state shall not be immune from the jurisdiction of courts of the United States or of the States in any case --

(...)

(5) not otherwise encompassed in paragraph (2) above, in which money damages are sought against a foreign state for personal injury or death, or damage to or loss of property, occurring in the United States and caused by the tortious act or omission of that foreign state or of any official or employee of that foreign state while acting within the scope of his office or employment...

_________________________________________________________ ____

1605. Exceções gerais à imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro

Um Estado estrangeiro não estará imune à jurisdição das Cortes dos Estados Unidos ou de seus estados em qualquer caso:

(...)

(5) não abrangido pelo parágrafo (2) acima, em que reparação pecuniária é pretendida contra Estado estrangeiro por lesão pessoal ou morte, ou por dano ou perda de propriedade, ocorrido nos Estados Unidos e causada por ato ilícito ou omissivo daquele Estado estrangeiro ou por qualquer oficial ou empregado daquele Estado estrangeiro, enquanto atuando dentro do escopo de sua função ou trabalho...

Os Estados Unidos adotaram medida ainda mais ambiciosa, implementando, em 1996, emendas ao Foreign Sovereign Immunities Act, com a introdução do § 1.605 (a)(7), pelo qual se afasta a imunidade de jurisdição nos casos de sérias violações aos direitos humanos – como tortura, assassinato e captura de reféns – perpetrados por países considerados patrocinadores do terrorismo. Tal alteração vem sendo confirmada pela prática judiciária daquele país, com diversassentenças condenatórias já proferidas.

Por sua vez, o Reino Unido também acompanhou esse novo panorama internacional, editando, em 1978, o State Immunity Act, que determina que:

5. A State is not immune as respects proceedings in respect of--

(a) death or personal injury; or

(b) damage to or loss of tangible property,

caused by an act or omission in the United Kingdom .

_________________________________________________________ __

5. Um Estado não é imune com relação a procedimento com relação a:

morte ou lesão pessoal, ou dano a ou perda de propriedade tangível,ocasionados por ação ou omissão no Reino Unido.

Contudo, a principal orientação na área da imunidade de jurisdição partiu da Comissão de Direito Internacional da Organização das Nações Unidas (CDI), que elaborou projeto de tratado, o Draft Articles on Jurisdictional Immunitiesof States and Their Property (1991), consolidando as regras costumeiras acerca do tema.

Extrai-se, do artigo 12 do referido projeto, orientação no mesmo sentido das já mencionadas:

Unless otherwise agreed between the States concerned, a State cannot invoke immunity from jurisdiction before a court of another State which is otherwise competent in a proceeding which relates to pecuniary compensation for death or injury to the person, or damage to or loss of tangible property, caused by an act or omission which is alleged to beattributable to the State, if the act or omission occurred in whole or in part in the territory of that other State and if the author of the act or omission was present in that territory at the time of the act or omission.

Se a ação ou a omissão ocorreu, no todo ou em parte, no território de outro Estado e se o autor da ação ou da omissão estava presente neste território no momento em que ocorreu, o Estado alegadamente responsável não pode invocar imunidade de jurisdição perante a corte do Estado que seria de outra forma competente para processar casosenvolvendo reparação pecuniária por morte ou lesão à pessoa, ou por danos ou perda de propriedade tangível, salvo acordado de forma distinta pelos Estados envolvidos.

Importante conferir, ainda, os comentários lançados pelo grupo responsável pelo projeto de tratado, que fez as seguintes anotações acerca do mencionado artigo 12:

(3) The exception contained in this article is therefore designed to provide relief or possibility of recourse to justice for individuals who suffer personal injury, death or physical damage to or loss of property caused by an act or omission which might be intentional, accidental or caused by negligence attributable to a foreign State. Since the damaging act or omission has occurred in the territory of the State of the forum, the applicable law is clearly the lex loci delicti commissiand the most convenient court is that of the State where the delict was committed. A court foreign to the scene of the delict might be considered as a forum non conveniens. The injured individual would have been without recourse to justice had the State been entitled to invoke its jurisdictional immunity.

(...)

