Aspectos jus-bioéticos do cuidado de enfermagem

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13/09/2017 às 21:27
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Reflexões sobre as dimensões bioéticas e jurídicas dos cuidados que acercam a profissão de enfermeiro, numa interface entre esses princípios e o dever de responsabilidade do profissional.

Introdução:

Bioética e cuidado são conceitos que estão interligados, pois o cuidado é, antes de tudo, um dever, inclusive ético, com algo ou alguém. Zoboli (2006, p. 122) cita que, dentre os paradigmas bioéticos mais comuns, seis se destacam: do liberalismo, das virtudes, da casuística, narrativo, principialista e do cuidado.

Para o cuidado de enfermagem, destaca-se aqui, a ética do cuidado que se constitui um dos enfoques da Bioética, que em uma percepção própria do problema ético em comparação com os demais enfoques, pois para o paradigma do cuidado: “o problema ético não se origina do confronto entre direitos rivais, mas de um conflito de responsabilidades, o que requer um modo de pensar contextual e narrativo, em vez do formal e abstrato, que é mais usual” (ZOBOLI, 2006, p. 132).

A compreensão da ética do cuidado engloba os seguintes elementos: “ter consciência da conexão entre as pessoas, reconhecendo a responsabilidade de uns pelos outros; entender a moralidade como resultante do reconhecimento dessa interconexão e acreditar que a comunicação é o modo de solucionar conflitos” (ZOBOLI, 2006, p. 132).

Para a resolução dos conflitos, a Bioética desenvolve o paradigma principialista que consiste no uso da técnica dos princípios que fazem referência a valores morais visando solucionar conflitos verificados na realidade clínica. Nesse sentido, Sgreccia (2002, p. 168) afirma que: “os princípios fornecem indicações gerais de comportamento, mas é o valor ético do bem da pessoa como fim último a ser atingido que confere o sentido último da ação”.

Para avaliar os impactos desses princípios bioéticos sobre o cuidado em enfermagem, foram elencados neste texto, quatorze princípios: autonomia, beneficência, não maleficência, justiça, privacidade/anonimato, sigilo, alteridade, confiança, confidência, duplo efeito, solidariedade, terapêutico, precaução, subsidiariedade.


Os princípios da bioética:

O princípio da autonomia é aquele que possibilita ao sujeito desenvolver a capacidade de ser e agir como tal, estando “fundamentado no critério ético da emancipação da razão humana, do direito sócio-político da decisão e da ação autônomas” (SANTA ROSA et. al., 2008, p. 399).

Nesse viés, a aplicação do princípio da autonomia incidirá principalmente na relação que existe entre os profissionais de enfermagem e os pacientes/usuários, de maneira que esse princípio poderá contribuir com o estabelecimento de uma relação harmoniosa. Apesar disso, o profissional de saúde deve sempre buscar agir respeitando os valores, prioridades, desejos e as próprias crenças dos pacientes.

Para Schramm e Siqueira-Batista (2005, p. 38) o “princípio da autonomia, segundo o qual cada indivíduo tem o direito de dispor de sua vida da maneira que melhor lhe aprouver, optando pela morte no exaurir de suas forças, ou seja, quando sua própria existência se tornar subjetivamente insuportável”.

O princípio da beneficência é um princípio de cautela, alerta e prudência que se encontra vinculado à ação de fazer o bem, de não causar danos, favorecendo a qualidade de vida. Ele se caracteriza pela “ação da promoção do bem estar do outro, levando-se em conta os desejos, necessidades e os direitos de outrem” (SANTA ROSA et. al., 2008, p. 398).

Uma situação limite que possibilita a aplicação do princípio da benefiência se dá quando o profissional de enfermagem se depara com um paciente/usuário em iminente risco de morte e ele executa ações de enfermagem sem o consentimento dessa pessoa ou de seu representante legal, mas garante a vida do paciente/usuário.

Inclusive, o Código Brasileiro de Ética dos Profissionais de Enfermagem, aprovado pela Resolução nº. 311/2007, do Conselho Federal de Enfermagem, órgão regulador do exercício profissional da enfermagem no Brasil, prevê essa exceção ao consentimento do paciente no art. 27: é proibido ao Profissional de Enfermagem “executar ou participar da assistência à saúde sem o consentimento da pessoa ou de seu representante legal, exceto em iminente risco de morte”.

