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Direito do Trabalho e globalização

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O direito do trabalho parece ser o ambiente jurídico mais suscetível às transformações decorrentes do processo de globalização. Está em perigo a dignidade do trabalhador na presente conjuntura1. O direito do trabalho fixou-se no passado em âmbito de direito privado, dada a ficção que presumia liberdade contratual absoluta na celebração do pacto de emprego, então enfocado sob o prisma da autonomia da vontade e consubstanciado no leading case norte-americano representado pelo caso Lochner vs. New York2.

O aludido caso chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos em 1905. Joseph Lochner era o proprietário de uma panificadora e fora condenado por ter desrespeitado lei do estado de Nova Iorque, que proibia que padeiros trabalhassem mais de dez horas por dia. Lochner exigia que seus empregados labutassem além do permitido. Dizia-se correto, que sua conduta era lícita, porque havia aquiescência do empregado, que também estaria exercendo a liberdade de contratar. A questão foi apreciada pela Suprema Corte norte-americana, que decidiu que a lei novaiorquina era inconstitucional3. Promoveu-se indiscriminadamente a liberdade de contrato.

Todavia, o intervencionismo característico de meados do século XX reenfocou o direito laboral, matizando-o com as premissas que informam o direito público, coroando tendência conceitual que se desenhava nitidamente já em Evaristo de Moraes4 e em Lindolfo Collor no plano menos acadêmico e mais político5. A onda neoliberal contemporânea ensaia uma reprivatização dos cânones de interpretação do direito do trabalho, processo que emerge como flexibilização das regras, principalmente percebido no projeto de lei n. 5483/01 que pretende alterar o artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho6, fazendo prevalecer a convenção coletiva em detrimento da legislação7.

O empresário vê-se forçado a competir em condições que exigem mão-de-obra barata e manipulação de horários. Uma fúria neoliberal estaria minando conquistas laborais construídas ao longo de penosa jornada histórica8. Suposto anacronismo do contrato de trabalho9 exige esforço e vigilância redobrados dos juristas para com os efeitos da globalização no direito laboral10. A reversão da concentração industrial promove uma descompensação da migração setorial da mão-de-obra, determinando a massificação do desemprego11, provocando o pânico, a adesão a qualquer aceno de oportunidade de trabalho, a qualquer preço, sob quaisquer condições.

Reflexos da conjuntura internacional, marcada pela prática de dumping social, pela qual os países abaixam salários e fazem de tudo para que seus produtos sejam competitivos no mercado internacional, atingem a estrutura do direito laboral, em proporções alarmantes. O trabalhador paga diretamente esta conta, pois

(...) nos dias que correm, sendo a nossa pátria, infelizmente, quase sempre uma caixa de ressonância daquilo que acontece lá fora, estamos no apogeu da onda neoliberalizante, praticando uma reengenharia do Estado, solapando as instituições, demolindo conquistas, encolhendo a máquina administrativa, vendendo tudo (...)12 .

O texto constitucional de 1988 havia acenado com grandes conquistas para a classe trabalhadora. Efetivamente, uma realidade econômica marcada pela influência da onda neoliberal pretende anular aquela vitória de Pirro. Assim,

Após 21 anos de arrocho-político em virtude do regime instalado pelos militares, a idéia de uma nova Constituição insuflada pelas diversas correntes políticas que trabalharam pela volta da democracia foi saudada como a panacéia para todas nossas viscissitudes. Logo promulgada a Constituição, começaram as críticas, algumas delas veementes, taxando-a de responsável por uma suposta impossibilidade de se governar o país. Porque coincidiu a chegada da nova Constituição, exatamente, com o surgimento de um liberalismo vestido de nova roupagem, porém, com a mesma estrutura filosófica, como se fora um sepulcro caiado de que nos fala o Evangelho13.

A realidade violenta que nos sufoca infelizmente comprovou a imprestabilidade fática da fala constitucional, opondo mais uma vez a ética da convicção e a preocupação com os fins que caracterizam os economistas em face da ética da responsabilidade e da preocupação com os meios que marcam a atuação desses últimos. É lugar comum no discurso jurídico afirmar que

Os economistas, ostentando teses herméticas e salvadoras, vociferam contra o custo Brasil, mostrando a necessidade premente de fazer o produto Made in Brazil competitivo para o crescimento das divisas14.

