Limitações ambientais à propriedade imobiliária privada no Brasil

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07/09/2017 às 01:04
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Não basta ao proprietário, ao exercer seu direito de propriedade, buscar a satisfação de seus interesses pessoais. Ao contrário: por meio desse direito deve promover a realização dos valores socioambientais hábeis a serem alcançados, dentro do potencial axiológico da propriedade.

SUMÁRIO: 1 RESUMO.2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE.2.1 A Função Social da propriedade no ordenamento jurídico brasileiro.  3 AS RESTRIÇÕES ADMINISTRATIVAS À PROPRIEDADE PRIVADA IMOBILIÁRIA  NO BRASIL.  3.1 Da limitação administrativa.   3.2 Da servidão administrativa.   3.3 Do tombamento.   3.4 Da desapropriação.   4 PRINCÍPIO DO ACESSO EQUITATIVO AOS BENS AMBIENTAIS.  5 DAS RESTRIÇÕES AMBIENTAIS À PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA PRIVADA.  6 CONCLUSÃO.  REFERÊNCIAS.


1 RESUMO

O presente trabalho científico tem como objetivo principal compreender os limites ambientais à propriedade privada imobiliária no Brasil. A importância desse trabalho reside em tentar buscar a melhor forma de adequar o direito aos próprios anseios da sociedade hodierna.

É notório que a sociedade atual quer garantir a efetividade de direitos coletivos e difusos, como, por exemplo, o direito do consumidor e ao meio ambiente de qualidade. Nesse trabalho compreender-se-á a necessidade de uma nova concepção jurídica sobre a propriedade privada imobiliária face aos imperativos de uma  ordem social que eleva o direito ao meio ambiente à categoria de direito fundamental.

Desse modo, na primeira parte discorrer-se-á sobre a função social da propriedade, visto que esse é um princípio fundamental que foi instituído pela Constituição Brasileira de 1988 e constitui-se como elemento estruturante e qualificador da propriedade imobiliária no Brasil, haja vista que o ordenamento jurídico apenas agasalha a propriedade que cumpre a sua função social.

Mister destacar que o princípio da função social é considerado como um gênero que abarca outras espécies, como, por exemplo, o princípio da função sócioambiental da propriedade. Assim, nessa parte, compreender-se-á a evolução do princípio da função social da propriedade na seara do direito internacional e no ordenamento jurídico brasileiro.

A segunda parte discorre sobre as principais restrições administrativas imposta à propriedade como a limitação administrativa, a servidão administrativa, a desapropriação e o tombamento.

Na terceira parte há um levantamento dos mais importantes princípios instituídos pela doutrina internacional que visam proteger o meio ambiente, tais como: princípio do acesso eqüitativo aos bens ambientais; da soberania permanente sobre os recursos naturais; do direito ao desenvolvimento; do patrimônio comum da humanidade; da responsabilidade comum mas diferenciada; da precaução; do poluidor-pagador; do dever de não causar dano ambiental; da responsabilidade estatal; da equidade intergerencial; da prevenção; da responsabilidade ecológica; da informação; da participação; princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana; da natureza pública da proteção ambiental; do controle do poluidor pelo Poder Público; da consideração da variável ambiental no processo decisório de políticas de desenvolvimento; da participação comunitária; da função socioambiental da propriedade; do direito ao desenvolvimento sustentável e da cooperação entre os povos.

Mas, de forma especial, essa parte foi dedicada ao princípio do acesso eqüitativo aos bens ambientais, por entendê-lo como sendo essencial para a efetivação de uma nova concepção jurídica sobre a propriedade imobiliária privada, fundada na distribuição eqüitativa dos bens ambientais como forma de garantir uma existência digna para as presentes e futuras gerações.

Como que corolário de todo o trabalho, a quarta parte apresenta a própria concepção jusambientalista da propriedade. Ao identificar as restrições ambientais da propriedade, constata-se que o direito ambiental está em constante interação com diversos ramos do direito como, por exemplo, o direito constitucional, administrativo, civil e penal.

