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O espelho de Narciso: desconstruindo o mito da “verdade real”

15/09/2017 às 16:58
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Não existe verdade real, uma vez que a percepção da realidade que chamamos de factual sempre é subjetiva. Cada um enxerga os fatos a partir do seu ponto de vista particular, dos seus pré-conceitos e de seus pré-juízos, de modo que a observação de um mesmo fenômeno pode levar a conclusões completamente distintas e igualmente verdadeiras, sem que nenhum dos observadores tenha “mentido” de forma deliberada.

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto

Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto

É que Narciso acha feio o que não é espelho

E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho

(Caetano Veloso, em “Sampa”).


Reza a lenda que Narciso era um intrépido caçador, conhecido pela sua beleza e pela sua vaidade. Tamanha era sua formosura que até mesmo as ninfas se apaixonaram pelo belo jovem, mas ele era incapaz de retribuir o amor porque ninguém superava a admiração  que  sentia por si mesmo. As moças desprezadas pediram, então,  aos deuses para vingá-las. Foi assim que Nêmesis resolveu dar uma lição  no rapaz e o condenou a se apaixonar pelo seu reflexo projetado na lagoa em que vivia a ninfa Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso debruçou-se sobre as águas para admirar a sua imagem e acabou morrendo afogado. Arrependida, Eco passou o resto da eternidade reproduzindo os sons que ela mesma emitia, chamando por Narciso: “Por que foges de mim?”.

Séculos depois, como um eco que não quer se calar, o espectro de Narciso volta a nos assombrar. A crescente politização do Judiciário e a superexposição de magistrados em processos midiáticos abriram brecha para um excesso de subjetivismo nas decisões judiciais, partindo da   falaciosa premissa de a “busca pela verdade real” justifica ignorar a verdade formal extraída das provas produzidas no processo, pensamento típico de uma cultura inquisitorial que, em nome de atender ao clamor popular, despreza o devido processo legal.

O principal argumento dos que defendem julgamentos baseados mais em convicções pessoais do que nas provas produzidas no processo é a chamada “busca da verdade real”, partindo do pressuposto – equivocado – de que a verdade extraída do conjunto probatório nem sempre traduz, com exatidão, a realidade factual e, portanto, deve ser desconsiderada quando contrariar  o sentimento de justiça do julgador. Claro que, para evitar alegações de parcialidade,  esse raciocínio nem sempre é verbalizado de forma explícita, mas, com frequência, é possível encontrá-lo no espírito que norteia a  condução de alguns processos judiciais, principalmente naqueles de grande repercussão na imprensa. O contraditório e a ampla defesa passam a ser relativizados na medida em que a prova produzida no processo se torna secundária diante das convicções previamente estabelecidas, tudo em nome de uma suposta “verdade real”.

O problema é que NÃO EXISTE VERDADE REAL, uma vez que a percepção da realidade que chamamos de factual sempre é subjetiva. Cada um enxerga os fatos a partir do seu ponto de vista particular,  dos seus pré-conceitos e de seus pré-juízos, de modo que a observação de um mesmo fenômeno pode levar a conclusões completamente distintas e igualmente verdadeiras, sem que nenhum dos observadores tenha “mentido” de forma deliberada.  

A neurociência comprova  que nosso cérebro tem a capacidade de nos “enganar” e nos induzir a acreditar em uma falsa aparência da realidade. Em uma experiência realizada pelo Instituto Karolinska, da Suécia,  comandada pelo professor  Arvid Guterstam, 15 voluntários passaram pela ilusão de ter sua consciência transplantada para fora do corpo. Deitados em um tomógrafo cerebral, eles receberam máscaras de realidade virtual, conectadas a câmeras que davam a visão de outras pessoas na mesma sala, deitadas na mesma posição. Esses olhavam para o tomógrafo e o corpo do paciente original. Os cientistas então tocaram, visivelmente, o corpo das pessoas com a câmera, ao mesmo tempo em que faziam o mesmo, em segredo, com o de quem estava no tomógrafo. O resultado foi que a pessoa no tomógrafo sentiu que sua consciência foi transplantada para o corpo de quem estava fora – no que os próprios cientistas chamaram de “ilusão extracorporal”. Não só isso, os voluntários também se sentiram ser – de novo, nas palavras dos cientistas –“teletransportados” entre diferentes corpos, rapidamente mudando sua percepção de que lugar ocupavam na sala. O tomógrafo revelou que as células responsáveis pela localização, principalmente no hipocampo   eram excitadas cada vez que a pessoa “mudava” de corpo, atualizando sua posição. Em outras palavras, a ilusão criada pela realidade virtual alterou completamente a  percepção dos voluntários sobre o próprio corpo ! Se o cérebro pode se enganar até mesmo sobre o nosso próprio corpo, como podemos ter certeza de que ele está certo quanto a compreensão de  fatos externos dos quais somos apenas observadores ?  (1).

