Limitações ambientais à propriedade imobiliária privada no Brasil

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07/09/2017 às 01:04
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4 PRINCÍPIO DO ACESSO EQÜITATIVO AOS BENS AMBIENTAIS

 Princípios são proposições básicas, fundamentais que condicionam toda a estruturação de uma ciência. Segundo Milaré (2004:136) a palavra princípio deriva do latim (primum capere) e significa aquilo que se toma primeiro,  designando o início, começo e ponto de partida. Portanto, toda ciência autônoma possui seus princípios norteadores que constituem balizas que indicam as diretrizes básicas de suas proposições.

 O Direito Ambiental também possui seus princípios fundamentais, e, presentemente observa-se um grande esforço da comunidade internacional para a criação de princípios gerais de direito ambiental, na expectativa de serem efetivados e implementados pelos Estados em sus legislações internas (MILARÉ, 2004:6). 

Perscrutando a literatura referente aos princípios de direito ambiental pode-se enumerar, dentre outros, os seguintes princípios que visam a proteção dos bens ambientais:  princípio do acesso eqüitativo aos bens ambientais; da soberania permanente sobre os recursos naturais; do direito ao desenvolvimento; do patrimônio comum da humanidade; da responsabilidade comum mas diferenciada; da precaução; do poluidor-pagador; do dever de não causar dano ambiental; da responsabilidade estatal; da equidade intergerencial; da prevenção; da responsabilidade ecológica; da informação; da participação (WOLD et al, 2003:8-31); princípio do ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental da pessoa humana; da natureza pública da proteção ambiental; do controle do poluidor pelo Poder Público; da consideração da variável ambiental no processo decisório de políticas de desenvolvimento; da participação comunitária; da função socioambiental da propriedade; do direito ao desenvolvimento sustentável e da cooperação entre os povos (MILARÉ, 2004:136-153).

 Em consonância com o objetivo desse trabalho, qual seja, compreender as restrições ambientais à propriedade privada imobiliária no brasil, ater-se-á ao princípio do acesso eqüitativo aos bens ambientais, por entendê-lo como essencial para compreender a propriedade privada como sendo um direito fundamental, limitado e condicionado ao bem-estar social .

 Como vem sendo demonstrado em todo esse trabalho científico, a propriedade não é mais vista dentro da concepção individualista do Código Civil de 1916. Na sociedade hodierna, cada vez mais se consolida o entendimento de que a propriedade deve atender a uma função sócioambiental, não se prendendo aos interesses puramente privados de seus proprietários (MILARÉ, 2004:146).

 Os bens ambientais devem satisfazer as necessidade comuns de todos os seres humanos, portanto, bens como a água, o ar e o solo compreendem bens de uso comum do povo, no sentido de que todos devem ter acesso eqüitativo a esses bens (MACHADO, 2000:41). Segundo Machado (2000:43), existem, dentre outras, três formas de acesso aos bens ambientais: 1 –  acesso visando ao consumo do bem, como a captação de água, a caça e a pesca; 2 – acesso causando poluição (acesso à água ou ao ar para lançamento de poluentes; acesso ao ar para a emissão de sons); 3 – acesso para a contemplação da paisagem.

Uma hierarquia no acesso aos bens determinará a proximidade dos usuários em relação aos mesmos, podendo-se afirmar que a prioridade no uso dos bens deve percorrer uma escala que vai do local ao planetário, perpassando pela região, pelo país e pela comunidade de países. Mas o uso prioritário não significa exclusividade, pois os prováveis usuários só poderão usar dos bens ambientais na proporção de suas necessidades atuais e não futuras e  após a constatação de que possuem tecnologia eficiente que garanta o uso imediato dos bens ambientais.