Observa-se que o direito ambiental se serve de vários institutos jurídicos desses ramos, entretanto, a concepção jurídica ambiental é visivelmente diferenciada dos mesmos, na medida em que não vê como limites os mecanismo de efetivação da função sócioambiental da propriedade, mas como elementos intrínsecos à própria natureza axiológica da propriedade.

Palavras-chave: Limites ambientais; Propriedade privada; Propriedade imobiliária.


2 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

          Não constitui tarefa fácil compreender o conceito de propriedade ao longo da história da humanidade, muito menos asseverar, com extrema certeza, quando e onde aparece o primeiro conceito jurídico de propriedade privada. Contudo, pesquisando em obras de autores, como, por exemplo, Friedrich Engls, José Afonso da Silva, Jefferson Carús Guedes e Sílvio de Salvo Venosa, que aprofundaram no estudo do tema em análise, pode-se ter uma noção muito próxima da evolução do conceito de propriedade privada ao longo da história da civilização ocidental até os dias atuais. 

         Mister destacar que a evolução da propriedade privada coincide com a evolução da própria sociedade organizada politicamente, ou seja, ao estudar  a origem da propriedade privada acaba-se compreendendo a origem da própria entidade política. O conceito e a compreensão de propriedade privada, até atingir a concepção moderna, sofreram a influência de vários povos, desde a antigüidade, por isso a história da propriedade é decorrência direta da organização política dos povos (VENOSA, 2005:173).

A par desse entendimento, pode-se concluir que a formação das sociedades politicamente organizadas teve como base o conceito de propriedade privada. Haja vista a importância da propriedade territorial no período medieval, onde o poder político era distribuído conforme a importância da propriedade territorial (ENGELS, 1991:194). Assim, é correto afirmar que a concepção de propriedade continua a ser elemento essencial para determinar a estrutura econômica e social dos Estados (VENOSA, 2005:176).

       Após essas primeiras considerações sobre a importância da propriedade privada para a organização social, econômica e política dos Estados, buscar-se-á compreender, de forma sintética, a evolução da propriedade privada ao longo dos vários períodos históricos. 

   No primeiro dos estágios primitivos da vida humana, fases conhecidas como o estado selvagem  e da barbárie, não se cogita da existência da propriedade privada imóvel, pois estas populações não individualizaram a propriedade imobiliária agrária (ENGELS:22-28). O que se observa, ao analisar a literatura referente a esses povos primitivos, é que entre eles somente existia a propriedade privada das coisas móveis, como utensílios de caça e pesca, objetos pessoais e peças de vestuário (VENOSA, 2005:174).

Mister destacar que, segundo Friedrich Engels, é nesta época que se encontra a propriedade fruto do trabalho pessoal, que, segundo ele, os jurisconsultos e economistas atribuem à sociedade civilizada e que é o último subterfúgio jurídico em que se apoia a propriedade capitalista (ENGELS, 1991:178179). 

         Portanto, verifica-se que durante o estado selvagem e da barbárie o solo pertencia a toda a coletividade, isto é, a todos os membros da tribo, da família, não existindo o sentido de senhoria, de poder de determinada pessoa sobre a propriedade. Desse modo, era inconcebível o uso da propriedade comum como individual e exclusivo (VENOSA, 2005:174). Nesse sentido pode-se afirmar que está presente na visão sobre a propriedade desses povos primitivos o princípio da função social da propriedade.   

          No período romano, nascem os conceitos de dominiu (domínio) ou propietas (o que pertence a uma pessoa), como sinônimos, muito próximo da propriedade plena atual. Também nesse período surge a concepção de possessio (posse), distinguindo o proprietário daquele que detém a posse sobre a coisa, capaz de permitir a utilização dos bens pelos seus titulares, ou seja, os que tinham a posse, os possuidores, às vezes em oposição aos próprios proprietários (GUEDES,2003:343).                                                                                                                                    

           Com a decadência do Império Romano e o avanço da ocupação de seus domínios pelos povos bárbaros surgiram grandes transformações no direito. Debilitou-se o poder central. Estabeleceu-se a territorialidade das leis, ou seja, firmou-se o princípio do jus soli, prevalecendo o direito local, onde o indivíduo se submetia às regras do direito consuetudinário. Surgia, nesse contexto, uma nova figura, a do Senhor Feudal, que possuía o poder jurídico em seu feudo, isto é, na extensão territorial sob seu controle (AMORIM, 2003:73).

