As jurisprudências e doutrinas estrangeiras são invocadas pelos Ministros da Suprema Corte do Brasil, em seus votos, a qualificar os fundamentos destes, além de agregar profundidade aos acalorados debates do plenário ou das turmas. Mais que mero recurso estilístico, determinada conduta serve de suporte para transformações da jurisprudência interna da Excelsa Corte ao longo dos anos.
A relação dialógica entre Cortes Nacionais estimula, ainda mais, a postura proativa do Judiciário brasileiro, através das decisões de seu tribunal de última instância, ao adotar o modo de equivalentes tribunais de outros países interpretar suas regras e princípios constitucionais, além de seu próprio papel no sistema. Em seu sítio eletrônico, o STF disponibiliza as mais polêmicas decisões estrangeiras em espanhol e inglês.
As mais emblemáticas matérias enfrentadas pelo Supremo, d’onde se pode observar tal transformação na sua conduta, talvez sejam:
- as MIs 670, 708 e 712, onde o Supremo utiliza da terminologia “concretista” para designar sua nova postura ampliadora da sua competência, quando medidas normativas são adotadas como alternativa para suprir a omissão inconstitucional. Esta virada jurisprudencial apoiou-se, principalmente, nas experiências: alemã, onde, apesar de não prever em sua Constituição o direito de greve do servidor público, a Corte Superior do Trabalho entende que as greves regem-se pelo princípio da proporcionalidade, apresentado por Robert Alexy, devendo apresentar-se como última ratio de conflito; e na legislação italiana.
- a ADI 3510/DF e ADPF 54 sobre a Lei de Biossegurança e a questão do aborto de fetos anencéfalos respectivamente. Nesta seara se verifica a presença do instituto da eficácia transcendente dos motivos determinantes da decisão, com laços profundos com a técnica de precedentes da common law norte-americana, em especial no caso Roe x Wade.
Tal como neste julgamento, em sede de ADI, o Tribunal Constitucional brasileiro passa a adotar a teoria ‘natalista’, em contraposição às teorias ‘concepcionista’ ou da ‘personalidade condicional’, nas palavras do relator Min. Carlos Ayres Britto:
O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva.
Outro aspecto peculiar, foi que na ADPF 54, discorreu acerca de várias Cortes Constitucionais analisarem a constitucionalidade de leis pré-constitucionais à luz da sua Carta Magna em vigência, e como bem se sabe, no Brasil adotou-se a teoria da recepção. Na sequência também se faz alusão à cláusula de subsidiariedade da ação constitucional, espelhado no recurso de amparo espanhol e recurso constitucional alemão.
O HC 82424 mostra a forte influência do Direito Comparado, quando da referência de diversos instrumentos internacionais, em especial a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A questão enfrentada foi referente à prática de propaganda antissemita perpetrada pelo paciente, que teve seu remédio denegado. Em seu voto assim conclui o ministro Celso de Mello: “Aquele que ofende a dignidade de qualquer ser humano, especialmente quando movido por razões de cunho racista, ofende a dignidade de todos e de cada um”.
Por fim, salienta-se a mais recente publicação, advinda da Corte Pretória, apresentando a adoção da teoria do Estado de Coisas Inconstitucional, criada na Colômbia, em sede de ADPF número 347. Não há real mudança de postura do Supremo neste caso, mas sedimentação da atitude, deste tribunal, de reiteradamente tomar decisões de forma a extrapolar sua clássica competência dentro da teoria da separação dos poderes, imiscuindo nas funções inerentes aos demais poderes.
