VII – AS FASES DO CONTRATO E A BOA-FÉ OBJETIVA
Junqueira de Azevedo ensina que "o pensamento, infelizmente, ainda muito difundido, de que somente a vontade das partes conduz o processo contratual, deve serão definitivamente afastado. É preciso que, na fase pré-contratual, os candidatos a contratantes ajam, nas negociações preliminares e na declaração da oferta, com lealdade recíproca, dando as informações necessárias, evitando criar expectativas que sabem destinadas ao fracasso, impedindo a revelação de dados obtidos em confiança, não realizando rupturas e inesperadas das conversações, etc. Aos vários deveres dessa fase, seguem-se deveres acessórios à obrigação principal na fase contratual – quando a boa-fé serve para interpretar, completar ou corrigir o texto contratual – e, até mesmo, na fase pós-contratual, a boa-fé serve para interpretar, completar ou corrigir o texto contratual – e, até mesmo, na fase pós contratual, a boa-fé também cria deveres, os posteriores ao término do contrato – são os deveres post pactum finitum, como o do advogado de guardar os documentos do cliente, o do fornecedor de manter a oferta das peças de reposição, o do patrão de dar informações corretas sobre o ex-empregado idôneo, etc." [23]
Conforme determina o artigo 422 o princípio da boa-fé objetiva é exigida da conclusão do contrato até sua execução. Mas, o contrato é um instrumento que tem começo, meio e fim. E, em todas as etapas deve ficar evidenciado o ânimo do agente, sendo devido aos participantes o padrão de conduta médio, legitimamente esperável em circunstâncias similares.
No contrato temos fases contratuais – fase pré-contratual, a contratual propriamente dita e a pós-contratual. Passaremos a analisar a possível aplicação da boa-fé nestas fases individualmente:
- Fase pré-contratual: onde temos as negociações preliminares, as tratativas. Antes mesmo de estar formado o vínculo obrigacional, já se impõe dever aos proponentes, que deverão pautar sua conduta de forma a respeitar os interesses da outra parte.
Já nessa fase deve ser considerado que as partes realizam despesas, tomam providencias, mantêm a aparência de sua aceitação (ou não) e criam justa expectativa de que o contrato será concluído.
Apesar de não haver contrato, na fase pré-contratual já se possui elementos que vinculam as pessoas interessadas, deveres que as partes precisam ter em relação à outra, como o dever de prestar informações, esclarecimentos quanto às particularidades do negócio e instruções sobre como atingir o resultado prático desejado.
Quando iniciadas as tratativas e advindo a ruptura, esta poderá acarretar responsabilização civil pré-contratual.
Segundo Orlando Gomes "se um dos interessados, por sua atitude, cria para o outro a expectativa de contratar, obrigando-o, inclusive, a fazer despesas, sem qualquer motivo, põe termo às negociações, o outro terá o direito de ser ressarcido dos danos que sofreu." [24]
Diversos autores cuidaram do tema, e a jurisprudência já pacificou o tema, sendo o mais famoso o "caso dos tomates" [25], cujos fatos são os seguintes:
__pequenos agricultores plantavam tomates com sementes fornecidas pela Companhia Industrial de Conservas Alimentícias (CICA), que acabou por criar expectativas aos possíveis contratantes, mas acabou por recusar a compra da safra dos tomates. Na safra 1987/1988 a CICA deixou de adquirir a produção, provocando prejuízos baseados na confiança despertada antes do contrato. Os agricultores perderam a produção por não terem a quem vender o produto.
O Relator do caso foi o atual Ministro do STJ, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que proferiu o seguinte voto:
" Tanto basta para demonstrar que a ré, após incentivar os produtores a plantar safra de tomate – instando-os a realizar despesas e envidar esforços para plantio, ao mesmo tempo em que perdiam a oportunidade de fazer o cultivo de outro produto – simplesmente desistiu da industrialização do tomate, atendendo aos seus exclusivos interesses, no que agiu dentro do seu poder decisório. Deve no entanto indenizar aqueles que lealmente confiaram no seu procedimento anterior e sofreram o prejuízo. (...)
