Deslocados ambientais e a (im)possibilidade da utilização da Lei nº 9.474/97 para sua proteção

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3. (IM)POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DA LEI N.9.474/97 AOS DESLOCADOS AMBIENTAIS

A agência da ONU para refugiados ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, que foi convocada em Genebra, em 1951, através da  denominada Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas, com o objetivo de produzir uma Convenção regulatória do status legal dos refugiados, obteve a Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados que foi adotada em 28 de julho de 1951, entrando em vigor em 22 de abril de 1954[30].

Segundo o referido Estatuto, o termo refugiado será aplicado a qualquer pessoa, que em:

[...] consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele[31].

Em âmbito interno a Lei n.9.474/97 define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951 e da outras providencias, ainda que não seja tão recente, está vigente e explica que no Brasil serão considerados refugiados todos os indivíduos que:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.

Apesar de ter ampliado um pouco o conceito adotado pelo Estatuto Internacional dos Refugiados de 1951, a Lei n.9.474/97, deixou de resguardar os deslocados ambientais, que, segundo o Projeto de Convenção Internacional sobre Deslocados Ambientais de Autoria de Michel Prieur, com outras autoridades no tema, seriam as pessoas físicas, as famílias e as populações atingidas por um desastre brutal ou gradual em seu ambiente, afetando inelutavelmente suas condições de vida e lhes forçando a deixar, com urgência ou no seu decorrer, seus lugares habituais de vida e requerendo sua relocação ou realojamento[32].

Como exemplo mais visível desses Deslocados Ambientais no Brasil, temos os Haitianos, que começaram a ingressar no pais a partir do ano de 2010, daquele ano. Daí em diante, o fluxo migratório só aumentou. Atualmente, segundo dados apurados pelo site do Jornal Espanhol El País, a população com nacionalidade haitiana no Brasil figura em torno de 50 mil, dos quais 17 mil chegaram com visto e somente 14 mil foram incorporados ao mercado de trabalho, especialmente na construção civil e na indústria de processamento de carne.

Todavia, ainda que por conta do Princípio da Isonomia, anteriormente discutido, essas pessoas tenham a garantia de tratamento igualitário em relação às proteções no mercado de trabalho, moradia, educação e outras mais, todas presentes em nossa Carta Magna e demais dispositivos infraconstitucionais, uma coisa é certa, nem sempre essas garantias são efetivas.

Por mais que se fale em ações afirmativas para redução da desigualdade, como facilitação na obtenção de visto, de carteira de trabalho, na realização de cadastro de pessoa física - CPF, ainda lhes falta as garantias inerentes àqueles que foram obrigados a deixar sua terra natal, não vieram ao Brasil simplesmente por lhes terem oferecido esta opção, estão aqui porque precisam, estão no Brasil porque no Haiti a miséria é gritante.

Pois bem, se nas palavras de Aristóteles, devemos tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, é possível dizer que a situação dos deslocados ambientais apesar de análoga a situação dos refugiados, não pode ser absorvida pela mesma legislação, sob pena de não englobar e acabar excluindo certas garantias necessárias aos deslocados ambientais.

Tendo em vista que ainda não existe legislação internacional específica sobre deslocados ambientais e muito menos nacional, o que sobra como parâmetros ao presente estudo? Pois bem, com fulcro de criar uma legislação internacional específica e abrangente foi elaborado por um grupo de especialistas da Faculdade de Direito e de Ciências Econômicas da Universidade de Limoges, na França, o já anteriormente citado Projet De Convention Relative Au Statut Internationaldes Déplacés Environnementaux[33], em tradução livre: Projeto De Convenção Relativa Ao Estatuto Internacional dos Deslocados Ambientais. Entre os autores, estão Michel Prieur, Jean-Pierre Marguénaud, Gerárd Monédiaire, Julien Betáille, Bernard Drobenko, Jean-Jacques Gouguet, Jean-Marc Lavieille, Séverine Nadaud E Damien Roets.

Ao longo do projeto, os autores tratam de forma rica e enumeram alguns detalhes que antes eram deixados de lado, como por exemplo, ainda quando conceituando os deslocados ambientais, é feita uma conceituação também das formas de deslocamento, se temporárias ou definitivas, e, por mais que do próprio entendimento literal da palavra se tenha o conceito destas categorias, os autores buscam não deixar margem a entendimento vagos e que possam dificultar a aplicação futura dos termos.

Conforme o capítulo dois do projeto, todo deslocado ambiental teria direito a garantias básicas como ajuda alimentar, água, habitação e assistência médica, entre outros direitos fundamentais que hoje não são garantidos, haja vista a escassez de uma legislação firmada a nível mundial e regional sobre o tema.

Dentre as garantias que fogem ao básico, elenca-se que os deslocados temporários[34] têm direito ao alojamento em segurança, à reinstalação, ao retorno e à permanência prolongada. Já os deslocados definitivos têm direito ao realojamento e à nacionalidade[35]. Por sua vez, as famílias e as populações têm direitos específicos à preservação de sua unidade.