 A equidade no acesso aos recursos ambientais, além de possibilitar o uso adequado dos mesmos, dentro das necessidades atuais dos usuários, poderá também contribuir para que as gerações futuras possam ter acesso a bens ambientais de qualidade, como por exemplo, preceitua a Convenção para a Proteção e Utilização dos Cursos de Água Transfronteiriços e dos Lagos Internacionais, de Helsinque, de 1992, em suas disposições gerais, artigos 2º, 5, c, ao asseverar que “ os recursos hídricos são gerados de modo a responder  às necessidades da geração atual sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades” (Machado, 2000:44).

Pode-se observar o princípio do acesso eqüitativo aos bens ambientais na legislação brasileira na lei 9433/97, que em seu artigo 11 estatui que “o regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos tem como objetivos assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água” (MACHADO, 2000:44).

  Ademais, como que corolário do princípio do acesso eqüitativo aos bens ambientais está a própria constituição brasileira ao estabelecer, em seu artigo 225, caput,  que : 

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à  coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.    


5 DAS RESTRIÇÕES AMBIENTAIS À PROPRIEDADE 

 O Direito Ambiental, por sua própria natureza jurídica, como protetor de direito difuso, está em constante relação com diversos ramos da ciência jurídica, sobretudo, com o direito constitucional, administrativo, civil e penal. Para fazer cumprir suas determinações acerca da relação dos indivíduos com os recursos ambientais, o direito ambiental se serve de diversos institutos jurídicos das mais variadas áreas do direito, como as já citadas acima.

Entretanto, apesar da utilização de instrumentos jurídicos de outras áreas, sobretudo, administrativos, o viés e os princípios que norteiam e ditam as diretrizes básicas para a aplicação desses instrumentos, tendo em vista a proteção ambiental, são peculiares e diferem essencialmente da natureza jurídica e axiológica da forma como são percebidos nas  outras áreas do direito. 

 Tendo em vista o objetivo desse trabalho, que é compreender as restrições ambientais à propriedade imobiliária privada no brasil, procurou-se discutir as principais formas de restrições da propriedade imobiliária privada, como as limitações administrativas, as servidões administrativas, o tombamento e a desapropriação, sem, evidentemente, desconsiderar várias outras formas  que limitam o direito do proprietário, como, por exemplo, licenciamentos e sanções de natureza

penal.

  Contudo, é imprescindível demonstrar que a base principiológica, ou seja, a visão que norteia toda a aplicação desses instrumentos jurídicos, tendo em vista a proteção ao meio ambiente, tem como conteúdo teleológico a função sócioambiental da propriedade, haja vista que a função social da propriedade abrange a noção de função ambiental da propriedade. Importante destacar que a função social da propriedade, da qual a função ambiental é espécie, não consiste em uma restrição ou limite ao exercício de direito de propriedade, ou seja, não basta o proprietário deixar de fazer algo que prejudique o meio ambiente, mas é necessário que o mesmo tenha comportamentos positivos, no exercício de seu direito, para que a propriedade atenda às exigências de preservação ao meio ambiente (MILARÉ, 2004:147). 

 Portanto, conclui-se que a função socioambiental é um elemento interno da propriedade, isto é,  a situação jurídica do proprietário existe na medida e no propósito de que, por seu intermédio, possa-se alcançar, além da realização de sua função pessoal, a realização do potencial axiológico que a sociedade reconhece no seu objeto. É com essa visão que o ordenamento jurídico acopla à noção de função pessoal, o plano da função social, determinando que não basta ao proprietário, ao realizar seu direito, buscar a satisfação de seus interesses pessoais, mas através desses deverá promover a realização dos valores sócioambientais hábeis a serem alcançados em razão do potencial axiológico da propriedade. 

 Em conformidade com essa nova visão jurídica da propriedade, a Constituição da República de 1988 institui a função social quando:1) no artigo 5º, XXIII,  diz que a propriedade atenderá a sua função social; 2) ao dar à função social da propriedade o status de pilar da ordem econômica, em seu artigo 170, III; 3) no  artigo 182, §2º da CR/88,  estabelece a política de desenvolvimento urbano e, 4) no artigo 186 estabelece critérios para o atendimento da função social pela propriedade rural (Milaré, 2004:147). Também o novo código civil brasileiro, lei nº 10.406 de 2002, estatui em seu artigo 1228, § 1º que : 

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.