O assalto internacional às forças nacionais promove medidas que caracterizam o mencionado dumping social, o que configura abuso de poder econômico15 . A competitividade de nossos produtos no mercado internacional depende de quadro geral de preços internos, que começam com a redução de salários, dado o desinteresse do Estado em aliviar a carga tributária. É nesse ambiente de fortíssima pressão que campeia o desemprego, prolifera o subemprego e miniaturiza-se o salário mínimo. De tal modo,

Filho enjeitado dessa conjuntura ‘liberalizante’ , o salário mínimo, segundo os entendidos em matéria econômica, um dos componentes menos significativos do tal ‘custo Brasil’, foi escolhido como ‘bode expiatório’ para justificar não só o desequilíbrio da Previdência Social quanto a impossibilidade de os órgãos públicos arcarem com o salário maior. E a Constituição ? Ora, a Constituição que vá para ... qualquer lugar, menos aqui16.

Dissolve-se o direito do trabalho, não obstante sua carga de historicidade, de representação normativa de luta antiga contra o capital. Por isso,

A pasteurização da economia, isto é, a sua globalização, passando pelos interesses do capital em face da implosão das muralhas socialistas que barravam a sua expansão, conduz a uma pasteurização do direito, principalmente do Direito do Trabalho, que é entrave aos objetivos da nova ordem econômica e política mundial17.

Com o objetivo de se neutralizar qualquer oposição à sanha do capital no desmonte da tradição obreira, acena-se com o desemprego e promove-se um processo de desradicalização das ideologias. A leveza e o descompromisso de um sentir conceitual light determina que qualquer forma de radicalização, nesse sentido originariamente marxista de se tomar as coisas pela raiz, protagonizaria o desentendimento. Nesse aspecto,

(...) a desradicalização das ideologias serve muito mais aos propósitos liberais, do que aos sociais, na medida em que o discurso da ‘liberalização’ dos institutos de direito social tem sido bem mais pujante e forte do que o da ‘socialização’ dos institutos de direito privado18.

Consequentemente, o movimento sindical agoniza entre Scylla e Caribbis, imagem da literatura clássica que plasma perigos e indecisão, oscilando entre interesses imediatos de manutenção mínima de emprego e projetos mais ambiciosos de avanço nas condições de trabalho. O enfraquecimento do poder sindical é sintoma que se desenvolve desde o apogeu do Estado de bem-estar, que como uma esponja procurava absorver a luta de classes. Há proposta para ambiciosa reforma sindical em andamento19. Tem-se também que em meados da década de 1990 o Brasil viveu a mais grave crise de emprego de sua história20.

O próprio critério de território21 fragmenta-se com a nova cartografia do poder, mascarando a resposta natural à injustiça e à exploração dos empresários22. Com efeito,

(...) no direito sindical, percebe-se um gradual enfraquecimento das entidades sindicais. A partir da adoção do pacto proposto pelo Estado do bem-estar, para evitar o conflito de classes, houve uma efetiva perda de importância das entidades sindicais, até mesmo para o próprio operariado23.

Sentir realista parece nortear as reflexões mais recentes em torno dessa aparente desconstrução do direito do trabalho. Inevitável o processo de mundialização do capital, o que suscita problemas, que devem ser enfrentados, a tomarmos a circunstância como mais uma (entre outras no pretérito havidas) que ameaça o vendedor da força de trabalho. Nesse sentido,

O processo de globalização, ao mesmo tempo em que propicia a internacionalização do sistema produtivo de serviços, começa a evidenciar a necessidade de se buscar, de forma mais concreta, imediata e progressiva, a solução de necessidades prementes para garantir a sobrevivência da humanidade, que deixa de ser uma abstração, para se converter numa realidade24.

Percebe-se hoje que a historicidade do direito do trabalho convivia com o desdobramento de práticas que configuram a globalização, que também detém posição de fragmentação histórica, sobremodo a partir do século XVIII25. Concomitantemente a algumas conquistas da trajetória do movimento obreiro descortinava-se a realidade globalizante. Assim,

A globalização, ao contrário do que pode parecer, é um processo muito antigo, que vem se desenvolvendo há milhares de anos e que tende à eliminação de fronteiras nacionais e à fusão das inúmeras culturas locais para a formação de um núcleo cultural homogêneo comum26.

A partir de 1945 o movimento globalizante teria ganho mais velocidade, e de tal maneira,

Com a queda dos nacionalismos e o início da decadência do socialismo real, a partir do final da Segunda Grande Guerra, o processo de globalização, que havia permanecido suspenso até então, ingressou em sua derradeira fase de consolidação. Uma das características dessa fase é a superação dos paradigmas da modernidade e o advento da pós-modernidade27.

