Capa da publicação Meios consensuais na Administração Pública: efetividade jurídica
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Os requisitos para a utilização de meios consensuais de resolução de conflitos pela Administração Pública.

Contribuição para maior efetividade ao acesso à Justiça brasileira?

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Como os métodos consensuais de resolução de conflitos conciliam os princípios de legalidade e supremacia do interesse público?

INTRODUÇÃO

O Brasil possui um cenário contemporâneo de enorme judicialização de demandas, tornando o Poder Judiciário ineficiente e menos célere do que o almejado.

Em razão disso, foram propostas outras formas de resolução de conflitos pela doutrina e pelo ordenamento jurídico para que a via judicial não fosse a única passível de dirimir lides.

Destaca-se, assim, a utilização dos métodos consensuais, que podem ser utilizados extrajudicialmente que, igualmente ao sistema judicial, resolvem as desordens.

No entanto, a discussão não se encerra neste ponto.

A Administração Pública é regida por normas e princípios que, a priori, podem aparentar incompatibilidade com a utilização de meios consensuais de resolução de conflitos.

Assim, diante do mencionado panorama, a presente pesquisa possui como objeto de estudo, sem o intuito de esgotamento da matéria, os requisitos para a validade da utilização dos três instrumentos consensuais, quais sejam: a mediação, a conciliação e a negociação ou transação, todos com aplicação extrajudicial envolvendo a Administração Pública.

A metodologia adotada é a dedução lógica com base em estudos doutrinários, somado ao texto da legislação ordinária e Constitucional.

Para isso, buscou-se em um primeiro momento estudar a introdução dos mecanismos consensuais no Brasil (item 1.1), delimitando, para isso, conceitos relevantes para a sua compreensão (item 1.2) e também a análise da influência e colaboração de tais métodos para o acesso à justiça (item 1.3).

Posteriormente, no Capítulo 2, foi realizado um estudo sobre as peculiaridades da Administração Pública que seriam impeditivas ou permissivas à utilização dos meios consensuais de resolução de conflitos.

Por fim, observou-se como o ordenamento jurídico brasileiro trata dos meios consensuais envolvendo a Administração Pública (item 3.1) e os requisitos de validade para que o consenso seja realizado, dando-se enfoque ao método de negociação ou transação, pelos benefícios observados (item 3.2).


1. MECANISMOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS E O ACESSO À JUSTIÇA

1.1. A INTRODUÇÃO DOS MECANISMOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS NO BRASIL

Os meios consensuais de resolução de conflitos são conhecidos e discutidos no âmbito doutrinário brasileiro mesmo antes de legislações específicas sobre o tema. No entanto, embora reconhecida a pertinência de sua utilização, ela só ocorreu com vigor na última década.

Isto porque, até 2010, havia uma carência de legislação específica que dispusesse sobre os métodos consensuais de resolução de conflitos, momento em que as partes poderiam figurar como protagonistas da solução do litígio que permeia a relação jurídica.

A dificuldade de se praticar os ideais consensuais se dava principalmente porque a sociedade jurídica brasileira é majoritariamente processualista, conforme assegura Ricardo Goretti Santos (2012, p. 25):

Segurança jurídica, imparcialidade e força das decisões, são atributos indispensáveis que alimentam a preferência nacional pelo processo judicial como instrumento de acomodação de conflitos de interesses de naturezas diversas. Tais valores são fundamentais para que o processo revele sua “aptidão para produzir concretamente os resultados esperados”, ou seja, para que seja um instrumento seguro e efetivo.

Assim, diante de tantos atributos como segurança e imparcialidade que tão somente o processo judicial a priori poderia proporcionar, afirma-se que o método de resolução de conflitos predominante sob essa concepção é o método estatal em que há processo judicial resolvido por decisão judicial, conforme se vê em números acerca da enorme judicialização no Brasil pelo CNJ no estudo sobre “Os 100 maiores litigantes” de 2013.

No entanto, em 2010, o Poder Judiciário, diante da inércia do Poder Legislativo, implementou a Resolução nº 125 de 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça que instituiu sobre a implementação de tratamento adequado de conflitos, momento em que os referidos mecanismos passaram a possuir significativa visibilidade na seara jurídica do Brasil.