Nesse contexto, se sobrepõem os poderes do Senhor Feudal, que subordina os camponeses, os quais devem pagar tributos e prestar serviços pessoais ao senhor feudal. Desse modo, o direito de propriedade imobiliária se conformava diante da autoridade do senhor feudal.

Portanto, na Idade Média, a propriedade perde o caráter unitário e exclusivista, sendo o território sinônimo de poder. A idéia de propriedade está ligada a poder, de modo que  apenas os senhores feudais detinham a propriedade, enquanto os camponeses apenas serviam ao senhor em sua propriedade, mas não eram juridicamente os proprietários  (VENOSA, 2005:175).

Com a desagregação do sistema feudal e o surgimento dos Estados Absolutistas marcados pelo arbítrio das autoridades Estatais, pelos privilégios de classes e pelas desigualdades sociais, econômicas e jurídicas oportunizou-se a reconstrução do conceito de propriedade, voltado à centralização em um titular que concentra o poder de usar, fruir ou dispor (GUEDES, 2003:345).

Visando a abolir as desigualdades sociais herdadas do período medieval e influenciada, por filósofos iluministas, como Rousseau e Voltaire, surgiu a Revolução Francesa, no século XVIII, movimento político reacionário, de propostas liberais, marcadas pelo individualismo e que repudiava as violações aos direitos individuais, tão comuns durante o período do Ancien Regime. Aqui está, sem sombras de dúvidas, a gênese do Estado Liberal que substituiu o Estado Absolutista.

           Portanto, junto ao nascimento do Estado Liberal reaparece o direito à propriedade, ao lado do direito à igualdade social e jurídica, como expressão maior do direito à própria liberdade. O direito de propriedade, para o Estado Liberal, inspirado no pensamento de John Locke era tido como um direito natural e individual, inviolável e sagrado. Percebe-se o traço marcante do individualismo sobre o conceito de propriedade do Estado Liberal.

  Nasce nesse período o Código Napoleônico, de 1804, que em seu artigo 544 definiu assim o direito de propriedade :  “a propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que  não se faça uso proibido pelas leis ou regulamentos” (VENOSA, 2005:175). 

            A partir do Código Napoleônico, portanto, se afirma o conceito de propriedade privada como sendo um direito natural, absoluto e exclusivo. Desse modo fica caracterizada a ideologia extremamente individualista sobre a propriedade privada. O referido diploma, que até hoje se acha em vigor na França, influenciou fortemente a elaboração de códigos civis em todos os países da chamada “família romano-germânica” (FREITAS, 2002:128), incluindo-se a grande maioria dos códigos latino-americanos (VENOSA, 2005:175 ).

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 Somente a partir do século XIX, com a revolução e o desenvolvimento industrial, a estrutura do pensamento jurídico liberal veio sofrer grandes transformações, haja vista as mudanças sociais e econômicas ocorridas com o aparecimento das máquinas, fazendo surgir também o desemprego em massa, a divisão do trabalho, a concentração da riqueza em poder de poucos privilegiados, sendo que a grande maioria ficava à margem do desenvolvimento econômico, fazendo crescer, assim, as injustiças sociais (CARDOSO, 2001:65).

Portanto, nesse contexto de mudanças econômicas e sociais, que oportunizou o surgimento de inúmeras doutrinas socializantes, como, por exemplo, o socialismo, que defendia até mesmo o fim da propriedade privada, é que o conceito extremamente individualista da propriedade privada, estatuído no Código Civil Francês, começou a ser relativizado, buscando-se a partir daí um sentido social para a propriedade privada (VENOSA, 2005:175).

Diante dessa realidade, a propriedade privada passou a ser considerada  a fonte geradora primeira das desigualdades sociais. Desse modo, vários pensadores dessa época, adeptos às mais variadas doutrinas, tais como socialistas, humanistas, democratas e nacionalistas empreenderam um combate à propriedade privada absoluta e individualista do Estado Liberal (CARDOSO, 2001:66).

