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O caso Battisti

04/11/2017 às 20:35
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Condenado à prisão perpétua na Itália e, mantido no Brasil após decisão do ex-presidente Lula, em seu último dia de governo, em 2010, o italiano Cesare Battisti corre o risco de perder o direito de permanecer no país. Em sigilo, o governo da Itália apresentou pedido para que Michel Temer reveja a decisão de Lula que garantira a Battisti residência em território brasileiro.

I – DOS FATOS

Em 1987, Cesare Battisti foi condenado pela justiça italiana por terrorismo à prisão perpétua, com restrição de luz solar pela suposta autoria, direta ou indireta, dos quatro homicídios atribuídos ao PAC – além de assaltos e outros delitos menores, igualmente atribuídos ao grupo, mas não a ele diretamente. É considerado terrorista pelo Estado italiano, embora o delito de terrorismo não fosse  tipificado na legislação italiana e se declara inocente frente a essa acusação

Em 31 de dezembro de 2010, mediante nota divulgada pelo Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou que decidira não conceder a extradição do ex-militante italiano. 

 Em 8 de junho de 2011, o Supremo Tribunal Federal finalmente decidiu, por 6 votos a 3, pela libertação de Battisti.

Noticia-se que, condenado à prisão perpétua na Itália e, mantido no Brasil após decisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu último dia de governo,, em 2010, o italiano Cesare Battisti corre o risco de perder o direito de permanecer no país. Em sigilo, o governo da Itália apresentou pedido para que o presidente Michel Temer reveja a decisão de Lula que garantira a Battisti residência em território brasileiro, evitando uma extradição para cumprir a pena em seu país de origem. É o que se lê na edição do jornal O Globo(25 de setembro de 2017)

Em setembro, o ministro Luiz Fux rejeitou o pedido feito pela defesa de Battisti para que fosse concedido um habeas corpus preventivo. Fux alegou que não havia nada de concreto na ocasião que justificasse o temor do italiano. Na decisão, o ministro do STF lembrou, entretanto, que o presidente da República tem poder para tomar decisões relacionadas à presença de estrangeiros no país. Fux citou o julgamento do próprio STF em 2009, quando, após uma grande polêmica e numa votação apertada, os ministros entenderam que Battisti deveria ser extraditado para a Itália, mas caberia ao presidente da República decidir se iria ou não executar a extradição.Informou-se que, do ponto de vista jurídico, o governo já encontrou uma fundamentação em súmula do Supremo Tribunal Federal de 1969, tradicionalmente citada por especialistas em direito administrativo. Essa súmula, que resume o entendimento da Corte sobre tema específico, diz que “a administração pode anular seus próprios atos” quando houver vícios ou revogá-los “por motivo de conveniência ou oportunidade”. Ou seja, um ato de Lula pode ser revisto por Temer. 

Em 2009, quando, após uma grande polêmica e numa votação apertada, os ministros do Supremo Tribunal Federal  entenderam que Battisti deveria ser extraditado para a Itália, mas caberia ao presidente da República decidir se iria ou não executar a extradição.

Lula passou quase um ano para decidir o que fazer. No último dia de seu segundo mandato, em 31 de dezembro de 2010, uma edição extra do Diário Oficial publicou a decisão: parecer da Advocacia Geral da União (AGU) dizia que a extradição não precisaria ser obrigatoriamente cumprida, e Lula deixou Battisti viver no Brasil. 


II – A EXTRADIÇÃO

A  teor do artigo 83 do Estatuto do Estrangeiro de 1980(Lei 6.815), nenhuma extradição será concedida sem prévio pronunciamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a sua legalidade e procedência, não cabendo recurso dessa decisão.

Trago a lição de Bento de Faria(Direito extradicional, Rio de Janeiro, ed. J. Ribeiro dos Santos, 1930, pág.. 92 e 93), que considera que a extradição é ato complexo, como manifestação da soberania, uma vez que a faculdade de negá-la ou concedê-la pertence ao Chefe do Poder Executivo embora subordinado a prévia decisão da autoridade judiciária. Todavia que seja favorável à entrega, a deliberação do Tribunal, o Estado poderá recusá-la, tais sejam as razões de ordem pública, das quais será o único juiz. Porém, registro, que não é lícito aceder à solicitação contrariamente à manifestação da justiça, com a qual terá de conformar-se.

Não caberá, no processo extraditório ,qualquer debate sobre o mérito da ação penal a cargo da Justiça do Estado requerente, não cabendo ao Supremo Tribunal Federal examinar o mérito da condenação ou ainda emitir juízo com relação aos vícios que tenham maculado o processo no Estado requerente, como ensinou Valério de Oliveira Mazzuoli(Curso de direito internacional público, terceira edição).

Há uma fase administrativa na extradição e uma fase judicial. Nesta última, é competência do Supremo Tribunal Federal decidir se autoriza, ou não, a extradição de um estrangeiro ou de um brasileiro naturalizado. Naquela primeira etapa, compete ao Poder Executivo(Ministério da Justiça e Presidência da República) realizar ou não a entrega do extraditando ao país estrangeiro. Mas, a entrega somente será feita se por autorização do Supremo Tribunal Federal. Lembro, todavia, que na Extradição 1085, conhecido como o célebre caso Battisti entendeu-se que, por decisão do Executivo, de índole política, pode haver recusa de entrega, mesmo que o Supremo Tribunal Federal haja autorizado a extradição.