Em que pese o avanço nos direitos conquistados é axioma que se faz necessária uma reforma no modelo normativo laboral que estabeleça um mínimo de proteção a todos os trabalhadores, abaixo do qual não se concebe a dignidade do ser humano28, embora não se perceba a assertiva de forma integral, dado que,

(...) é urgente uma reforma da legislação, num contexto reformista de todo o ordenamento legal brasileiro, que lhe permita ombrear-se com as profundas e rápidas transformações que marcaram o fenômeno social do século XX e invadem com o mesmo ritmo vertiginoso o alvor do século XXI29.

A miniaturização do Estado, aporia de uma monstruosidade ridícula e perigosa30, tende a transferir para a iniciativa privada funções ordinariamente publicísticas, a exemplo da fiscalização do respeito a direitos humanos, que também fica relegada a segmentos do terceiro setor31. Indiscutível que a desregulamentação e a flexibilização são expressões sinônimas que conduzem à idéia de redução do nível de intervenção estatal nas relações de trabalho32. Entre outros, é que

No ambiente econômico globalizado, a assunção de um papel tutelar dos direitos humanos pelas grandes companhias indica uma tendência de transferência da responsabilidade social do Estado para a iniciativa privada33.

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Enquanto ao trabalhador procurou se reservar o direito à liberdade do trabalho, na mesma medida à empresa pretende-se garantir a liberdade de atividade econômica34. A consecução deste último objetivo contrasta com a formatação daquele primeiro. Cria-se um dilema de exclusão. A liberdade do trabalho passou a ser mitigada em nome da garantia da liberdade econômica, como reflexo direto do fato de que hoje o direito do trabalho é tratado pelos economistas como se fosse matéria de guarda-livros35 . E são estes ( os economistas ) que acicataram as funções de orientação de produção normativa. E é por isso que

não resta então ao legislador pátrio outra alternativa para preservar sua autoridade funcional, que não seja aquela de menos intervir e menos disciplinar, pois, quanto menos disciplinar e intervir menor será o risco de ser desmoralizado pela ineficácia de seu instrumental regulatório36.

Implementa-se programa desenvolvido pelo capital internacional, que não vê limites. Tudo se faz em nome da eficiência, da concorrência, da ampliação das condições de competição no mercado. Eventuais direitos da empresa chocam-se com efetivos direitos de seus trabalhadores; estes últimos levam a pior. Invoca-se que sem aquelas estes últimos não existem e que todos os sacrifícios são necessários, pertinentes, impostergáveis. O problema é recorrente e

Fala-se em destruição ou minimização dos direitos instituídos em prol dos trabalhadores, para propiciar às empresas mais produtividade e maior competitividade, ou seja, o favorecimento do capital em detrimento do trabalho37.

Estes os efeitos da globalização, da mundialização do capital e do neoliberalismo em relação ao direito do trabalho. Orquestra-se um movimento que limita direitos historicamente conquistados, em nome de uma discutível eficiência, sob uma cortina ideológica que alberga a ameaça, o medo, a ansiedade e a apreensão com o desconhecido, aspectos que marcam nossos tempos.

Uma voz traiçoeira começa a ser ouvida, sussurrando que não se pode falar em direito do trabalho onde não há emprego, sutil lamento de um salve-se quem puder oportunista, entreguista e vendido. Certa razão indolente quer se acomodar, esquecendo-se de uma trajetória de lutas, protagonizada por aqueles que nunca usaram black tie.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. A Dignidade do Trabalhador no Cenário da Globalização Econômica, artigo, in Revista LTr, v. 66, n. 12, dezembro de 2002.

2 GILLMAN, Howard. The Constitution Besieged, The Rise and Demise of Lochner Era Police Powers Jurisprudence, p. 64 e ss.

3 SCHWARTZ, Bernard. A History of the Supreme Court, p. 193 e ss.

4 MORAES, Evaristo de. Apontamentos de Direito Operário, p. 23 e ss.

5 RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho, p. 11.

6 Benedito Calheiros Bonfim, A Legislação Trabalhista e a Flexibilização, artigo in Revista de Direito do Trabalho n. 108, p. 31.

7 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. op.cit., p. 66-12/1443.