O princípio da não-maleficência indica o dever não só dos profissionais de saúde, mas, também, “de todo cidadão, de tentar proteger os indivíduos ou a sociedade como um todo, de todos os tipos e níveis de malefícios, quer físicos, emocionais ou sociais, além de evitar causá-los ou impor, a quem quer que seja, risco desnecessário” (SANTA ROSA et. al., 2008, p. 398).

Esse princípio impõe ao profissional de enfermagem o dever ético e moral de oferecer um apoio socioemocional ao indivíduo em situação de vulnerabilidade e, também, de adotar todas as medidas que visem a não causar o dano a esse paciente/usuário, o que implica não somente em um “não-fazer”, mas, no questionando de quaisquer práticas que possam ferir tal objetivo, como se verifica nas situações de “obstinação terapêutica”, quando se aplica o tratamento fútil ou causador de sofrimento desnecessário em pacientes terminais.

O princípio da justiça “se refere à obrigação de igualdade de tratamento e, em relação ao Estado, de justa distribuição das verbas para a saúde, para a pesquisa etc” (SGRECCIA, 2002, p. 167). Isto explica por que alguns pensadores o entendem como o princípio da equidade (LEPARGNEUR, 1996).

Uma forma de efetivação desse princípio ocorre quando o profissional de enfermagem zela pela justa alocação dos recursos disponíveis no ambiente de saúde para que atenda o imperativo da justiça equitativa.

No Brasil, o princípio da privacidade/anonimato se encontra previsto na Resolução nº. 340/2004 do Conselho Nacional de Saúde como uma garantia aplicável ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (CNS, 2004). De acordo com André Rüger (2007, p. 65), o princípio da privacidade “pode ser compreendido como reclamo do princípio da autonomia, tendo em vista que se presta a impedir que dados genéticos sejam revelados a terceiros sem a autorização do paciente”.

Este princípio visa, principalmente, resguardar a informação dos pacientes/clientes/usuários. Dessa forma, o princípio da privacidade/anonimato assegura um cuidado ao paciente/cliente/usuário de que não será exposto indevidamente. Este princípio também constituiria um dos fundamentos para o sigilo dos profissionais de saúde, incluindo médicos e enfermeiros.

O princípio do sigilo encontra suas raízes no Juramento de Hipócrates e se diferencia do primeiro princípio em razão deste princípio estabelecer de forma direcionada ao profissional de saúde o dever de silêncio acerca do seu trabalho, ou seja, a proteção ética do próprio profissional, enquanto que o enfoque do princípio da privacidade é o resguardo do paciente, de sua intimidade em face de terceiros.

O princípio do sigilo também se encontra vinculado com o cuidado ao oferecer uma garantia para o exercício profissional dos enfermeiros, técnicos e auxiliares desempenharem suas tarefas de forma livre e responsável.

O princípio da alteridade visa a evitar que o indivíduo venha a impor ao outro sua maneira de encarar a verdade. Aplicado ao caso do processo de formação dos enfermeiros, este princípio leva os sujeitos do processo de formação a refletirem sobre eles como co-responsáveis por esse processo, tendo em vista a participação de todos para o bem comum (SANTA ROSA et. al., 2008).

O princípio da confiança visa a estimular a criação de uma relação entre profissionais de saúde e pacientes/clientes/usuários baseada na abertura de diálogo e criação de laços que proporcionem a construção de uma afinidade essencial. Este princípio viabiliza uma comunicação eficaz entre o profissional de saúde e o atendido (NEVES; VASCONCELOS, 2008).

O princípio da confidência, adotado pelo artigo 85 do Código de Ética de Enfermagem em Portugal (AMARAL, 2008), traduz-se o respeito para com o paciente, além de uma relação amistosa entre ambos (STEPKE; DRUMOND, 2007). Este princípio reforça a idéia de cuidado que deve nortear as relações entre os profissionais de enfermagem e os pacientes/usuários/clientes.

O princípio do duplo efeito, defendido pela Igreja Católica desde o século IV, é aquele que legitima o ato que almeja um bom fim, ainda que tenha também um efeito perverso não desejado (LEPARGNEUR, 1999). Esse princípio sustenta que existem situações em que seria justificado produzir uma consequência ruim se ela é apenas um efeito colateral da ação e não intencionalmente buscado.

O princípio da solidariedade consiste na percepção de interdependência entre todos os seres, incutindo a identidade entre os mesmos baseada em uma única origem e destino comuns. Ela se impõe, concomitantemente, como categoria ôntica e política (SANTA ROSA et. al., 2008).