 Entretanto, duas concepções doutrinárias distintas se destacaram no combate à propriedade privada absoluta e individualista, influenciando sobremaneira as transformações acerca do instituto jurídico da propriedade privada. Segundo  Moraes (1999:92-93), o surgimento da tese da função social da propriedade se deve à doutrina clássica natural da Igreja Católica e, de outro lado, a contribuição dos positivistas do século XIX.

 Procurando romper a forte tendência ao individualismo do Estado Liberal,  o filósofo Augusto Comte, fundador do positivismo do século XIX, estabeleceu as bases teóricas sobre as quais a idéia  da função social iria se sobrepor em contraposição à concepção clássica da propriedade como um direito individual e natural.

Segundo Comte, todo cidadão constitui-se como um funcionário público com atribuições previamente determinadas, possuindo uma função dentro da sociedade na qual vive e devendo exercê-la em prol dessa mesma sociedade. Essa idéia deve também se estender até a propriedade, que possui uma indispensável função social destinada a formar e administrar os capitais com os quais cada geração prepara os trabalhos da seguinte (MORAES, 1999:93). 

Portanto, percebe-se com clareza que o pensamento desse filósofo contribuiu decisivamente para alterar a noção jurídica sobre a propriedade privada, atribuindo-a uma função social e despojando-a do caráter absoluto e individualista.

 Da mesma forma, mas com uma base principiológica distinta, a doutrina social da Igreja Católica, também influenciou nessa transformação, tentando compatibilizar a propriedade privada com as necessidades sociais. Assim, em decorrência das desigualdades sociais e econômicas e também contra a influência do socialismo, a Igreja Católica, através da encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891, do Papa Leão XIII, defendeu a propriedade como Direito Natural, combatendo  a interferência estatal, pois o homem é anterior ao próprio Estado.

De modo geral, segundo esta encíclica, não é das leis humanas, mas da natureza, que emana o direito da propriedade individual, não podendo a autoridade pública o abolir. O que ele pode é regular-lhe o uso e conciliá-lo com o bem comum (CARDOSO, 2001:66). Mas, foi na Alemanha, em 1889, com Gierke, no discurso de Viena sobre a missão social do direito privado, que, pela primeira vez uma autoridade jurídica proclamou que se deveria impor deveres sociais à propriedade e que esta não deveria servir apenas aos interesses egoísticos de seu proprietário, mas que deveria ser ordenada no interesse de todos (MORAES, 1999:93-94).

Entretanto, a expressão “função social da propriedade” somente se popularizou a partir das lições do célebre constitucionalista francês Léon Duguit. Para Duguit, a propriedade é uma instituição jurídica que se formou para responder a uma necessidade econômica, como vários outros institutos jurídicos, e ela deve evoluir de acordo com essas mesmas necessidades econômicas. 

Assim, essas necessidades, transformando-se em necessidades sociais, transformam a propriedade em função social, considerando a interdependência cada vez mais estreita entre os elementos sociais, ou seja, quando a necessidade era econômica ou familiar, a única forma de proteger os indivíduos era a  partir do direito à propriedade privada individual e absoluta, mas a partir do instante em que a sociedade toma consciência de que o homem, em sociedade, não é um fim, mas um meio, e da estreita interdependência social, que liga a todos, com novas exigências sociais,  o proprietário  deixa de ter apenas um direito e passa a ter também um dever de aumentar a riqueza de sua propriedade em virtude da interdependência social.  Desse modo, a propriedade deixa de ser um direito individual, subjetivo, para se transformar em uma função social.

Portanto, a questão da função social da propriedade privada não pode retirar o conteúdo mínimo do direito de propriedade, mas apenas tenta harmonizar os interesses individuais e coletivos, na medida em que delimita o direito de propriedade, exigindo que o proprietário da riqueza usufrua de seu bem sempre em consonância com o bem-estar geral  da sociedade.