(8) The basis for the assumption and exercise of jurisdiction in cases covered by this exception is territoriality. The locus delicti commissi offers a substantial territorial connection regardless of the motivation of the act or omission, whether intentional or even malicious, or whether accidental, negligent, inadvertent, reckless or careless, and indeed irrespective of the nature of the activities involved, whether jure imperil ox jure gestionis. This distinction has been maintained in the case law of some States involving motor accidents in the course of official or military duties. While immunity has been maintained for acts jure imperil, it has been rejected for acts jure gestionis. The exception proposed in article 12 makes no such distinction, subject to a qualification in the opening paragraph indicating the reservation which in fact allows different rules to apply to questions specifically regulated by treaties, bilateral agreements or regional arrangements specifying or limiting the extent of liabilities or compensation, or providing for a different procedure forsettlement of disputes.

(3) A exceção contida neste artigo foi elaborada para oferecer amparo e possibilidade de recurso à justiça a indivíduos que sofrerem lesão pessoal, morte, dano ou destruição de propriedade ocasionados por ação ou omissão seja intencional, acidental ou causada por negligência atribuível a Estado estrangeiro. Já que a ação ou omissão danosaocorreu no território do Estado foro, a lei aplicável é claramente a lex loci delicti commissi [lei do local em que o delito foi cometido] e a Corte mais conveniente é aquela do Estado onde o delito foi cometido. Uma Corte que não a do local do delito deve ser considerada forum non conveniens [foro não conveniente]. O indivíduo lesado ficaria sem acesso à justiça caso o Estado fosse autorizado a invocar sua imunidade de jurisdição.

A base para o reconhecimento e exercício da jurisdição nos casos abrangidos por essa exceção é a territorialidade. Olocus delicti commissi oferece conexão territorial substancial, não obstante a motivação da ação ou da omissão, seja intencional ou mesmo maliciosa, seja acidental, por negligência, imprudência ou descuidado, e, ainda, independentemente da natureza das atividades envolvidas, sejam elas jure imperii ox jure gestionis .

Essa distinção tem sido mantida pela legislação de alguns Estados, envolvendo acidentes motorizados no transcurso de missões oficiais ou militares. A imunidade tem sido mantida nos casos de jure imperii, enquanto tem sido rejeitada nos casos de jure gestionis.

A exceção proposta pelo artigo 12 não faz tal distinção, ficando sujeita à qualificação estabelecida no parágrafo inaugural, com relação à reserva que permite a aplicação de diferentes normas para questões especificamente reguladas por tratados, acordos bilaterais ou arranjos regionais, especificando ou limitando a extensão da responsabilidade ou compensação, ou providenciando procedimento diverso para solução de disputas.

Colhe-se da doutrina elucidativa lição acerca do referido dispositivo:

Three features of this provision are noteworthy. To begin with, there is a strict territorial nexus requirement. The tort itself must have taken place within the forum state and the author of the tort must have been present in that territory. This language intends to exclude transboundary torts from the immunity exception; it is not sufficient that the tortious conduct has an effect in the forum state. That is in effect what is meant by requirement that “the author of the tortious act” must have been “present in that territory at the time of the act or omission”. Secondly, the provision abandons the distinction between acta jure imperii and acta jure gestionis . Is is not required that the tortious conduct be private or commercial by nature so that jurisdiction can also be assumed in regard to sovereign conduct. Thirdly, there is no distinction between negligent and deliberate actions, in fact there is no reference to fault at all, so that art. 12 also covers strict liability as long as the act or omission is attributable to the state.

(BRÖHMER, Jürgen. State immunity and the violation of human rights. The Hague: Kluwer Law International, 1997. p. 127⁄128)

Três aspectos desse dispositivo devem ser destacados. De início, há um rigoroso requisito de nexo territorial. Exige-se que o dano em si tenha ocorrido dentro do Estado foro e que o autor do dano estivesse presente naquele território. Essa redação objetiva excluir danos transfronteiriços da exceção à imunidade; não basta que a conduta danosa provoque resultados no Estado foro.

Isso é o que, de fato, se quer dizer com o requisito de que “o autor do ato lesivo” estivesse“presente naquele território no momento da ação ou omissão”. Em segundo lugar, o dispositivo abandona a distinção entre acta jure imperii e acta jure gestionis.

Não é necessário que a conduta delitiva tenha natureza privada ou comercial, de modo que também é possível considerar a existência de jurisdição em relação a condutas soberanas. Em terceiro lugar, não há distinção entre a postura negligente ou dolosa do Estado. De fato, não há qualquer referência a culpa, cobrindo o artigo 12 igualmente casos de estrita responsabilidade, desde que a ação ou omissão seja atribuível ao Estado.