Ao final, uma vez deferido o pedido – e isto já significa aos olhos do país requerente, um ato de aceitação de sua garantia de reciprocidade – o governo local toma ciência da decisão e procede(se assim entender por bem) a entrega do extraditando ao país que o requereu. Entretanto, convém registrar, sendo o Presidente da República, do que se lê do artigo 84, inciso VII da Constituição Federal, o competente para manter relações com Estados estrangeiros, será sua -  e não do Poder Judiciário – a palavra final sobre a efetiva concessão da medida.

Assim, autorizada pelo Supremo Tribunal Federal a extradição, compete ao Presidente da República decidir, em definitivo, sobre a sua conveniência, sendo perfeitamente possível que a autorização do Excelso Pretório não seja efetivada pelo Presidente da República sem que se possa falar em crime de responsabilidade. Para Carmen Tibúrcio e Luis Roberto Barroso(Algumas questões sobre a extradição no direito brasileiro, in Revista Forense, volume 354, ano 97, março/abril de 2001, pág. 84) o Presidente da República somente será obrigado a efetivar a medida – quando existir tratado de extradição entre os dois países, uma vez que se estará diante de uma obrigação internacional assumida pelo Presidente da República Federativa do Brasil, que não pode ser desrespeitada pelo Governo.


III – REVOGAÇÃO OU ANULAMENTO DO ATO ADMINISTRATIVO E A QUESTÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA

Dita a Súmula 473 do STF:

A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque dêles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.

A súmula fala em anulamento e revogação do ato administrativo.

A revogação do ato administrativo decorre da inconveniência para a Administração, porém, o ato é legal e perfeito. Somente a Administração o pode fazer, não cabendo ao Judiciário, que somente pode anular o ato, como também o pode a Administração, no entanto,  com base na ilegalidade ou ilegitimidade do ato.

A Súmula balizou as duas consequências do ato nulo u do ato inconveniente. Mas já se entendeu que essa Súmula não pode ser invocada para anular ato administrativo pela mera conveniência do administrado(RTJ75/640).

É certo que, na doutrina, Miguel Reale impugnou a possibilidade de o Executivo anular o ato administrativo, porque dizia ele, quando se configura um ato administrativo simplesmente anulável, cessa a competência anulatória do Executivo. Só ao Poder Judiciário é dado decretar a nulidade(Revogação e anulamento do ato administrativo, pág. 91) Para tanto, invocou a opinião de Orosimbo Nonato, que distinguia o ato administrativo revogável, quando é ato-norma,; mas, se o ato origina certas situações jurídicas e não se trata de nulidade ou defeito manifesto, sua nulidade há de ser discutida no Judiciário.

A doutrina não aceita esta orientação, ressalvando-se o direito subjetivo a terceiros e a responsabilidade do Estado pelos defeitos patrimoniais decorrentes de anulação(Seabra Fagundes, “Revogação e anulamento do ato administrativo”, RDA 2/487 e RF 107/21, da mesma forma “O controle dos atos administrativos, § 71; Hely Lopes Meirelles(Direito administrativo brasileiro, 20ª edição, 1995, capítulo IV): José Frederico Marques, “A revogação dos atos administrativos”, RDA 39/20; Oswaldo Aranha Bandeira de Mello(Princípios gerais de direito administrativo, pág. 558/583).

Observe-se que, se há omissão de requisito essencial para a validade do ato, então este é nulo, não decorrendo daí, direitos, porque a nulidade do ato não os gerou(RTJ 79/935).

 O que se discute, no caso, é a questão da possibilidade de mudança de entendimento no que concerne à decisão anterior tomada pelo Executivo que impediu a efetivação de um pedido de extradição. 

De toda sorte, há de cumprir-se o devido processo legal sob o ponto de vista substantivo e ainda formal. 

A segurança das relações jurídicas deve ser vista como ponto fundamental na solução da questão. 

Interessante seguir os passos dessa evolução. O ponto crucial da trajetória está na opinião amplamente divulgada na literatura jurídica de expressão alemã do início do  século de que, embora inexistente, na órbita da Administração Pública, o princípio da res judicata, a faculdade que tem o Poder Público de anular seus próprios atos tem limite não apenas nos direitos subjetivos regularmente gerados, mas também no interesse em proteger a boa fé e a confiança(Treue und Glauben) dos administrados.

Esclarece Otto Bachof que nenhum outro tema despertou maior interesse do que este, nos anos 50 na doutrina e na jurisprudência para concluir que o princípio da possibilidade de anulamento foi substituído pelo da impossibilidade de anulamento, em homenagem à boa fé e à segurança jurídica. Informa ainda que a prevalência do princípio da legalidade sobre da proteção da confiança só se dá quando a vantagem é obtida pelo destinatário por meios ilícitos por ele utilizados, com culpa sua, ou resulta de procedimento que gera sua responsabilidade. Nesses casos não se pode falar em proteção de confiança do favorecido. (Verfassungsrecht, Verwaltungsrecht, Verfahrensrecht  in der Rechtssprechung des Bundesverwaltungsgerichts, Tübingen 1966, 3. Auflage, vol. I, p. 257 e segs. ; vol. II, 1967, p. 339 e segs.).