Para o professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos, ainda que resumidamente, três são os pressupostos que caracterizam o estado de coisas inconstitucional:
(a) A constatação de um quadro não simplesmente de proteção deficiente, e sim de violação massiva, generalizada e sistemática de direitos fundamentais, que afeta a um número amplo de pessoas;
(b) A falta de coordenação entre medidas legislativas, administrativas, orçamentárias e até judiciais, verdadeira “falha estatal estrutural”, que gera tanto a violação sistemática dos direitos, quanto a perpetuação e agravamento da situação;
(c) A superação dessas violações de direitos exige a expedição de remédios e ordens dirigidas não apenas a um órgão, e sim a uma pluralidade destes – são necessárias mudanças estruturais, novas políticas públicas ou o ajuste das existentes, alocação de recursos, etc.[1]
O STF enxerga na ADPF, com fulcro no dispositivo do art. 10 da Lei 9.882/99, essa possibilidade de trazer ao cenário tupiniquim o instituto do ECI, tornando-a num instrumento mais efetivo que a própria ADO para combater estado de inconstitucionalidade, mormente quando enseja violação maciça dos direitos humanos, como é o exemplo do sistema carcerário. Nessa linha o Ministro Gilmar Mendes afirma o seguinte:
o art. 10 da lei n. 9.882/99, ao estatuir que o STF fixará as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental vulnerado, abre uma nova perspectiva, não por criar uma nova via processual própria, mas justamente por fornecer suporte legal direto ao desenvolvimento de técnicas que permitam superar o estado de inconstitucionalidade decorrente da omissão
É, portanto, a forma como o Supremo tem encontrado de cumprir com seu papel como Guardião da Constituição (art. 103 CRFB/88), quando referida Carta, permite (ao menos não restringe expressamente), sua ação ampliada para fins de concretização de seus próprios preceitos fundamentais. Fenômeno este, que como bem explicita o Min. Carlos Ayres Britto, trata-se de “mutismo constitucional hermeneuticamente significante de transpasse de poder normativo para a legislação ordinária”.
Ou seja, na excepcionalidade de notório descaso e inércia deliberados, por parte do poder público, e que venha a violar direitos humanos, diz o Min. Marco Aurélio na ADPF 347, excepcionalmente, impende ao órgão máximo do Judiciário:
o papel de retirar os demais poderes da inércia, catalisar os debates e novas políticas públicas, coordenar as ações e monitorar os resultados. A intervenção judicial seria reclamada ante a incapacidade demonstrada pelas instituições legislativas e administrativas.
Há, contudo, certa resistência por parte da doutrina quanto à adoção de institutos estrangeiros. Dado ceticismo é, no entanto, de caráter profilático, sempre relevante para que não se perca de vista pontos importantes, como: a fiel tradução do texto, a análise do âmbito onde originalmente se aplica tal instituto, uma busca no próprio ordenamento nacional por eventual medida mais adequada/compatível com seu sistema, e, finalmente, se tal adoção não acarretará conflitos com normas vigentes.
São cuidados imprescindíveis para que não se recaia em mero “consumismo conceitual”, não bastando ser, dada legislação “importada”, boa em si mesma, como bem salientou o advogado da União Otavio Luiz Rodriguez Junior.
REFERÊNCIAS
JUNIOR, Otavio Luiz Rodriguez. Problemas na importação de conceitos jurídicos. In Conjur Consultor Jurídico. 2012. Disponível em < http://www.conjur.com.br/2012-ago-08/direito-comparado-inadequada-importacao-institutos-juridicos-pais > Acesso em 09 set 2017.
FILHO, Nicola Patel. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental como Ação Constitucional apta a Desenvolver Diálogos Institucionais. In empório do direito. 2016. Disponível em <http://emporiododireito.com.br/tag/estado-de-coisas-inconstitucional/#_ftn7> Acesso em 09 set 2017
CARDOSO, Gustavo Vitorino. O direito comparado na jurisdição constitucional. In Revista Direito GV. 2010. Disponível m<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/revdireitogv/article/view/24130> Acesso em 09 set 2017
RODRIGUES, Marcos Eduardo Freitas. O direito de greve dos servidores públicos do Brasil – uma análise com o Direito Comparado. In Acervo Digital. 2016. Disponível em <http://www.acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/30760/757.pdf?sequence=1 > Acesso em 09 set 2017
nota
[1] CAMPOS, Carlos Alexandre de A. Estado de Coisas Inconstitucional e Litígio Estrutural. In: Conjur – Consultor Jurídico. 2015, p. 3. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural>. Acesso em: 09 set 2017.