Desse modo, a partir de todas estas transformações sociais, econômicas e jurídicas acerca do instituto da propriedade privada, as Constituições de vários países das democracias ocidentais têm adotado o princípio da função social da propriedade, sobretudo a partir do pós-guerra, com as Constituições de Weimar de 1919, primeira Constituição a consignar de forma expressa a idéia de função social da propriedade (MORAES, 1999:33), do México em 1917, de Portugal em 1933, a Constituição Italiana de 1947, e a Constituição Brasileira de 1934, dentre outras (CARDOSO,  2001:72).

Conclui-se, após essa breve síntese sobre a função social da propriedade, que as questões referentes à propriedade privada imóvel, da moradia, do uso adequado do terra, do uso dos recursos ambientais e sua proteção, constituem, sem dúvidas, um dos grandes temas desse início do século XXI. Esse novo século, está tendo como desafio, situar devidamente a utilização social da propriedade, incluindose aqui os limites ambientais à propriedade privada imobiliária (MORAES, 1999:95).

2.1 A função social da propriedade no ordenamento jurídico Brasileiro

A consignação expressa do princípio da função social da propriedade no ordenamento brasileiro é fruto de lenta evolução social, econômica e jurídica. A Constituição do Império de 1924 e a da República de 1891, respectivamente em seus respectivos artigos 179 e 72, limitaram a apenas declarar a forma plena do direito à propriedade, ressalvada hipótese de desapropriação por necessidade ou utilidade pública. A Constituição de 1891 também já admitia as limitações à exploração das minas, cuja propriedade pertencia ao proprietário do solo (MORAES, 1999:38). 

A Constituição de 1934 foi a que trouxe pela primeira vez de forma expressa a atividade do proprietário. Em seu artigo 113, n.17, consignou a garantia do direito de propriedade, mas limitou-o em detrimento do interesse social ou coletivo, ficando clara a influencia da Constituição de Weimar e das idéias de Gierke e Léon Duguit (MORAES, 1999:38). Segundo Moraes (1999:38), essa Constituição além de estatuir a desapropriação, por necessidade ou utilidade pública, também consignou a ocupação temporária da propriedade particular, a nacionalização das minas e demais riquezas do subsolo e das quedas d’ águas.

Já a Carta Magna de 1937, delegou  o poder de definir o conteúdo e os limites da garantia ao direito de propriedade à lei ordinária (artigo 122, n.14). Foram mantidas a nacionalização das minas, das quedas d’águas e outras fontes de energia (MOARES, 1999:38).

A Constituição de 1946 inovou em vários aspectos com referência à propriedade. No artigo 141, §16 foi estatuído o direito de propriedade, mas com a ressalva da desapropriação por necessidade pública ou interesse social, mediante prévia indenização em dinheiro. Também em casos de perigo iminente, como a guerra, as autoridades estariam autorizadas a usar a propriedade particular, se assim exigir o bem comum, resguardado o direito à devida indenização (MORAES, 1999: 39).

No artigo 147, do capítulo sobre ordem econômica e social ficou expresso que o uso da propriedade estaria condicionado ao bem estar social e a lei poderá promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos com fulcro no artigo 141, §16. Todos esses limites expressos à propriedade privada eram decorrentes do princípio da função social da propriedade, que autorizava o legislador a intervir no domínio privado em benefício de toda a coletividade. 

  A partir de então foram surgindo outros diplomas legais que buscavam complementar a lei constitucional, como a lei 4.132/62, que disciplinou as hipóteses da desapropriação por interesse social, e assegurou a manutenção de posseiros em terrenos urbanos ocupados como forma de fazer valer a desapropriação em detrimento da justiça social.

A lei delegada 4/62 que estatuiu a desapropriação por interesse social como meio de intervenção no domínio econômico para tentar garantir a livre distribuição de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo. Surgiu também a emenda Constitucional 10/64, que consignou a desapropriação para fins de reforma agrária, alterando o artigo 46 da Constituição, sendo assim promulgada a lei 4.504/64, o Estatuto da Terra, que estabeleceu os parâmetros para a aplicação e efetivação da função social da propriedade (MORAES, 1999: 39).