Já para administrar mundialmente os deslocados ambientais, segundo o projeto da convenção deveria ser criada uma agência mundial para os deslocados ambientais – AMDA, que teria por missão principal conduzir os trabalhos de prospecção sobre a evolução do fenômeno dos deslocados ambientais, assim como avaliar políticas nacionais e internacionais, mobilizar eventos, avaliar programas e dar suporte aos deslocados nos diferentes pontos do globo.

Em suma, o projeto demonstra que somente através de um estudo detalhado e de uma abordagem global será possível obter uma solução para o problema dos deslocados ambientais. Mas por que não se pode utilizar a legislação de refugiados?

A legislação hoje vigente no Brasil, por exemplo, no art. 3º, II, da Lei n.9.474/97 diz que são excluídos da condição de refugiado os residentes em território nacional e tenham direitos e obrigações relacionadas com a condição de nacional brasileiro. Todavia, o deslocamento por fatores ambientais não acontece somente de um pais para outro: o nosso Nordeste sofre anualmente com a seca, enquanto que no Norte do pais milhares de ribeirinhos são obrigados a deixar seus lares por causa da cheias dos rios; no Sul, vendavais e fenômenos meteorológicos, na região Sudeste e Centro-Oeste também.

Sendo assim, esses deslocados como ficam? Devem aguardar o Governo? Este apesar de ter que garantir moradia, saúde, trabalho, que a bem da verdade são precários mesmo em uma situação normal, nada faz. Por outro lado o Projeto de Convenção de Deslocados Ambientais assegura ao deslocado o direito de retorno quando cessado o fator que o levou a deixar seu local habitual, ou seja, através de um programa de “devolução” essas pessoa seriam auxiliadas pelo Estado no retorno ao seus lares. Essa conduta, por exemplo, poderia cooperar para diminuição da insustentabilidade urbana.

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Utilizando os haitianos novamente como exemplo, atualmente os nacionais do Haiti requerem e recebem o Visto Humanitário criado em 2012, pela Resolução n.97 do CONARE. Essa resolução foi diversas vezes prorrogada e estará em vigor até Outubro de 2016, pelo menos até a realização da presente pesquisa.

Tendo em vista que a situação de miséria do Haiti, que deu origem ao deslocamento dos nacionais haitianos para o Brasil ainda não cessou, quando o prazo da citada resolução n.97 for encerrada, como ficarão essas pessoas? Que tipo de guarida o Brasil vai proporcionar para eles. Mais uma vez, é indiscutível que lhes serão garantidos os mesmos direitos e deveres concedidos aos brasileiros, mas somente quando lhes forem concedidos os visto de permanência é que poderão gozar na plenitude desses direitos.

Portanto, é impossível a utilização da Lei n.9.474/97 para os deslocados ambientais. Essa conclusão já vêm desde a entrada dos nacionais haitianos no Brasil, ainda em 2010, mas até a presente data nada fez o Governo Brasileiro para regular esta situação. É imperioso que essa discussão seja levada adiante, pois uma nova Lei específica se faz urgente, o Brasil é pioneiro em vários aspectos, no que tange à proteção do estrangeiro e, por este motivo, o que se espera é que seja mais uma vez o pioneiro em relação aos deslocados ambientais.


CONCLUSÃO

Princípios e regras são as bases do nosso ordenamento jurídico: enquanto o primeiro concede a linha base da nossa sociedade, o segundo traz o que a sociedade entendeu necessário colocar ao seus. Através de texto, verificou-se também que, em havendo conflito entre regra e princípio, em um primeiro momento, os princípios devem prevalecer. Por outro lado, em havendo conflitos entre os princípios, um deles deve ser excluído, porém isso não implica em sua exclusão na resolução de outros casos.

Entre esses princípios, e melhor dizendo, entre os princípios fundamentais de nosso ordenamento, existe o da igualdade, ou também denominado princípio da isonomia, que consiste em tratar igualmente os iguais e os desiguais desigualmente, na medida em que se desigualam, essa máxima teve início com Aristóteles e foi sendo repassada por diversos autores de várias formas e em vários idiomas.

Pois bem. Se o tratamento concedido aos “iguais” deve ser desigual na medida em que se desigualam, temos que considerar que, apesar de estarem em situações análogas, os deslocados ambientais possuem situação diferente dos refugiados protegidos pela Lei nº 9.474/97 e, sendo assim, a referida legislação não lhes pode ser aplicada.

Por este mesmo motivo, é fundamental que seja criada, ou ao menos discutida de forma mais intensa, a criação de uma legislação que trate dos deslocados ambientais que estão cada dia mais presentes em nosso Brasil, a exemplo dos haitianos. Não se pode mantê-los à margem, sem outras garantias e em uma situação sui generis em que lhes é concedido o visto humanitário, que, por sua vez, não traz em seu bojo nenhuma outra garantia que lhe seja específica, como garantia de retorno ao seu local de origem quando cessado o fator que lhe fez migrar.

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Sobre os autores
Yury Augusto dos Santos Queiroz

Possui Graduação em direito pela Universidade do Vale do Itajaí –UNIVALI, campus Balneário Camboriú, colaborador do grupo de pesquisa e extensão PAIDEIA. ([email protected])

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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