Essa mudança de paradigmas – relativa à renúncia da imunidade nas hipóteses de responsabilidade civil – não escapou à análise do Ministro Francisco Rezek, que alertou em seus estudos:

O que impressiona, tanto na Convenção Europeia quanto nos diplomas domésticos promulgados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, é que esses textos fulminam a imunidade do Estado estrangeiro em hipóteses completamente distintas daquela atividade comercial heterodoxa a que se entregavam alguns países em lugares como Londres, Nova York ou Zurique – prática inimaginável em Brasília, em Moscou ou em Damasco -, e que havia produzido os primeiros arranhões na regra da imunidade absoluta.

Com efeito, recrutar servidores subalternos no Estado local e contratar a construção do prédio representativo são atos inscritos na rotina diplomática; comuns, portanto, em todas as capitais do mundo. É também na casualidade do diaadia que pode ocorrer um acidente imputável ao Estado estrangeiro, acarretando dano a pessoas da terra. O caminho tomado por esses diplomas, vindo à luz em áreas de grande prestígio na cena internacional, solapou de modo irremediável as bases da velha regra costumeira – a se entender derrogada na medida em que os demais países, abstendo-se de protestar, assumem, um após outro, igual diretriz como ensinou José Francisco Rezek((Direito internacional público: curso elementar. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p.177).

Observa-se, assim, que a relação tradicional entre imunidade de jurisdição e a natureza jurídica dos atos estatais, conquanto ainda constitua método válido de análise, não representa o melhor direito aplicável à espécie.

5. Portanto, percebe-se claramente que o direito internacional apresenta tendência de restringir a imunidade de jurisdição nas hipóteses de ação indenizatória envolvendo ato lesivo praticado no Estado foro, o que, na hipótese dos autos, representou óbice à aplicação imediata do costume internacional pelo Judiciário brasileiro, sobretudo a singela dicotomia entre ato de gestão e ato de império.”

Naquele julgamento do ARE 953.656 – RJ, tem-se o que segue

"Nesse contexto, apesar de serem identificadas algumas normas internacionais esparsas (como a Convenção Europeia sobre Imunidade de Jurisdição dos Estados – Convenção de Basileia de 1972) e mesmo nacionais que destinam tratamento ao tema (como o Foreign Sovereign Immunities Act, editado nos Estados Unidos em 1976; o State Immunity Act, editado no Reino Unido em 1978 e assim também no Canadá em 1985; a Ley nº 24.488/1995, na Argentina, que tratou da “inmunidad de jurisdicción de los estados extranjeros ante los tribunales argentinos”, dentre outras), a imunidade de jurisdição de Estados estrangeiros decorreu originariamente de prática costumeira no direito internacional, principalmente ante à inexistência de norma brasileira que disponha sobre o tema."

Foi então dito naquele mesmo julgamento:

"Desenvolveu-se, a partir de então, um entendimento mais restrito quanto à imunidade de jurisdição de Estados estrangeiros, estabelecendo-se a distinção jurídica da responsabilização jurídica de outros países conforme a natureza do ato praticado: se de império (jure imperii) ou se de gestão (jure gestionis). Dessa sorte, “para saber se é possível processar um Estado perante a Justiça de outro, deve-se primeiro verificar qual o tipo de ato estatal que se cuida, se de império (v.g., um ilícito cometido pelo Estado em território de outro no contexto de um conflito bélico) ou de gestão (v.g., a contratação de um funcionário subalterno para prestar serviços a uma determinada embaixada etc.)” (Valerio de Oliveira Mazzuloli. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 586/587). É dizer: apenas em relação aos atos de gestão é que se pode admitir a relativização da imunidade de jurisdição, providência que não se revela possível em relação aos atos de império, que decorrem do exercício direto da soberania estatal."

A matéria foi objeto de julgamentos pelo Superior Tribunal de Justiça consoante julgamentos abaixo.

DIREITO INTERNACIONAL. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO.NAUFRÁGIO DE EMBARCAÇÃO PESQUEIRA POR SUBMARINHO ALEMÃO. ATO PRATICADO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL. ATO DE IMPÉRIO.IMUNIDADE ABSOLUTA. PRECEDENTES DO STJ.

1. A República Federal da Alemanha não se submete à jurisdição nacional para responder a ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes de ofensiva militar, realizada durante a Segunda Guerra Mundial, em razão de a imunidade acta jure imperii ser absoluta e não comportar exceção.

