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Incompetência absoluta

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O mesmo Estado que consegue contar quantas moedas o cidadão tem em seu bolso, até a presente data, não conseguiu esclarecer, por exemplo, o desaparecimento de duas vigas de 40 metros e 20 toneladas na Avenida Perimetral, situada no Rio de Janeiro.

Se fosse feita uma enquete sobre as principais causas do caos político-social que o Brasil vem atravessando nos últimos anos, sem sombra de dúvida a corrupção estaria no topo da lista com grande margem de vantagem sobre as demais. É indubitável a extrema influência da imprensa sobre a opinião pública na formação e sedimentação do senso comum. O que não aparece no Fantástico é pura especulação, e o que se divulga, fantástico é ver como todos acreditam. Todavia, analisando os últimos anos em que vem sendo travada uma intensa resistência contra as falcatruas institucionalizadas no país, pode-se concluir quanto à existência de um mal ainda maior: a incompetência.

Naturalmente, o sucesso ou o malogro de determinados projetos levantam dúvidas sobre as virtudes dos bem-sucedidos e o despreparo dos que amargam a derrota. Ao final de qualquer disputa é comum haver confusão entre o que deve ser entendido como mérito do vencedor ou notória ineficiência de seu oponente. Tal dilema pode se tornar tão complexo a ponto de encontrarmos dificuldades no momento da distinção entre vencedores e vencidos. Nesse contexto está inserida a política nacional para o enfrentamento da criminalidade, que nos faz refletir com mais propriedade a respeito de outros fatos que marcaram a história do Brasil.

A própria construção do Império Brasileiro serve como exemplo da constante confusão entre as concepções de sucesso e fracasso. Depois de termos as suas riquezas naturais completamente saqueadas, a Coroa Portuguesa nos transferiu todas as dívidas contraídas com os vizinhos ingleses, além de deixar para o primogênito da nova América um herdeiro de sangue azul que ditaria o destino da massa de súditos expropriados e despossuídos. Não obstante a magnitude da tragédia, aprendemos na escola que fomos vitoriosos e que devemos comemorar a libertação supostamente anunciada às margens do Ipiranga. Na disputa entre colônia e metrópole, enquanto a primeira se endividava para a eternidade, a segunda perdia suas conquistas ultramarinas. Vitória britânica em detrimento da incompetência luso-brasileira.

Durante a República Velha, as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais impunham a “política do café com leite” para se perpetuarem no poder à revelia das demais unidades da federação. O voto do cabresto garantia o revezamento na presidência da república pelas próximas décadas. Com o advento do Crack da Bolsa de Nova York, que marcou o colapso do sistema capitalista, as elites dissidentes viram que não haveria mais condições de sustentar uma economia baseada no café, totalmente subsidiada pelos cofres públicos. E, assim, rompeu-se o escandaloso acordo político. O novo plano consistia em deixar os paulistas à margem das medidas de recuperação econômica em prol do restante do país. Como efeito, eclodiu em São Paulo a chamada Revolução Constitucionalista, movimento separatista que acusava Getúlio Vargas de ter desrespeitado à ordem constitucional vigente. Os revoltosos foram esmagados pelo governo sem muito esforço. Astúcia de Vargas, dizem alguns historiadores; despreparo e ingenuidade dos constitucionalistas, dizem outros. Realmente, difícil glorificar uma batalha em que o país inteiro, com apoio da grande imprensa, se volta contra meia dúzia de homens armados com bacamartes equiparados aos usados na Guerra de Secessão, ocorrida nos Estados Unidos na segunda metade do século XIX. Todavia, vale lembrar que, após o armistício, o governo concedeu vultosa anistia e aguardou o prenúncio da recuperação econômica mundial para convocar uma assembleia nacional constituinte, que conduziria Vargas ao comando do país com o apoio de São Paulo.  Isso porque, na ocasião, o governo voltaria a ter condições de continuar comprando o café paulista apenas para queimá-lo, evitando, assim, as sucessivas e desastrosas crises de superprodução. Nesse episódio, a incompetência só pode ser atribuída a quem não percebeu a artimanha das classes dominantes diante do complexo jogo político. Como diz o famoso provérbio chinês: “quando dois elefantes brigam, quem sai perdendo é a grama.”.

