3. A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
O Código Civil de 2002, ao tratar das hipóteses que podem ensejar a extinção do contrato, prevê o direito de resolução contratual em casos de inadimplemento, nos termos do artigo 475.
A regra supracitada traduz um direito potestativo do contratante lesado pelo inadimplemento requerer a resolução contratual. Ocorre que, existem situações nas quais o exercício do direito subjetivo de requerer a resolução do contrato pode ser questionado, diante do adimplemento substancial do contrato por parte do devedor. Sobre o tema, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2007, p. 399) posicionam-se da seguinte forma:
O inadimplemento mínimo é uma das formas de controle da boa-fé sobre a atuação de direitos subjetivos. Atualmente, é possível questionar a faculdade do exercício do direito potestativo à resolução contratual pelo credor, em situações caracterizadas pelo cumprimento de substancial parcela pelo devedor, mas em que, todavia, não tenha suportado adimplir uma pequena parte da obrigação.
Nesse contexto, a teoria do adimplemento substancial vem ganhando cada vez mais relevância no âmbito do Direito contratual brasileiro.
Segundo José Roberto de Castro Neves (2014, p. 311), o “conceito de adimplemento substancial, de Origem no Direito anglo-saxão, foi contemplado no Código Civil italiano de 1942”.
Na legislação brasileira, a doutrina do adimplemento substancial, apesar de tratada no Anteprojeto de Código das Obrigações, do ano de 1965, não possui previsão expressa (NEVES, 2014, p. 311). Entretendo, a doutrina e a jurisprudência reconhecem a sua existência e admitem a sua aplicação, com base nos princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da proporcionalidade e da conservação dos negócios jurídicos.
Segundo essa teoria, ocorrendo o cumprimento quase integral de um contrato e sendo irrelevante a mora, estaria o credor impossibilitado de requerer a resolução contratual, podendo, contudo cobrar a parte da prestação inadimplida, bem como eventual indenização por perdas e danos.
De acordo com o Enunciado 361 da IV Jornada de Direito Civil, o adimplemento substancial, decorrente dos princípios gerais do contrato, limita a aplicação do artigo 475 do Código, fazendo prevalecer a função social do contrato e o princípio da boa-fé objetiva.
Ao tratar sobre o tema, Flávio Tartuce (2016, p. 455) frisa que a sua aplicação tem por objetivo a manutenção do contrato:
Pela teoria do adimplemento substancial (substantial performance), em hipóteses em que a obrigação tiver sido quase toda cumprida, não caberá a extinção do contrato, mas apenas outros efeitos jurídicos visando sempre à manutenção da avença [...].
Assim, a partir da análise da utilidade da obrigação em determinado caso concreto, considerando-se os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva e da conservação dos negócios jurídicos, poderá ser aplicada a teoria do adimplemento substancial para possibilitar a manutenção do contrato e evitar a onerosidade excessiva e o enriquecimento sem causa, preservando sempre a autonomia privada (TARTUCE, 2016, p. 454).
Isto é: caberá ao magistrado, sob a luz da boa-fé objetiva e da proporcionalidade, examinar casuisticamente a gravidade da infração contratual, para então decidir se a relação jurídico-econômica deverá ser desfeita (submetendo uma das partes a um sacrifício excessivo) ou mantida (cabendo ao credor pleitear a parcela da prestação inadimplida sem extinguir o contrato) (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 400).
A situação acima pode ser vislumbrada, por exemplo, em contratos de alienação fiduciária e compra e venda, quando o contratante após adimplir parcela substancial do débito, deixa de pagar parcela ínfima do contrato. Nesses casos, é comum que o credor, com base no artigo 475 do Código Civil, proponha em face do devedor ação de busca e apreensão ou de reintegração, para reaver o bem móvel ou imóvel.
Contudo, no cenário considerado acima, impor ao devedor a perda do bem corresponde a um sacrifício desproporcional, tornando assim abusivo o exercício do direito de resolução contratual por parte do credor, já que este dispõe da faculdade de ajuizar ação própria para perseguir o crédito remanescente (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 400).
A análise de decisões judiciais revela que os Tribunais brasileiros vêm aplicando a teoria do adimplemento substancial para impedir o exercício desproporcional do direito de resolução contratual por parte do credor, prestigiando a manutenção do negócio jurídico em detrimento do seu desnecessário desfazimento, nos casos em que a técnica da ponderação de valores revele que a continuidade do contrato seja viável e compatível com os interesses dos contratantes. Nesse sentido, vejamos alguns julgamentos do Superior Tribunal de Justiça.
Através do julgamento do Recurso Especial nº 272.739/MG[1], o STJ decidiu pela manutenção de um contrato de financiamento com alienação fiduciária, indeferindo o pedido de busca e apreensão do bem, considerando que o devedor deixara de pagar apenas a última prestação, que havia sido depositada em juízo por ele.
A decisão do Recurso Especial nº 469.577/SC[2] também indeferiu o pedido de busca e apreensão formulado pelo credor, em um contrato no qual o valor inadimplido equivalia a menos de 20% (vinte por cento) do valor dos bens, considerados essenciais à continuidade das atividades da devedora.