Com a publicação da Resolução nº 125 do CNJ, os métodos de resolução de conflitos foram normativamente considerados como métodos adequados de resolução de conflitos e não mais subsidiários como se costumava compreender.

No entanto, a referida resolução foi alvo de críticas, visto que, ao implementar meios consensuais de resolução de conflitos, considerou a implementação tão somente no âmbito judicial, nos termos de Maria Alice Trentini (2013):

A Resolução CNJ nº 125/2010 pode até ser muito bem intencionada em seu fim, porém já é falha em sua gênese. Ela parte do pressuposto de que o conflito já está judicializado, quando o que deveria buscar, através dos métodos alternativos, seria exatamente a desjudicialização, solucionando os conflitos antes de chegarem ao Judiciário.

Tal Resolução, embora tenha se limitado à aplicação no âmbito do Judiciário quando possuía ferramentas suficientes para expandir a aplicação dos meios consensuais, serviu como um estímulo às práticas autocompositivas que já estavam previstas na modalidade de conciliação no artigo 447 a 4491 do Código de Processo Civil de 19731, mesmo que timidamente.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, os meios consensuais passaram a ser tratados não só como uma mera modalidade de resolução de conflitos, mas também como norma fundamental do processo civil, sendo tais meios previstos de forma explícita no dever de buscar a sua aplicação logo no § 3º do artigo 3º da referida lei, sendo reafirmada a sua importância em diversos outros momentos da legislação.

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

Sobre a localização do mencionado artigo no Capítulo I do Código de Processo Civil de 2015 que cuida sobre “Normas fundamentais do processo civil”, dispõe Alexandre Freitas Câmara (2015, p. 5):

Os métodos consensuais, de que são exemplos a conciliação e a mediação, deverão ser estimulados por todos os profissionais do Direito que atuam no processo, inclusive durante o seu curso (art. 3º, § 3º). É que as soluções consensuais são, muitas vezes, mais adequadas do que a imposição jurisdicional de uma decisão, ainda que esta seja mais adequadas do que a imposição jurisdicional de uma decisão, ainda que esta seja construída democraticamente através de um procedimento em contraditório, com efetiva participação dos interessados. E é fundamental que se busquem soluções adequadas, constitucionalmente legítimas, par aos conflitos, soluções estas que muitas vezes deverão ser consensuais.

Ademais, é possível observar que, pelo texto do artigo supramencionado, os meios consensuais devem ser estimulados inclusive no curso do processo judicial, permitindo-se a interpretação de que o estímulo para a sua realização deve ocorrer também em âmbito extrajudicial, permitindo maior abrangência de sua efetivação.

1.2. CONCEITOS RELEVANTES

Para facilitar a compreensão de todo o estudo, imprescindível a abordagem de alguns dos principais conceitos utilizados ao longo da pesquisa a fim de facilitar a compreensão como um todo.

Em razão da diversificação de meios consensuais de resolução de conflitos existentes no sistema brasileiro, o presente estudo se restringirá a análise da negociação, também conhecida como transação, da conciliação e da mediação.

Tendo em vista que todos esses três institutos de resolução de conflitos a serem analisados têm como semelhança o consenso, importante frisar que, ao longo do trabalho, será utilizado o termo “meios ou métodos consensuais” para referência aos três instrumentos consensuais acima mencionados.

A fim de contextualizar sobre as diferenças e peculiaridades da conciliação, da mediação e da negociação ou transação, passamos inicialmente à conceituação de mediação, em que resta evidente que há o auxílio de um terceiro imparcial sem poderes decisórios para que as partes alcancem uma solução para o conflito, nos termos de Ricardo Goretti dos Santos (2012, p. 95):

A mediação se desenvolve mediante a intervenção de um terceiro imparcial, sem poderes decisórios, capacitado a permitir que as partes conflitantes (conhecidas sob a designação de mediados), por meio de um trabalho conjunto e pautado no respeito mútuo, no diálogo e na realização de concessões parciais ou totais, descubram, dentre as soluções cabíveis para o conflito, aquela que melhor se adéqua ao caso concreto.

Nesse mesmo sentido, dispõe o parágrafo único do art. 1º da Lei nº 13.140/2015 que trata sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, in verbis:

Art. 1o Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.