 Portanto, na visão do direito ambiental, as limitações à propriedade são elementos inerentes à própria propriedade, isto é, não basta ao proprietário atentar para os limites negativos de seu direito, não basta que se abstenha de realizar toda e qualquer conduta que contrarie as impropriamente denominadas restrições à propriedade. Mais do que isso, é imprescindível que realize todo um conjunto de atividades destinadas a permitir que os valores sociais potencialmente presentes na propriedade sejam realizados. 


6  CONCLUSÃO

 A partir  desse trabalho científico sobre os limites ambientais à propriedade  imobiliária privada no Brasil, conclui-se que não prevalecem mais na ordem jurídica brasileira atual os elementos clássicos que atribuíam à propriedade caráter absoluto, ilimitado e perpétuo. Essa concepção tornou-se inoperante e obsoleta face aos anseios da sociedade hodierna, que busca compatibilizar direitos coletivos e difusos com os direitos privados. Dessa forma, percebe-se que o ordenamento jurídico estabelece o princípio da função sócioambiental como sendo um direito fundamental dentro da órbita jurídica, afetando sobremaneira os direitos do proprietário.

 A admissão do princípio da função socioambiental da propriedade tem como conseqüência fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o próprio meio ambiente. É imperioso que se destaque que tal função não constitui um limite ao exercício do direito da propriedade, como se infere de sua  concepção clássica que determina que o proprietário pode fazer tudo o que não prejudique a coletividade, ao meio ambiente, e não transgrida o ordenamento jurídico.

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 Diversamente, ela impõe ao proprietário comportamentos positivos, no exercício de seu direito real, para que a sua propriedade se adeque concretamente à preservação do meio ambiente. Portanto, conclui-se que o direito de propriedade e seu uso ficaram constitucionalmente condicionado à sua função sócioambiental, não se confundindo com meros limites, pois é inerente a estrutura jurídica da propriedade, ou seja, ela se manifesta na própria configuração do direito de propriedade, constituindo-se como elemento qualificador e essencial na predeterminação dos modos de usar , gozar e dispor da propriedade. É com essa concepção que o intérprete deve compreender as normas constitucionais e infraconstitucionais que fundamentam o regime jurídico da propriedade .

 Faz-se necessário estudos cada vez mais consistentes que reafirmem a função sócioambiental da propriedade como forma de eliminar os resquícios da concepção individualista de direito, pois essa nova visão jusambientalista ainda está em formação não havendo clareza de quais sejam de fato e de direito as características da propriedade que sejam incompatíveis com tal princípio, muitas vezes pelo predomínio de uma cultura eminentemente civilista clássica individualista.

Urge que as concepções predominantemente individualistas desapareçam por completo, face a urgência da proteção ao meio ambiente para que se garanta sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações, conforme preceito constitucional. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 22 ed. São Paulo : Editora Malheiros. p. 512-552, 1997.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. rev. e atual. Editora Malheiros. p.758-798. São Paulo, 2004.

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Sobre o autor
José Mário Delaiti de Melo

Advogado especializado em Direito Civil e Administrativo, militante nas áreas de consultoria e contencioso (judicial e administrativo), Consultor Jurídico, Servidor Público, Administrador, Teólogo, Mestre e Doutor em Teologia. Pós-graduando em Direitos Humanos e graduando em Administração Pública e em Filosofia. Pós-doutorando (PHD) em Filosofia Cristã. É autor de diversos artigos jurídicos nas áreas de Direito Administrativo, Civil, Ambiental, Processual Civil, Família, Trabalhista, Tributário e Penal.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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