A Carta Magna de 1967, repete em grande parte as garantias ao direito à propriedade da Constituição de 1946, mas promove um avanço na linguagem legislativa acercar do reconhecimento da função social da propriedade. Assim, no artigo 160, estabelece que a ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, tendo como base os princípios da liberdade de iniciativa, da valorização do trabalho como condição da dignidade humana, da função social da propriedade, da harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção, dentre outros. Havia também a previsão a desapropriação de terras rurais com o pagamento em títulos especiais da dívida pública (MORAES, 1999:40).

Entretanto, o grande avanço legislativo quanto ao princípio da função social da propriedade foi estabelecido pela Constituição da República de 1988. A Constituição de 1988  disciplina o princípio da função social da propriedade privada em dois capítulos distintos. Primeiramente, no Título II, capítulo I, Dos Direito e Deveres Individuais e Coletivos, artigo 5°, onde no inciso XXII, estatui que é garantido o direito de propriedade, e logo em seguida no inciso XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social. 

Depois, no título VII, capítulo I, Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica, artigo 170, que diz que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - Soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade. Essas disposições constitucionais citadas acima correspondem a preceitos fundamentais gerais que devem nortear outras disposições tanto constitucionais quanto infraconstitucionais.

 A par dessas disposições fundamentais gerais, cuidou, o legislador constituinte, de estabelecer também outras disposições legais que buscam tornar efetivo o princípio da função social da propriedade. Desse modo, temos o artigo 156, § 1° que assevera que o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana “poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”.

No artigo 182, caput, diz que “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar se seus habitantes.” Ainda nesse mesmo artigo, em seu § 2°, prescreve que “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor.”

No capítulo III, “Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária”, o artigo 184, caput, dispõe que:

Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até 20 (vinte) anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja emissão será definida em lei.

Também, o artigo 185 prescreve que: “ São  insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:  I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; II – a propriedade produtiva”; e o Parágrafo Único do mesmo artigo diz que: “A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social.” Em seguida o artigo 186 consigna quais são esses requisitos estabelecidos no parágrafo único do artigo 185 da Constituição quando estatui que: 

A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigências estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. 

Todos esses artigos elencados fazem de forma expressa referência à função social da propriedade.  Há ainda na Constituição da República Brasileira outros artigos que estabelecem regras jurídicas específicas que buscam condicionar a propriedade, como, por exemplo, o § 4º do artigo 182, quando diz: 

É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública e emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até 10 (dez) anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.  

 Em outros artigos também está presente o princípio da função social da propriedade mesmo que não fazendo referência expressa a tal princípio, como, por exemplo, a desapropriação por interesse social (artigo 5º, XXIV) e a intervenção estatal no domínio econômico por relevante interesse coletivo (artigo 173, caput). Evidentemente que tanto o instituto da desapropriação quanto da intervenção estatal não se confundem com o princípio da função social, mas são instrumentos eficazes para torná-la efetiva (MORAES, 1999: 42).  

 Portanto, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro garante o direito à propriedade, desde que seja respeitado também o princípio da função social da propriedade. De outro modo, constata-se que a função social da propriedade é um elemento interno, intrínseco à própria propriedade, isto é, corresponde a um elemento qualificador e integra o direito de propriedade, predeterminando o uso, o gozo e a disposição, em conformidade com o bem geral da coletividade. Em suma, pode-se dizer que a propriedade constitucionalmente protegida não é a propriedade individualista e absoluta, mas a propriedade que cumpre sua imanente função social.

Esta, sim, está, agasalhada pelo manto das normas constitucionais brasileiras.

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Sobre o autor
José Mário Delaiti de Melo

Advogado especializado em Direito Civil e Administrativo, militante nas áreas de consultoria e contencioso (judicial e administrativo), Consultor Jurídico, Servidor Público, Administrador, Teólogo, Mestre e Doutor em Teologia. Pós-graduando em Direitos Humanos e graduando em Administração Pública e em Filosofia. Pós-doutorando (PHD) em Filosofia Cristã. É autor de diversos artigos jurídicos nas áreas de Direito Administrativo, Civil, Ambiental, Processual Civil, Família, Trabalhista, Tributário e Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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