De maneira similar, a conciliação possui um terceiro imparcial que auxilia de forma mais efetiva o resultado final, ou seja, a solução da lide. Para isso, colaciona-se a sua descrição por Petrônio Calmon (2007, p. 144):

Conciliação é, pois, um mecanismo de obtenção da autocomposição que, em geral, é desenvolvido pelo próprio juiz ou por pessoa que faz parte ou é fiscalizado ou orientado pela estrutura judicial; e que tem como método a participação mais efetiva desse terceiro na proposta de solução, tendo por escopo a só solução do conflito que lhe é concretamente apresentado nas petições das partes.

Por sua vez, a negociação ou a transação é conhecida por ser mais simples, visto que é dispensada a presença de um terceiro na resolução do conflito e se caracteriza também por existir concessões mútuas, nos termos do artigo 840 do Código Civil de 2002 no Capítulo XIX sobre transação:

Art. 840. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.

Assim, por possuírem elementos característicos que impõem autonomia para as partes e maior probabilidade de cumprimento do avençado, as sociedades modernas passaram a valorizar cada vez mais a implementação da conciliação e da mediação, conforme assegura Mauro Cappelletti (1994, p. 88):

Essa ideia decerto não é nova; a conciliação, a arbitragem, a mediação foram sempre elementos importantes em matéria de solução de conflitos. Entretanto, há um novo elemento consistente em que as sociedades modernas descobriram novas razões para preferir tais alternativas.

Com o intuito de complementação sobre o tema, conforme assevera Fredie Didier (2015, p. 273) sobre uma maior aplicação dos métodos adequados de resolução de conflitos, destaca-se que há um grande incentivo ao exercício do poder pelo povo.

O estímulo à autocomposição pode ser entendido como reforço da participação popular no exercício do poder – no caso, o poder de solução de litígios. Tem, também, por isso, forte caráter democrático.

Assim, evidencia-se que os métodos consensuais de resolução de conflitos se mostram como potencializadores e estimuladores para o exercício e consolidação da democracia, princípio este norteador da sociedade brasileira, previsto expressamente na Constituição Federal de 1988.

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1.3. O ACESSO À JUSTIÇA

É sabido que o acesso à justiça se trata de um direito fundamental constitucionalmente previsto no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

O dispositivo prevê que, em todas as demandas, isto é, naquelas situações em que houver prejuízo ou ameaça a um direito, o sujeito poderá levar o litígio ao conhecimento do Poder Judiciário para que seja obtido um resultado justo de resolução de conflito.

No entanto, o referido princípio, no decorrer do tempo, ganhou diversas interpretações e modos de compreensões que tornaram seu significado muito mais amplo do que a literalidade da Constituição Federal.

Nesse sentido, destaca-se o que Diego Faleck e Fernanda Tartuce assim consignam:

Desde os primórdios da civilização, o acesso à justiça (enquanto possibilidade de composição justa da controvérsia) sempre pôde ser concretizado pela negociação direta ou pela mediação de um terceiro. Em certo momento histórico, porém, a distribuição da justiça acabou centralizada no Poder Judiciário; nos estados liberais burgueses dos séculos XVIII e XIX, o direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma demanda.

Sob a perspectiva acima mencionada, o acesso formalmente à justiça consistia no direito de obter uma proteção judicial, o que foi substituído pela concepção atual de acesso a ordem jurídica justa, conforme defende Kazuo Watanabe (1988, p, 128), que se preocupa com o direito substancial e defende o uso de meios consensuais.

A problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata de apenas possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.

Por outro lado, enquanto uns consideram que o acesso à justiça implica em acesso a ordem jurídica justa, outros ainda defendem que o acesso à justiça também precisa ser acesso ao judiciário, conforme contempla Maria Cecília de Araújo Asperti, que assevera que a centralização do judiciário para resolução de conflitos não é ponto negativo:

Esse aumento da litigiosidade não é um dado por si só negativo ou uma problemática a ser combatida. Poder-se-ia observar esse diagnóstico com bons olhos se evidenciasse um aumento do acesso pela população ao sistema de justiça e a informações acerca de seus direitos. É necessário atentar, contudo, para situações em que essa litigiosidade não reflete o acesso, mas sim a falta de opções extrajudiciais de solução de conflitos ou o excesso de entraves burocráticos embutidos nas relações consumidor-fornecedor e cidadão-Estado, fazendo com que uma dessas partes tenha de inevitavelmente recorrer à via judicial.