Curioso que, na mesma época, espalhou-se o banditismo pela catinga, tornando mitológicas as figuras de Lampião e Corisco. O fenômeno social despertou certa desconfiança em relação à eficiência dos soldados nordestinos, chamados de macacos pelos cangaceiros. Chegaram ao ponto de acreditar que o miserável Virgulino Ferreira, filho de posseiros assassinados por latifundiários, era capaz de transformar-se em toco de árvore para escapar das emboscadas. Crendices à parte, pertinente questionar se de fato havia uma genuína habilidade militar naquele homem que mal sabia falar, muito menos escrever, ou se os volantes da região sequer conseguiriam encontrar as suas próprias botas. Somente quando revelado o interesse do governo em afrouxar a política de segurança pública, a fim de instituir a segurança privada dos grandes proprietários de terra, bem como os ataques à Coluna Prestes, é que pudemos entender que a incompetência era tanto da “cambada” quanto dos “macacos”. Sagazes mesmos eram os donos de terra. Aliás, pouca diferença haveria se, em vez de Lampião, tratássemos aqui dos episódios que envolveram Antônio Conselheiro, em Canudos.

Seguindo a linha do tempo, não haveria como deixar de mencionar o período que ficou conhecido como Anos de Chumbo, em razão da decretação do AI-5 pela “linha dura” do militarismo. Formaram diversas frentes de resistência ao governo com as mais variadas siglas, sendo que algumas delas chegaram às vias de fato, aventurando-se à luta armada. Em contrapartida, as forças de conservação contra-atacaram com o aperfeiçoamento do modelo repressivo, tão disseminado pela América Latina e o sudeste asiático em meio a Guerra Fria. Há quem fundamente o sucesso dos governos militares na competência dos seus comandantes, que teriam realizado com maestria as técnicas de infiltração, identificação, prisão, delação e combate aos movimentos que pretendiam proliferar a guerra por todo território nacional. Deram a mesma resposta que Dean Rusk (Secretário de Estado nos governos de John F. Kennedy e Lindon B. Johnson) havia dado a Che Guevara, quando disse que o mundo precisava de muitos Vietnãs. Com a frieza que lhe era peculiar, o referido “homem forte” dos Estados Unidos retrucou: “E nós esmagaremos todos!”.

Respaldados pelo regime democrático consagrado pela atual Constituição, que pôs fim à censura, podemos agora questionar se a aniquilação dos revoltosos se deve, realmente, aos serviços de inteligência militar. Os chamados “guerrilheiros” da época eram, em sua maioria, estudantes de extrema ingenuidade política e ignorância econômica, desprovidos de carisma ideológico e experiência em qualquer tipo de combate, exceto no que se refere ao arremesso de bolas de gude contra a polícia montada. A notícia oficial sobre o suposto suicídio do jornalista Wladmir Herzog no interior do DOI-CODI, realizado por enforcamento com as suas próprias meias (versão já desmentida pelo Poder Judiciário) e a explosão precipitada de uma bomba durante a realização de um show no Riocentro (fato que até hoje não foi esclarecido), sem contar outros episódios que ainda fazem sangrar a história do Brasil, permitem-nos refletir com mais clareza a respeito do significado de competência, e se foi preciso utilizá-la para o triunfo governamental.

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Não obstante a incompetência mútua, por uma questão de justiça, não há como negar que alguns intelectuais conseguiram se destacar pela excelência de suas obras, a exemplo de Chico Buarque de Hollanda e Vinícius de Moraes.  Contudo, não demorou muito para o governo perceber que, se nem os censores tinham competência para a compreensão de suas letras, muito menos o povo brasileiro, que já se encontrava em um longo processo de degeneração cultural, responsável pela criação dos ídolos da juventude atual. Nesse ponto, devemos admitir que o projeto de dominação foi muito bem-sucedido. Agora temos que “beber dessa bebida amarga, tragar a dor e engolir a labuta”.

Se o dilema do prefixo contido na palavra incompetência tivesse de ser esmiuçado à luz da historiografia brasileira, somente escrevendo um tratado poderíamos tentar abranger tantos eventos ilustrativos. A série de casos pitorescos envolvendo a política se equipara ao que vem ocorrendo em outros setores, como os da economia, da administração pública, e principalmente da Justiça.