Em outra pesquisa do Instituto Karolinska, berço no Nobel de Medicina, o pesquisador Henrik Ehrsson observou que até mesmo um conceito muito simples, como a noção de  distância, pode variar de acordo com o ponto de vista do observador. A definição do que é grande ou pequeno, perto ou longe,  não decorre de uma análise objetiva, mas da  forma como o cérebro processa as informações capturadas pela retina em um determinado campo visual. Daí por que, quanto mais alta é uma pessoa, menor lhe parece a distância. Se dois indivíduos, um de 1,80m e outro de 1,60m, partem da linha de largada em uma pista de corrida de 100m, o primeiro vai achar que percorreu um caminho mais curto. Porém, os 100m são iguais para ambos. Para o neurocientista Henrik Ehrsson, “nossos resultados provaram que o tamanho do corpo influencia diretamente a percepção do tamanho de todo o mundo externo” (2)

O psicólogo Daniel Simons, da Universidade de Harvard, autor da teoria do “gorila invisível”, convida-nos a refletir sobre a seguinte situação: “Você está andando em um campus universitário, quando um estranho lhe pede direções. Enquanto está falando com ele, dois homens passam entre vocês carregando uma porta de madeira. Eles seguem em frente e você continua descrevendo o caminho. Quando termina, o estranho informa que você acabou de participar de um experimento de psicologia” (3).

“A pessoa”, continua Simons, “pergunta então se você reparou algo estranho depois de os homens passarem com a porta. 'Não’, você responde, inquieto. Ele explica que o homem que primeiramente abordou você foi embora atrás da porta e que ele assumiu seu lugar. Isso mesmo, a pessoa que está conversando com você naquele momento é diferente da que lhe fez a pergunta. Então você pode olhar para os dois lado a lado e percebe que têm alturas diferentes, cortes de cabelo diferentes e vozes diferentes”. Parece impossível confundir os dois, mas a pesquisa de Simon com o colega Daniel Levin, da Universidade de Ken State, mostrou que 50% das pessoas que involuntariamente participaram do experimento não notaram a mudança de interlocutor. Elas passaram por algo conhecido como “cegueira de mudança”. Segundo o pesquisador, em vez de registrar todos os detalhes de uma cena, o cérebro é altamente seletivo. “Nossa impressão de que podemos ver tudo é apenas isso: uma impressão”  (4).

George BERKELEY, na clássica obra  “Tratado sobre os princípios do conhecimento humano”, propõe que “que uma substância material não pode ser conhecida em si mesma. O que se conhece, na verdade, resume-se às qualidades reveladas durante o processo perceptivo. Assim, o que existe realmente nada mais é que um feixe de sensações e é por isso que Esse est percibi - ser é ser percebido. O homem pode fazer representações , ter ideias, porém, nunca pode estar certo de ser seu conhecimento real, pois como saber que é como ele percebe, fora do espírito?” (Tratado sobre os princípios do conhecimento humano (1710) in: Obras Filosóficas. Trad. Jaimir Conte. São Paulo: Editora da UNESP, 2010.)

PROTÁGORAS de Abdora, um antigo filósofo contemporâneo de Platão, dizia que “o homem é a medida de todas as coisas”, o que equivale à máxima platônica: “não existe verdade absoluta, mas tão somente opiniões relativas ao homem (este vinho, que  é delicioso para o amador, pode ser amargo –e até fatal- para um enfermo)”. Dizia PLATÃO, in Teeteto, ao apresentar a concepção de mundo de Protágoras, que “as coisas são para ti como aparecem para ti e para mim como aparecem para mim...o vento é frio para quem sente frio, e não o é para quem não sente.” O próprio conceito de tempo e espaço é muito relativo. Rápido ou demorado; longe ou perto, são avaliações que fazemos por comparação e que, portanto, podem mudar se trocarmos o referencial ou as circunstâncias. Por exemplo, um minuto pode ser uma eternidade quando se está sofrendo – imaginemos alguém sendo consumido pelas chamas de um incêndio – ou pode passar muito rápido, como se fosse um instante fugaz, quando se está com alguém a quem se ama. Tudo depende da perspectiva com que interpretamos um fato, ou seja, do ponto de vista do observador.