Assim, tem-se que o acesso ao Poder Judiciário por si só não é uma problemática a ser resolvida, uma vez que só se torna preocupante quando a via judicial é recorrida por falta de opções extrajudiciais de resolução de conflitos que poderiam ensejar o mesmo resultado que o judiciário.

Ademais, além de se pensar na problemática do acesso ao judiciário, torna-se importante se pensar também uma saída do judiciário ao menos digna, pois, por vezes, o Poder Judiciário possui entraves no curso do processo que tornam o acesso ao judiciário pouco justo.

Nesse sentido, colaciono os dizeres de Rui Barbosa (1997):

Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito das partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes “tardinheiros” são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.

Dessa forma, por todo o exposto, deve-se ter em mente que a concepção atual de acesso à justiça não se restringe tão somente a possibilidade de acesso ao judiciário, abrangendo também a perspectiva de poder alcançar uma resolução para o conflito de outras formas.


2. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E A RESOLUÇÃO DE CONFLITOS POR MÉTODOS CONSENSUAIS

2.1. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O DIREITO ADMINISTRATIVO

Nos ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 37), o direito administrativo pode ser conceituado como “o ramo do direito público que disciplina a função administrativa, bem como pessoas e órgãos que a exercem”.

Sob esta ótica, portanto, a Administração Pública é composta por seus entes e órgãos integrantes da administração pública, bem como pela atividade, ou seja, pela função administrativa exercida.

No que se refere à função pública, destaca-se o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 29):

Comece-se por dizer que função pública, no Estado Democrático de Direito, é a atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica.

Vê-se assim que, em síntese, a Administração Pública deve objetivar primordialmente a satisfação do interesse público com seus próprios instrumentos conferidos pela ordem jurídica.

No Direito Administrativo existem ainda diversas outras interpretações e definições mais específicas do que vem a ser função pública administrativa. No entanto, a breve definição de função pública supramencionada se mostra suficiente para a continuação do presente estudo.

Além disso, tendo em vista que o Estado, na prática de seus atos, deve honrar a supremacia do interesse público, imperiosa a análise das bases do direito administrativo como a mencionada supremacia do interesse público e a indisponibilidade, bem como alguns dos diversos princípios do direito administrativo que influenciam a prática administrativa, restringindo-se àqueles que se mostram relevantes para o objetivo da pesquisa.

2.2. O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE NO DIREITO ADMINISTRATIVO E ALGUNS PILARES: SUPREMACIA E INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

O direito administrativo foi reconhecido como um ramo do direito não só regido por normas legais, mas também e principalmente regido por princípios. Tais princípios são aplicados a fim de aperfeiçoar o funcionamento da Administração Pública e, consequentemente, oferecer um melhor serviço à sociedade. Nesse sentido, posiciona-se Odete Medauar (2012, p.133).

Os órgãos e entes da Administração direta e indireta, na realização das atividades que lhes competem, regem-se por normas. Além das normas específicas para cada matéria ou setor, há preceitos gerais que informam amplos campos de atuação. São os princípios do direito administrativo. Tendo em vista que as atividades da Administração Pública são disciplinadas preponderantemente pelo direito administrativo, tais princípios podem ser considerados também princípios jurídicos da Administração Pública brasileira.

Embora a existência de princípios possa implicar em uma sensação de arbitrariedade do agente público, a aplicação do princípio impõe, na verdade, em discricionariedade, que possui limites como por exemplo na necessidade de fundamentação, motivação, razoabilidade e ponderação dos atos administrativos. Sobre o assunto, destaca-se Patrícia Baptista (2003, p. 92-93):

Entretanto, a partir do reconhecimento de que o Direito é um sistema não só de regras, mas também de princípios igualmente vinculantes, a discricionariedade passou a ser considerada como um espaço de ponderação, reservada àqueles casos difíceis, de concorrência entre princípios. Na inexistência de uma norma precisa ou dentro dos limites por esta estabelecidos, julgador e administrador encontram-se, ainda assim, vinculados e limitados à aplicação dos princípios.