Confiaram eles lealmente na palavra dada, na repetição do que acontecera em anos anteriores... "
Assim, o Tribunal do Rio Grande do Sul reconheceu que a CICA pecou contra a boa-fé quando recusou-se a comprar a safra de tomates, apesar de criada toda a expectativa aos agricultores, e ocasionando-lhes prejuízos. A sentença incute responsabilidade à parte, baseada na confiança despertada antes de celebrado o contrato, na fase pré-contratual.
Durante a execução da prestação o contratante deverá garantir o pleno atendimento, na fase pós-contratual, atuando de acordo com a confiança incutida na outra parte.
A responsabilidade pós-contratual
- Fase de Execução :
VIII – CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
Foi intenção do legislador conferir ao texto legal a vantagem da mobilidade própria das cláusulas gerais, especialmente ao tratar do princípio da boa-fé objetiva.
Seu alcance é amplo e escapa do imobilismo por não lhe ter sido aplicado o princípio da tipicidade. A técnica legislativa escolhida provoca um efeito imediato no momento da aplicação/interpretação do texto legislativo.
As cláusulas gerais não pretendem dar, previamente, respostas. Estas serão paulatinamente construídas pela jurisprudência. E justamente por esta razão a boa-fé objetiva deve ser cautelosamente aplicada.
Não se deve permitir que o problema se limite à apreciação do caso, especialmente quando a matéria for obrigacional, sempre como se o contratante mais fraco merecesse amparo legal.
Apesar de resguardarmos os direitos dos hipossuficientes, a lei não estabeleceu privilégios absolutos a quem quer que seja.
O legislador pretendeu o equilíbrio contratual e a garantia da ordem econômica, não se prestando exclusivamente à defesa do contratante teoricamente mais fraco. Nesse sentido, Heloisa Carpieira Vieira de Mello [26] ensina que: " a escolha deve ser feita de modo a assegurar a prevalência do interesse que se apresenta mais vantajoso em termos de custo social."
O Código de Defesa do Consumidor já previa o problema que se causaria sobrecarregando-se a parte mais forte na relação obrigacional e em seu texto expressa a necessidade de harmonização dos interesses dos participantes na relação de consumo.
O Novo Código Civil transfere para os julgadores a obrigação de equacionar a harmonização desses interesses.
As críticas mais severas sobre o tema tratam do artigo 422. O legislador não levou em conta os vários textos legais encontrados em Códigos Civis recentemente editados pelo mundo.
No artigo 422 adotou-se o princípio da boa-fé objetiva apenas "na conclusão do contrato como em sua execução", deixando de fazer referência à fase pré e pós-contratual.
Perdeu-se a oportunidade de ditar regras de conduta aos contratantes, que resolveriam os problemas e assegurariam o equilíbrio dos deslocamentos patrimoniais.
Desta forma, se fará necessário que a jurisprudência consolide a efetiva dimensão de seus contornos, e até que isso se faça, o artigo 422 nasce insuficiente.
Resta ainda, incluir-se o período que vai do pré-contrato ao pós contrato, de vez que o contrato é negócio jurídico que tem começo, meio e fim, e para sua consecução faz-se necessária a aplicação do princípio da boa-fé objetiva em todas as suas fases, sob pena de viciar as demais.
CONCLUSÃO
Mesmo com os problemas apontados em função da insuficiência legislativa, deve-se reconhecer o avanço e a importância da inclusão do princípio da boa-fé objetiva no Direito Brasileiro.
O Direito Civil vêm perdendo a estrutura abstrata e generalizante para substitui-las por disciplinas legislativas cada vez mais concretas. Em especial na nova teoria geral dos contratos, onde as regras são suficientes para transpor o modelo clássico contratual, individualista e patrimonializante, para um modelo de produção coletiva dos interesses contratados, humanizando o direito contratual como fonte primária de interesse social.
Apesar dessa publicização do direito privado vir sendo sentido há algum tempo, como decorrência do crescente intervencionismo estatal na atividade priva, não se pode afirmar que este é um caminho sem volta.
O texto do artigo 422 do novo Código Civil recepcionou o princípio da boa-fé objetiva na forma de cláusula geral, mas a doutrina e a jurisprudência nacional sempre foram bem mais abrangentes e vinham aplicando-o desde as tratativas pré-negociais até as relações post pactum finitum.
Apesar destas decisões não serem fundamentadas em texto legal, nossos tribunais já vinham penalizando o contratante que age fora da conduta exigível e com isso ampliou as fronteiras, hoje estreitadas pelo dispositivo aprovado.