8 SOUZA, Sérgio Alberto de. Direito, Globalização e Barbárie, p. 66 e ss.

9 DINIZ, José Janguiê Bezerra. O Direito e a Justiça do Trabalho diante da Globalização, p. 96 e ss.

10 ROMAGNOLI, Umberto. Os Juristas do Trabalho ante a Globalização, artigo, in Diana de Lima e Silva e Edésio Passos (coord.), Impactos da Globalização- Relações de Trabalho e Sindicalismo na América Latina, p. 21 e ss.

11 PINTO, José Augusto Rodrigues. A Globalização e as Relações Capital/Trabalho, artigo in Adroaldo Leão e Rodolfo Pamplona Filho (coord. ), op. cit., p. 104 e ss.

12 SOARES, Ronald. A Inconstitucionalidade do Salário Mínimo ( Salário Mínimo e Neoliberalismo), artigo in Revista LTR, n. 64, p. 1255.

13 SOARES, Ronald. op.cit., pg. 1257.

14 SOARES, Ronald. op.cit., loc. Cit.

15 TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico, p. 152.

16 SOARES, Ronald. op.cit., loc.cit.

17 SOARES, Ronald. op.cit., p. 1260.

18 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves O Contrato Individual do Trabalho no Contexto Neoliberal: Uma Análise Crítica, artigo in Revista LTR, n. 67, p. 426.

19 PASSOS, Edésio. Reflexões e Propostas sobre a Reforma Trabalhista e Sindical, artigo in Revista LTR, v. 67, p. 519 e ss.

20 OLIVEIRA, Ribamar. Emprego, in LAMOUNIER, Bolívar (org.), A Era FHC- um Balanço, p. 99.

21 MANGANO, Octávio Bueno. Organização Sindical Brasileira, p. 8.

22 RODRIGUEZ, Américo Plá. Princípios de Direito do Trabalho, p. 24.

23 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. op.cit., p. 424.

24 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. Os Direitos Sociais no Âmbito do Sistema Internacional de Normas de Proteção dos Direitos Humanos e seu Impacto no Direito Brasileiro: Problemas e Perspectivas, artigo in Revista LTR, n. 67, p. 647.

25 FERRER, Aldo. Historia de la Globalización, p. 11.

26 LEITE, Roberto Basilone. Desregulamentação, Flexibilização e Reconstrução do Ordenamento Trabalhista: o Trabalhador entre o Neoliberalismo e o Garantismo, artigo in Revista LTR, v. 66, p. 1413.

27 LEITE, Roberto Basilone. op.cit., p. 1414.

28 SUSSEKIND, Arnaldo. Atualização da Legislação Trabalhista, artigo in Revista LTR, v. 67, p. 135.

29 PINTO, José Augusto Rodrigues. As Opções Legislativas para uma Reforma Trabalhista e a Legislação Setorial, artigo in Revista LTR, v. 67, p. 685.

30 GOYARD-FABRE, Simone. Os Princípios Filosóficos do Direito Político Moderno, p. 427.

31 PIOVESAN, Flavia e FREITAS JR., Antonio Rodrigues de. Direitos Humanos na Era da Globalização : o Papel do 3º Setor, artigo in Revista de Direito do Trabalho, n. 105, p. 78 e ss.

32 MARINS, Benimar Ramos de Medeiros. As Transformações do Direito do Trabalho e do Princípio da Irrenunciabilidade, artigo in Revista LTR, v. 66, p. 697.

33 Cardoso, Luciane. Códigos de Conduta, Responsabilidade Empresarial e Direitos Humanos dos Trabalhadores, artigo in Revista LTR, v. 67, p. 917.

34 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Princípios do Direito do Trabalho e Direitos Fundamentais do Trabalhador, artigo in Revista LTR, v. 67, p. 908.

35 FAUSTO, Francisco. A CLT Sexagenária, Folha de São Paulo, 10 de novembro de 2003, p. A3.

36 GOMES, Dinaura Godinho Pimentel. A Dignidade do Trabalhador no Cenário da Globalização Econômica, Revista LTR, v. 66, p. 1436.

37 FILHO, José Soares. A Crise do Direito do Trabalho em Face da Globalização, artigo in Revista LTR, v. 66, p. 1168.

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Sobre o autor
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Professor universitário em Brasília (DF). Pós-doutor pela Universidade de Boston. Doutor e mestre em Direito pela PUC/SP. Procurador da Fazenda Nacional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GODOY, Arnaldo Sampaio Moraes. Direito do Trabalho e globalização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 525, 14 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6042. Acesso em: 23 abr. 2024.

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