2.2.1. Supremacia do interesse público

Para a doutrina clássica, a supremacia do interesse público se traduz na prevalência dos interesses da sociedade como um todo quando houver conflito de interesses entre individuais e coletivos em uma determinada situação. Nesse sentido, destaca Odete Medauar (2008, p. 81):

Controvérsias, conflitos, pretensão a reconhecimento de direitos coadunavam-se à esfera jurisdicional, pois na Administração Pública a ideia de supremacia do interesse público sobre o particular e a concepção da Administração detentora absoluta do juízo sobre o interesse público impediam que se cogitasse a respeito do que existe na realidade fática: a existência de conflitos de pontos de vida, conflitos de interesses, controvérsias a respeito de direitos, neste âmbito. As correntes doutrinárias contemporâneas trabalham com a ideia de multiplicidade de interesses, de diversidade de pontos de vista, enfim, de pluralismo no panorama da atuação administrativa.

No entanto, o conceito não está isento de críticas, visto que o termo “interesse público” é de difícil definição na dinâmica da Administração Pública. Nesse sentido, afirma Patrícia Baptista (2003, p. 184):

A identificação do interesse da Administração com o interesse público e a frequente obscuridade na determinação do que seja o interesse público são alguns dos problemas que dificultam a aceitação incondicional de tal dogma no direito administrativo contemporâneo.

Assim, acerca da problemática, alguns doutrinadores entendem que o primado do interesse público constitui conceito jurídico indeterminado, enquanto outros como José dos Santos Carvalho Filho (2015, p. 34) defendem que, diante de um caso concreto, torna-se possível uma interpretação para identificar o que constituiria o interesse público a ser preservado.

A despeito de não ser um conceito exato, aspecto que leva a doutrina em geral a configurá-lo como conceito jurídico indeterminado, a verdade é que, dentro da análise específica das situações administrativas, é possível ao intérprete, à luz de todos os elementos do fato, identificar o que é e o que não é interesse público. Ou seja: é possível encontrar as balizar do que seja interesse público dentro de suas zonas de certeza negativa e de certeza positiva. Portanto, cuida-se de conceito determinável.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2014, p. 67) defende que, no que se refere à supremacia do interesse público:

Se a lei dá à Administração Pública os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual.

Tal perspectiva de que o interesse da sociedade deve prevalecer inteiramente sobre o interesse privado vai de encontro com o que defende Odete Medauar (2012, p. 142), uma vez que sustenta a necessidade de ocorrência da ponderação entre os interesses diante do caso concreto.

Vem sendo matizado pela ideia de que à Administração cabe realizar a ponderação dos interesses presentes numa determinada circunstância, para que não ocorra sacrifício a priori de nenhum interesse; o objetivo dessa função está na busca de compatibilidade ou conciliação dos interesses, com a minimização de sacrifícios.

Diante de tal ideologia, percebe-se que a perspectiva de que ocorra a sucumbência total do interesse privado é reconsiderado e repensado, tendo em vista o reconhecimento da necessidade de conciliação de interesses para a diminuição dos sacrifícios.

2.2.2. Indisponibilidade do interesse público

Por sua vez, o princípio da indisponibilidade do interesse público, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 73-74), determina que:

A indisponibilidade dos interesses públicos significa que, sendo interesses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público -, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que predispuser a intentio legis.

Tal entendimento vai parcialmente ao encontro de Fábio Belotte Gomes (2012, p. 43), que destaca a possibilidade de transigir ou renunciar direitos, caso a lei permita, não sendo imperioso um comando altamente restrito de conduta pela lei:

O poder da Administração Pública para transigir ou renunciar a direitos somente existe se previsto em lei, sendo que os bens, direitos, interesses e serviços públicos encontram-se ademais afetos à finalidade que lhes foi atribuída pela respectiva lei que discipline a sua gestão pela Administração Pública.