A solidariedade ôntica decorre do fato de que todos os indivíduos são seres de relação, logo, reciprocamente solidários, enquanto que a solidariedade seria uma categoria política no momento em que a solidariedade ôntica pode ser encarada, de forma livre e consciente, como um projeto político e constitutivo do eixo das relações sociais (SANTA ROSA et. al., 2008).

O princípio terapêutico se fundamenta “no fato de que a corporeidade humana é um todo unitário resultante de partes distintas e unificadas orgânica e hierarquicamente entre si pela existência única e pessoal” (SGRECCIA, 2002, p. 161). Esse princípio “regula toda a licitude e obrigatoriedade da terapia médica e cirúrgica” (SGRECCIA, 2002, p. 162).

O princípio da precaução tem sido aplicado a duas situações: a disciplina dos riscos potenciais, ou seja, aquelas em que a despeito das consequências do agir tecnológico serem conhecidas, “não é possível a atribuição de probabilidade objetivas a cada uma delas; e as em que não são conhecidas todas as consequências do agir”, ou seja, uma situação de incerteza ou ignorância (SILVA, 2010, p. 283).

O princípio da precaução auxilia o profissional de enfermagem principalmente nas situações que exigem cuidados diante de riscos na ambiente de saúde, especialmente aqueles vinculados a biossegurança.

O princípio da subsidiariedade é por meio desse princípio que “a comunidade deve, de uma parte, ajudar mais onde mais grave é a necessidade” (…) e, por outro lado, “não deve suplantar ou substituir as iniciativas livres de cada um e dos grupos, mas garantir seu funcionamento” (SGRECCIA, 2002, p. 165).

O princípio da subsidiariedade se diferencia do princípio da justiça por envolver uma interação de toda comunidade, transcendo o protagonismo do profissional de saúde para toda a comunidade que deve zelar pelas instituições vinculadas ao sistema de saúde. O profissional de enfermagem deve ter em mente esse princípio, especialmente, nas situações envolvendo a educação de saúde em comunidade.

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A interdependência entre a ética, a bioética e o cuidado:

Na atividade profissional de enfermagem, o cuidado prestado a alguém implica sempre no envolvimento de crenças e valores, próprios e dos outros. Em razão disto, “mais facilmente se compreende a importância, cada vez maior, que assume a necessária tomada de consciência do lugar que a decisão ética ocupa no processo de cuidado” (SCHIRMER, 2006, p. 64).

Na atualidade, as descobertas científicas no campo da biologia e da própria medicina têm criado vários instrumentos tecnológicos, cujo uso tem gerado “desafios à prática do cuidado e dilemas éticos concernentes às suas consequências, algumas já esclarecidas e outras ainda obscuras” (VIEIRA; SANTA ROSA, 2006, p. 217).

De acordo com a perspectiva ética, a repercussão das novas tecnologias na saúde compreende dois problemas: tem gerado inquietações sobre a “aplicação dessas técnicas no processo de cuidar” e tem despertado para a necessidade de respaldar essas biotecnologias no respeito pela vida humana. (VIEIRA; SANTA ROSA, 2006, p. 217).

O primeiro problema trazido pelas referidas autoras sobre a repercussão das novas tecnologias na saúde consiste na aplicação dessas tecnologias no processo de cuidar tem evidenciado a interdependência entre a bioética e o cuidado.

Com tais progressos tecnológicos, o cuidado teria se transformado numa “ação meramente técnica, maquinizada e insensível” gerando assim impasses bioéticos que somente poderiam ser solucionados com a “fundamentação e difusão do valor do cuidado à saúde enquanto ato de responsabilidade ética diante da vida e da natureza”. (ERDMANN et al., 2006, p. 378).

A palavra cuidado possui dois significados distintos, porém interligados. O primeiro significado se refere à atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para com o outro. Já a segunda acepção da palavra envolve a toda preocupação e inquietação de uma pessoa cuidadosa em relação à outra (BOFF, 2008).

Esses dois significados estão interligados, pois ambos têm na idéia da “atenção ao outro” a essência daquilo que pode expressar o cuidado. Esta palavra será um conceito-chave para a compreensão da enfermagem, afinal, esta “[...] tem como essência e especificidade o cuidado ao ser humano na área da saúde” (NUNES, 2004, p. 37).