 Embora do confronto entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica resulte que, fora dos casos de dolo, culpa, etc, o anulamento com eficácia ex tunc é sempre inaceitável e o com eficácia ex nunc é admitido quando predominante o interesse público no restabelecimento da ordem jurídica ferida, é absolutamente defeso o anulamento quando se tratem de atos administrativos que concedam prestações em dinheiro, que se exauram de uma só vez ou que apresentem caráter duradouro, como os de índole social, subvenções, pensões ou proventos de aposentadoria

Faço menção ao caso  clássico ¨affaire Dame Cachet¨:

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¨Bem mais simples apresenta-se a solução dos conflitos entre os princípios da legalidade da Administração Pública e o da segurança jurídica no Direito Francês. Desde o famoso affaire Dame Cachet, de 1923, fixou o Conselho de Estado o entendimento, logo reafirmado pelos affaires Vallois e Gros de Beler, ambos também de 1923 e pelo affaire Dame Inglis, de 1935, de que, de uma parte, a revogação dos atos administrativos não cabia quando existissem direitos subjetivos deles provenientes e, de outra, de que os atos maculados de nulidade só poderiam ter seu anulamento decretado pela Administração Pública no prazo de dois meses, que era o mesmo prazo concedido aos particulares para postular, em recurso contencioso de anulação, a invalidade dos atos administrativos.

Hauriou, comentando essas decisões, as aplaude entusiasticamente, indagando: ¨Mas será que o poder de desfazimento ou de anulação da Administração poderá exercer-se indefinidamente em qualquer época? Será que jamais as situações criadas por decisões desse gênero não se tornarão estáveis?  Quantos perigos para a segurança das relações sociais encerram essas possibilidades indefinidas de revogação e, de outra parte, que incoerência, numa construção jurídica que abre aos terceiros interessados, para os recursos contenciosos de anulação, um breve espaço de dois meses e que deixaria à Administração a possibilidade de decretar a anulação de ofício da mesma decisão sem lhe impor nenhum prazo¨. E conclui: ¨Assim, todas as nulidades jurídicas das decisões administrativas se acharão rapidamente cobertas, seja com relação aos recursos contenciosos, seja com relação às anulações administrativas; uma atmosfera de estabilidade estender-se-á sobre as situações criadas administrativamente.¨(La Jurisprudence Administrative de 1892 a 1929, Paris, 1929, vol. II, p. 105 – 106).

Necessário distinguir as duas hipóteses: a) a da convalidação e sanatória do ato administrativo nulo ou anulável; b) a de perda pela Administração do benefício de declaração unilateral de nulidade, conhecido como le bénefice du préalable.

Miguel Reale(obra citada), ao estudar a matéria, lembra que, no Direito Administrativo europeu, a doutrina e a jurisprudência mostraram-se sensíveis em relação a ambos os aspectos do problema, seja admitindo a possibilidade de haver-se como legítimo um ato nulo ou anulável, em certas e determinadas situações, bem como a constituição, em tais casos, de direitos adquiridos e, de outro, considerando-se exaurido o poder revisional ex officio da Administração, após um prazo razoável.

Assim, na doutrin,a há a ilação de Olivier Dupeyroux(La régle de la non-retroactivité des actes administratifs, 1954, pág. 261):

¨A solução do Conselho de Estado consiste, em suma, em admitir, de um lado, que nenhum direito subjetivo pode, em princípio, nascer de uma decisão irregular da Administração, mas de outro lado, que o decurso de certo tempo cria uma confiança legítima no espírito dos particulares e transforma uma situação de fato em situação jurídica, em direito subjetivo. Haveria, desse modo, uma espécie de prescrição aquisitiva de um direito subjetivo à manutenção do ato.¨

Para Miguel Reale(obra citada), o que não se pode é recusar à autoridade administrativa, como expressão que é do organismo estatal, o poder de convalidar dada situação de fato, cuja permanência lhe pareça justa, em virtude não só do tempo transcorrido, mas à vista de  circunstâncias que excluam a existência de dolo, ou quando se revelem, sem maiores indagações, valores éticos ou econômicos positivos a favor da permanência do ato irregular.

No caso presente, houve uma decisão administrativa em que não se constatou a existência de dolo ou omissão de ato essencial. Por outro lado, não é admissível possa o administrado, após anos volvidos, quando já constituída uma situação merecedora de amparo e quando a prática da experiência possa ter compensado a lacuna originária, ser prejudicado.

Uma decisão como essa, que envolve o direito fundamental à liberdade, não pode ficar vinculada ao mero alvedrio de governo, dessa e daquela corrente. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O caso Battisti. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5239, 4 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60790. Acesso em: 24 abr. 2024.

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