A interpretação literal do artigo 422, por ser mais restritivo quanto às fases contratuais, se chocará com a sólida construção doutrinária e jurisprudencial já existente, e com isso violará o espírito da norma. A sua interpretação deverá levar em conta que, o negócio jurídico celebrado é único, apesar de possuir fases para sua concretização.
Mesmo diante da necessidade de tempo para dimensionarmos seus contornos, diante do caráter dinâmico da relação obrigacional, a cláusula geral da boa-fé objetiva só poderia prosperar em um sistema aberto.
Como cláusula geral, que se constitui de normas (parcialmente) em branco, que serão completadas através de referencias de padrões de conduta, ou por valores juridicamente aceitos, terá seus elementos jurídicos extraídos diretamente da esfera social, econômica ou moral e corresponderá à verdade de seu tempo.
Assim, apesar das limitações do texto legal, o novo Código Civil permite que, com relação ao princípio da boa-fé objetiva, os operadores do direito atendam à exigência impostergável de que o contrato se ajuste aos valores de uma sociedade mais harmônica e justa. E, pela compreensão do caso concreto, permita-se a permanente atualização de suas diretrizes, sem que seja necessária a alteração do texto legal.
Notas
1 In: Internet, http://www.senado.gov.br/.
2 Tese de Doutorado, Sistema e cláusula geral, USP, 1996.
3 Costa, Judith Hofmeister Martins. O Direito Privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. 2003.Disponível em: www.jus.com.br/artigos/513 acesso em 27/03/03.
4 A tipologia é aludida por Menezes Cordeiro, in "Da boa-fé no Direito Civil", Ed. Almendina, Coimbra, 1989, Tomo II, p. 1184.
5 Parecer final ao Projeto do Código Civil, in: internet <http://www.senado.gov.br/.
6 O Direito Civil Brasileiro em Perspectiva Histórica e Visão de Futuro, in Revista Ajuris nº 40, Porto Alegre,
1987, p. 128. O texto reproduzido está às páginas 148 e 149.
7 Cláusulas abusivas no Código do Consumidor, in Estudos sobre a proteção do consumidor no Brasil e no Mercosul)
8 Conferência realizada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, in Princípio da Boa-fé no Direito Brasileiro e Português, p. 43.
9 In O princípio da boa-fé objetiva no novo código civil. Revista do Advogado, São Paulo, v.68, p.111-119, dez.2002.
10 Ibid, p.114.
11 DINIZ, Maria Helena. Tratado Teórico e Prático dos Contratos; Saraiva, São Paulo, 1993, vol. 1, p. 11.
12 Essa classificação foi extraída da obra de Maria Helena Diniz, que por sua vez baseia-se em vários outros autores (op.cit. p. 11-41)
13 GOMES, Orlando. Contratos. 18ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1998, p.36.
14 Caso fortuito e teoria da imprevisão, apud Orlando Gomes, Contratos, 18ª ed, Forense, Rio de Janeiro, 1998, p.41.
15 ZUNINO NETO, Nelson.
16 idem
17 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor; 2ª ed, RT, São Paulo, 1995, p.93.
18 COSTA, Judith Hofmeister Martins, op.cit..
19 Contratos, 18ª. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1998, p.42.
20 artigo 104 do Código Civil de 1.916.
21 Comentários ao Novo Código Civil,, volume XI, tomo 1: das várias espécies de contratos, do seguro/ José Augusto Delgado – Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 194.
22 A Boa-fé Contratual no Novo Código Civil. Disponível em : <http://www.societario.com.br/demarest/svboafe.html. Acesso em: 22/09/03.
23 Responsabililidade pré-contratual no Código de Defesa do Consumidor : estudo comparativo com a responsabilidade pré-contratual no direito comum. In Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 1995, v. 90, p. 125.
24 Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo, p. 131.
25 Durante esta pesquisa encontramos o mesmo caso narrado nos trabalhos de Renata Domingues Barbosa Balbino (op.cit.) e Antonio Junqueira de Azevedo (op.cit.)
26 A boa-fé como parâmetro da abusividade no direito contratual, in Problemas de Direito Civil-Constitucional, sob coordenação de Gustavo Tepedino, São Paulo-Rio de Janeiro, Renova, Objetiva, 2001, p. 318.