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Immanuel KANT, revolucionando os postulados gnosiológicos de sua época,  sustentava que “não conhecemos  as coisas como são, mas apenas suas aparências, ou seja, as impressões que nos deixam”. Significa dizer que não conhecemos as coisas em si (o noúmeno), mas apenas aquilo que nos aparece (o fenômeno). Assim, a realidade objetiva não pode ser  alcançada pela mente humana, pois a essência das coisas não pode ser captada pelos sentidos. Todo conhecimento seria sempre algo de subjetivo (os transcendentais seriam categorias a priori da mente humana, ligadas ao tempo e espaço, que enquadrariam todas as sensações recebidas). Assim, Kant  elaborou seu raciocínio na obra “Crítica da Razão Pura” (1781), estabelecendo as condições subjetivas do conhecimento, fazendo com que todo o conhecimento seja gerado pelo sujeito cognoscente e não como adequação ao objeto conhecido, tal qual sustentado por Aristóteles. Para Kant, evocando a chamada Revolução Copernicana,   “até agora se admitia que todo o nosso conhecimento se devia regular pelos objetos (...) Não seríamos mais afortunados nos problemas de metafísica formulando a hipótese de que os objetos devem se regular pelo nosso conhecimento?” (5) Em outras palavras, o ponto focal do conhecimento deixou de ser o objeto em si e passou a ser o sujeito que o observa.

Com sua inigualável poesia, Carlos Drummond de Andrade também resumiu, com precisão, o caráter essencialmente subjetivo da verdade:

VERDADE

A porta da verdade estava abertamas só deixava passarmeia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,porque a meia pessoa que entravasó conseguia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metadevoltava igualmente com meio perfil.E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.Chegaram ao lugar luminosoonde a verdade esplendia os seus fogos.Era dividida em duas metadesdiferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.Nenhuma das duas era perfeitamente bela.E era preciso optar. Cada um optouconforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.

Portanto, não existe “verdade real”, uma vez que a percepção daquilo que chamamos de  realidade sempre será subjetiva e personalíssima, variando de um indivíduo a outro, de acordo com a sua formação, os seus valores e até mesmo o seu contexto social. Daí por que o  julgamento de qualquer ação judicial deve se basear exclusivamente em uma análise criteriosa das provas produzidas no processo, submetidas ao crivo do contraditório e da ampla defesa.

Significa dizer que, se de um lado, devemos lutar pela autonomia judicante, de modo que o juiz seja livre para decidir sem pressões externas, por outro, essa liberdade não implica em se permitir julgamentos idiossincráticos, dissociados da realidade probatória, em uma espécie de solipsismo judicial.

Do contrário, se permitirmos que o julgador decida com base em seu sentimento pessoal ou em suas “convicções”, em detrimento das evidências fáticas, estaremos  abrindo a porta para o arbítrio e para o voluntarismo, desprezando séculos de construção do devido processo legal como uma garantia fundamental da cidadania, a última defesa contra a tirania. Ouçamos os ecos da História se não quisermos ter o trágico fim de Narciso. Afinal, como disse o poeta, “a porta da verdade só deixa passar meia pessoa de cada vez”.


Notas

1.http://super.abril.com.br/blog/supernovas/cientistas-simulam-percepcao-extracorporal-e-de-quebra-transferencia-de-mente/

2.https://www.youtube.com/watch?v=eSPDsC6V5b4 - http://news.cision.com/karolinska-institutet/r/brain-scan-reveals-out-of-body-illusion,c9767118

3.https://www.youtube.com/watch?v=UtKt8YF7dgQ - http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/963333-video-com-gorila-testa-mente-humana-faca-o-teste.shtml

4.http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2011/06/12/interna_ciencia_saude,256466/cerebro-interpreta-os-eventos-de-forma-diferente-da-realidade.shtml

5.https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Enciclopedia/article/view/9591/7118

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Sobre o autor
Renato Janon

Juiz Titular da 2a. VT de São Carlos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JANON, Renato. O espelho de Narciso: desconstruindo o mito da “verdade real”. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5189, 15 set. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60349. Acesso em: 24 abr. 2024.

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