Inesquecíveis as observações do Ex-secretário de Segurança Pública e Ex-deputado Hélio Luz, sobre o crime organizado no país, em um documentário intitulado Retrato de Uma Guerra Particular. Segundo ele, a sorte do Brasil está no fato de o crime ser desorganizado, porque, se não o fosse, não haveria como detê-lo. Na entrevista, cita, inclusive, a prisão de um dos mais temidos traficantes da época, executada enquanto o procurado malfeitor se encontrava hospedado em um hotel cinco estrelas. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos acrescentar que a sorte de a sociedade enfrentar o crime desorganizado é a mesma que este último tem em razão da incompetência estatal ser extremamente organizada.

Em um primeiro momento, a expressão incompetência organizada pode soar muito estranho, mas quando representada por determinados acontecimentos, faz bastante sentido. Se o contribuinte, por exemplo, deixar de declarar um valor ao fisco, ainda que insignificante para os cofres públicos, o sistema informatizado da Receita Federal é capaz de cruzar informações e detectar a omissão no respectivo documento, dando início ao procedimento administrativo fiscal. Trata-se de um requinte tecnológico equiparado aos avançados equipamentos usados pela NASA. Todavia, esse mesmo Estado, que consegue contar quantas moedas o cidadão tem em seu bolso, até a presente data não conseguiu esclarecer o desaparecimento de duas vigas de 40 metros e 20 toneladas na Avenida Perimetral, situada no Rio de Janeiro, durante as obras realizadas em 2013. Na ocasião, o então Prefeito Eduardo Paes, comentou o ocorrido: “Inacreditável!”. Em um país onde a estátua de Michael Jackson, exposta no Morro Dona Marta, é decorada com um fuzil, o espanto não se justifica. Logo, pode-se concluir que o Estado se dá ao luxo de ser incompetente quando lhe convém. Pura seletividade.

Alguns vêm dizendo que a atuação de determinados órgãos estatais como a Polícia Federal, o Ministério Público e os magistrados, no sentido de levar para a cadeia os corruptos do colarinho branco que infectam o país por dentro e por fora da administração pública, marca o início de uma nova era. Defendem a ideia de que somente pessoas de extrema austeridade e competência podem alavancar as mudanças necessárias para que o país consiga emergir do gigantesco mar de lama. Mais uma vez, o ponto central em análise compreende a dúvida se o que vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos, no que diz respeito à investigação realizada no alto escalão da sociedade, seria ou não decorrência de uma composição qualificada de diversos setores do funcionalismo público.

Quando passamos a frequentar qualquer casa legislativa, incluindo o Congresso Nacional, não demora muito para tomarmos ciências dos inúmeros ilícitos civis, administrativos e penais que ali foram e vêm sendo cometidos. Desde a mais humilde faxineira até o mais bem pago chefe de gabinete, todos sabem de quase tudo que ocorre ali dentro, e os comentários não são proferidos em sussurros por detrás das pilastras, mas sim nos corredores, cantinas, banheiros, em qualquer lugar, sem o menor pudor. Casos de assessores que entregam os seus salários, no todo ou em parte, aos parlamentares; funcionários fantasmas que sequer comparecem para assinar o ponto; familiares de um parlamentar no gabinete de outro a fim de escamotear o nepotismo; recebimento de propina para aprovação de projetos de lei, entre outras aberrações que Dias Gomes se esqueceu de atribuir ao famoso personagem Odorico Paraguaçu. Porém, em um domingo qualquer, a imprensa divulga a chocante imoralidade e a classifica como “notícia bomba”, ou seja, tudo aquilo que até as plantas de ornamentação há muito tempo sabiam, menos as autoridades competentes. Competentes?  Dirão que uma operação extremamente sigilosa havia sido deflagrada para investigar as suspeitas de fraudes, quando para isso bastaria pedir um sucinto relatório ao dono da banca de jornal situada em frente ao prédio.

Não pode ser visto como competente o ato de revelar o que todos já sabiam. Pior do que isso, só mesmo sendo o único a não saber. Seria o caso de incompetência absoluta. Entretanto, quando estamos diante de tantos fatos a serem apurados, mas somente alguns deles são criteriosamente selecionados em busca de holofotes, a incompetência não é absoluta, é organizada.

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Sobre o autor
Sergio Ricardo do Amaral Gurgel

SERGIO RICARDO DO AMARAL GURGEL é sócio em COSTA, MELO, GURGEL Advogados; autor da editora Impetus; professor de Direito Penal e Direito Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GURGEL, Sergio Ricardo Amaral. Incompetência absoluta. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5210, 6 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60616. Acesso em: 21 dez. 2024.

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