Em virtude dessa especificidade, os cuidados de enfermagem, definidos como as intervenções autônomas ou interdependentes realizadas pela enfermeira desempenharão uma importante função ao promover “o Cuidar como ideal moral que visa proteger, aumentar e preservar a dignidade humana” (NUNES, 2004, p. 35).

O doente não pode ser tratado como mais uma ocorrência em uma unidade de saúde. Ele tem de ser observado “no seu todo e na sua individualidade, como um sistema vivo (organismo humano) interligado e interdependente” que permanece em interação constante com o meio físico e social, sofrendo suas influências ou agindo sobre elas (COSTA, 2004, p. 71).

Durante o processo de cuidados de enfermagem, o profissional de saúde, o doente e sua família são encarados como “pessoas”, e isto numa perspectiva holista e humanista, de maneira que eles devem ser considerados como “um sistema aberto com características físicas, cognitivas, sociais, afectivas e espirituais às quais correspondem necessidades específicas”. (COSTA, 2004, p. 71).

Um dos desafios dos cuidados de enfermagem consiste, justamente, na manifestação de tais cuidados nas situações que envolvem pacientes terminais quando o enfermeiro enfrenta a tarefa de ser um agente do Cuidar durante o processo de morte, situação que será tratada a seguir.

A ética envolvendo profissionais de enfermagem se exprime em duas dimensões para Schirmer (2006): a ética deontológica e a ética profissional.

A ética deontológica pressupõe que “a excelência do enfermeiro está consagrada como princípio orientador da atividade do enfermeiro”, devendo os cuidados prestados por este profissional serem de excelência para que o paciente alcance o respeito a sua dignidade. (SCHIRMER, 2006, p. 65).

A ética profissional seria “a adesão voluntária a um conjunto de regras estabelecidas como as mais adequadas para o seu exercício” (SCHIRMER, 2006, p. 62). Esta ética se baseia em um o ethos profissional que se constrói a partir da identificação dos membros da profissão com uma moral partilhada, influenciando a tomada de decisões por cada um desses profissionais (VEIGA, 2004).

A ética profissional da(o) enfermeira(o) se expressa na observância por esta(e) do Código de Ética de Enfermagem que é definido por Schirmer (2006, p. 63) como “conjunto de normas, princípios morais e do direito relativos a profissão e ao seu exercício”.

O Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem foi revisto e aprovado pelo Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) por meio da Resolução nº. 311, de 08 de fevereiro de 2007. Este Código disciplina as relações profissionais (Art. 1º a 9); as relações com a pessoa, a família e a coletividade (Art. 10 a 35); as relações com os trabalhadores de enfermagem, saúde e outros (Art. 36 a 43); as relações com organizações da categoria (Art. 44 a 59) e as com instituições empregadoras (Art. 60 a 80), trata do sigilo profissional (Art. 81 a 85); regula o ensino, pesquisa e produção técnico-científica (Art. 86 a 102); disciplina a publicidade (Art. 103 a 111); além de dispor sobre as infrações e penalidades (Art. 112 a 129) aplicáveis ao profissional (COFEN, 2007).

Sobre a importância da ética de enfermagem para a aplicação de princípios universais, Veiga (2004, p. 393) se expressa da seguinte maneira:

Uma ética de enfermagem não pode abster-se de considerar o carácter moral dos agentes na medida em que, como chegam a sugerir alguns moralistas da corrente principialista, consideramos que é a virtude do agente que garante a aplicação dos princípios universais. Importa pois saber quais são as virtudes morais subjacentes à prática de enfermagem.

Em razão dessa circunstância, o referido autor vai propor uma “ética teleológica que consagre à virtude um papel fundamental”, na qual esta virtude será definida com base em uma “meta-ética” que clarifique o discurso moral subjacente à enfermagem. (VEIGA, 2004, p. 396).

Não é possível tratar de ética de enfermagem sem abordar as consequências do descumprimento dos deveres correlatos a tal ética. Tais deveres se expressam por meio de normas que podem ser de várias dimensões: éticas, morais, jurídicas, etc. A violação de uma norma tem como consequência a aplicação de uma punição (sanção) àquele que pratica a conduta violadora. Esta consequência é denominada de responsabilidade.

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Sobre a autora
Luzia Souza Machado Oliveira

Enfermeira sanitarista. Bacharela em Enfermagem pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Enfermagem em Saúde Pública com ênfase em Saúde da Família.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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