Nesse mesmo sentido, através do julgamento do Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 607.406/RS[3], o STJ entendeu que o adimplemento substancial do contrato serve para afastar a medida de busca e apreensão do bem dado em reserva de domínio, porquanto restariam ao credor outros meios processuais para a cobrança de seu crédito.
Já no julgamento do Recurso Especial nº 293.722/SP[4], o STJ entendeu que o mero atraso no pagamento de uma parcela do prêmio de um contrato de seguro-saúde, por não se equiparar ao inadimplemento total, não desobriga a seguradora a arcar com os gastos para o tratamento de saúde do segurado.
No julgamento do Recurso Especial nº 1.200.105/AM[5], o STJ indeferiu o pedido de reintegração de posse de 135 (cento e trinta e cinco) carretas adquiridas através de contrato de leasing, considerando que mais de 80% (oitenta por cento) das prestações já haviam sido adimplidas e que a retomada dos bens inviabilizaria a continuidade das atividades empresariais da devedora, restando à credora, todavia, optar pela exigência do seu crédito mediante ações de cumprimento da obrigação ou postular o pagamento de uma indenização por perdas e danos.
A análise das decisões revela que os Tribunais brasileiros, de maneira geral, vêm reconhecendo a configuração do adimplemento substancial do contrato diante da aferição do percentual já cumprido da prestação, não havendo, atualmente, fórmula exata para balizar a aplicação da teoria, cabendo ao julgador analisar o caso concreto, em atenção à finalidade econômico-social do contrato e aos interesses envolvidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como bem ressaltado por José Roberto de Castro Neves (2014, p. 311-313), a ideia de adimplemento substancial encontra fundamento no valor da equidade, pois na hipótese de cumprimento quase integral de uma obrigação, não pode ser dado o mesmo tratamento cabível para os casos de total descumprimento:
Por vezes, a prestação não é cumprida exatamente como deveria, porém ela é cumprida na sua quase totalidade. Embora o artigo 313 do Código Civil garanta ao credor o direito de exigir que a obrigação seja cumprida precisamente como ajustado, há que se adaptar esse conceito nas hipóteses nas quais o adimplemento não tenha sido integral, porém substancial. Afinal, não seria justo dar tratamento de uma falha completa, quando houve um cumprimento quase perfeito. Desenvolveu-se, assim, a teoria do adimplemento substancial.
Neste contexto, o Poder Judiciário poderá decidir pela manutenção do negócio jurídico, caso entenda que o descumprimento não afetou de maneira relevante os benefícios almejados pelas partes através do contrato, e que ainda haja utilidade no cumprimento da prestação, com base no parágrafo único do artigo 395 do Código Civil (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 399).
Em suma, trata-se de uma mudança paradigmática, através da qual o direito subjetivo ou potestativo de resolução contratual deve ser relativizado, em homenagem aos direitos da personalidade, cabendo ao Poder Judiciário, portanto, decidir sobre a eficácia de uma cláusula resolutória expressa, sopesando o que já foi objeto de cumprimento em determinado contrato com a parcela ainda não adimplida. (FARIAS; ROSENVALD, 2007, p. 400).
Nesse diapasão, a aplicação dessa teoria coaduna-se com a atual etapa de constitucionalização do Direito Civil, que condiciona a validade das relações civis à observância das garantias constitucionais.
Na brilhante lição de Paulo Luiz Netto Lôbo (1999, p.13/14), a constitucionalização do direito civil alterou o conteúdo, a natureza e a finalidade dos institutos do direito civil, dentre os quais o contrato, representando a etapa mais significativa do processo de mudança paradigmática enfrentada pelo direito civil, na transição do modelo de Estado liberal para o Estado social:
O conteúdo conceptual, a natureza, as finalidades dos institutos básicos do direito civil, nomeadamente a família, a propriedade e o contrato, não são mais os mesmos que vieram do individualismo jurídico e da ideologia liberal oitocentista, cujos traços marcantes persistem na legislação civil. As funções do Código esmaeceram-se, tornando-o obstáculo à compreensão do direito civil atual e de seu real destinatário; sai de cena o indivíduo proprietário para revelar, em todas suas vicissitudes, a pessoa humana. Despontam a afetividade, como valor essencial da família; a função social, como conteúdo e não apenas como limite, da propriedade, nas dimensões variadas; o princípio da equivalência material e a tutela do contratante mais fraco, no contrato.
Por todo o exposto, conclui-se que a o estudo da teoria da adimplemento substancial possui grande importância, haja vista que a sua aplicação é compatível com os princípios da função social do contrato, da boa-fé objetiva, da proporcionalidade e da conservação dos negócios jurídicos, bem como com a equidade, não violando os princípios da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade e nem tampouco contrariando a regra prevista no artigo 475 do Código Civil de 2002, mas representando um meio de compatibilização do direito de resolução contratual com o fenômeno de constitucionalização do Direito Civil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Contratos, Teoria Geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014, 4v.
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MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no projeto do código civil brasileiro. Revista de informação legislativa, v. 35, n. 139, p. 5-22, jul./set. 1998. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/383. Acesso em 14 jun. 2016.
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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: Volume Único. 6 ed. São Paulo: Método, 2016.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2006, 2 v.