2. Agravo regimental desprovido (AgRg no RO 107/RJ, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, DJe 3.2.2014).

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AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ORDINÁRIO - AÇÃO DE RESSARCIMENTO DE DANOS CONTRA A REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA - NAUFRÁGIO DE EMBARCAÇÃO PESQUEIRA POR SUBMARINHO ALEMÃO - ATO PRATICADO DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL - ATO DE IMPÉRIO - IMUNIDADE ABSOLUTA - RECURSO DA AUTORA NÃO-PROVIDO.

1. A comunicação ao Estado estrangeiro para que manifeste a sua intenção de se submeter ou não à jurisdição brasileira não possui a natureza jurídica da citação prevista no art. 213 do CPC. Primeiro se oportuniza, via comunicação encaminhada por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, ao Estado estrangeiro, que aceite ou não a jurisdição nacional. Só aí, então, se ele concordar, é que se promove a citação para os efeitos da lei processual. A nota verbal, por meio da qual o Estado estrangeiro informa não aceitar a jurisdição nacional, direcionada ao Ministério das Relações Exteriores e trazida por esse aos autos, deve ser aceita como manifestação legítima daquele Estado no processo. (RO 99/SP, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, DJe 7.12.2012)

2. In casu, a Embaixada da Alemanha no Brasil manifestou-se expressamente pela inadequação da tentativa de citação, invocando, para tanto, imunidade de jurisdição, em razão da prática de ato de império. Assim, não há como submeter a República Federal da Alemanha à jurisdição nacional para responder a ação de indenização por danos morais e materiais por ter afundado barco pesqueiro no litoral de Cabo Frio durante a Segunda Guerra Mundial. (RO 72/RJ, Rel. Min.JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe 8.9.2009).

3. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no RO 101/RJ,Rel. Min. MARCO BUZZI, DJe 7.5.2013)

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RECURSO ORDINÁRIO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO CONTRA ESTADO ESTRANGEIRO. ATO DE GUERRA. IMUNIDADE ABSOLUTA. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. Em se tratando de ato de guerra, a imunidade de jurisdição é absoluta, não comportando exceções.

2. A República Federativa da Alemanha, em todas as ações de indenização idênticas à presente, decorrentes de afundamento do barco pesqueiro brasileiro Changri-La por um submarino alemão U-199, no litoral do Estado do Rio de Janeiro, quando citada, quedou-se silente, não havendo como compeli-la a responder ação indenizatória por ato de império. Precedentes.

3. Agravo regimental a que se nega provimento (AgRg no RO 110/RJ,Rel. Min. MARIA ISABEL GALLOTTI, DJe 24.9.2012).

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DIREITO INTERNACIONAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. BARCO AFUNDADO EM PERÍODO DE GUERRA. ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE ABSOLUTA.

1. A questão relativa à imunidade de jurisdição, atualmente, não é vista de forma absoluta, sendo excepcionada, principalmente, nas hipóteses em que o objeto litigioso tenha como fundo relações de natureza meramente civil, comercial ou trabalhista.

2. Contudo, em se tratando de atos praticados numa ofensiva militar em período de guerra,  a imunidade acta jure imperii é absoluta e não comporta exceção.

3. Assim, não há  como submeter a República Federal da Alemanha à jurisdição nacional para responder a ação de indenização por danos morais e materiais por ter afundado barco pesqueiro no litoral de Cabo Frio durante a Segunda Guerra Mundial.

4. Recurso ordinário desprovido (RO 72/RJ, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJe 8.9.2009).

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DIREITO INTERNACIONAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. VÍTIMA DE ATO DE GUERRA. ESTADO ESTRANGEIRO. IMUNIDADE ABSOLUTA.

1 - A imunidade acta jure imperii é absoluta e não comporta exceção.Precedentes do STJ e do STF.

2 - Não há infelizmente como submeter a República Federal da Alemanha à jurisdição nacional para responder a ação de indenização por danos morais e materiais por ato de império daquele País, consubstanciado em afundamento de barco pesqueiro no litoral de Cabo Frio - RJ, por um submarino nazista, em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial.

3 - Recurso ordinário conhecido e não provido (RO 66/RJ, Rel. Min.FERNANDO GONÇALVES, DJe 19.5.2008)

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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