No entanto, uma ressalva deve ser feita, visto que, por vezes, é possível relativizar os interesses públicos previstos na lei quando eles se colidem, sendo instrumento de resolução a ponderação e a razoabilidade conforme assevera Rafael Carvalho (2013, p. 135):

Não obstante isso, o legislador, obviamente, não possui condições de prever todas as possibilidades que porventura possam ocorrer na complexidade da vida social, razão pela qual sempre haverá ponderações concretas (casos concretos), pautadas, predominantemente, pelo princípio da proporcionalidade ou da razoabilidade.

Ademais, importante destacar que o juízo de proporcionalidade deve ser feito com a devida motivação, nos termos de Patrícia Baptista (2003, p. 212-213):

Para o atendimento do dever de ponderação imposto à administração, não basta admitir a participação formal ou proceder a uma avaliação superficial dos interesses relevantes. Além disso, é preciso que tais interesses sejam efetivamente levados em conta no momento decisório, de acordo com sua natureza e conteúdo. Assume, assim, peculiar importância, para o controle da ponderação, para que haja uma adequada fundamentação da decisão administrativa. Nesse contexto, a motivação da decisão opera como uma exteriorização da ponderação, permitindo avaliar quais interesses estiveram em sua base.

2.2.3. Princípio da legalidade

Nesta toada, destaca-se o princípio da legalidade administrativa que está previsto no artigo 37 da Constituição Federal de 1988 e implica na ideia clássica de que a Administração Pública só pode e deve fazer aquilo que a lei autoriza. Nessa concepção, destaca-se Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 104):

Assim, o princípio da legalidade é o da completa submissão da Administração às leis. Esta deve tão somente obedecê-las, cumpri-las, pô-las em prática. Daí que a atividade de todos os seus agentes, desde o que lhe ocupa a cúspide, isto é, o Presidente da República, até o mais modesto dos servidores, só pode ser a de dóceis, reverentes, obsequiosos cumpridores das disposições gerais fixadas pelo Poder Legislativo, pois esta é a posição que lhes compete no Direito Brasileiro.

Nesse mesmo sentido, posiciona-se Rafael Oliveira (2013, p. 72):

Atualmente tem prevalecido, na doutrina clássica e na praxe jurídica brasileira, a ideia da vinculação positiva da Administração à lei. Vale dizer: a atuação do administrador depende de prévia habilitação legal para ser legítima. Os graus de vinculação da Administração à lei é que podem variar de intensidade.

Observa-se que a concepção tradicional da legalidade administrativa faz menção a uma vinculação positiva à lei, em que não há liberdade nem qualquer vontade próprio do administrador público, sendo-lhe cabível tão somente fazer o que a lei autoriza e ainda nos termos da autorização como um simples ato de subsunção.

Odete Medauar, por sua vez, relativiza o tema sobre a legalidade administrativa e explica que a Administração Pública não está adstrita a realizar tão somente aquilo que a lei determina, abrangendo também certa discricionariedade, desde que em conformidade com o ordenamento jurídico brasileiro.

O sentido do princípio da legalidade não se exaure com o significado de habilitação legal. Este deve ser combinado com o primeiro significado, com o sentido de ser vedado à Administração editar atos ou tomar medidas contrárias às normas do ordenamento. A Administração, no desempenho de suas atividades, tem o dever de respeitar todas as normas do ordenamento.

Ainda sobre o tema e a fim de exemplificar, a autora afirma que existem normas que estipulam tão somente a competência para a realização de determinados atos administrativos, salvo aquelas matérias reservadas à lei, razão pela qual nesses casos é possível verificar uma ampliação da liberdade do administrador para atuar em nome da Administração Pública.

Nesse sentido também se manifesta Patrícia Baptista (2003, p. 104-105):

A deslegalização, portanto, designa habitualmente uma forma de delegação de competência normativas à Administração, através da qual se admite ao regulamento ingressar em matérias que seriam originalmente de competência legislativa. Pode ter origem na Constituição – como no caso francês – ou na lei, hipótese em que o próprio legislativo abre o tratamento da matéria de lei ao poder regulamentar da administração.

A possibilidade de compreensão do que vem a ser e os reflexos da legalidade administrativa é imperiosa neste estudo, visto que reflete na discussão sobre a utilização de instrumentos consensuais independentemente de previsão legal ou contratual específica.

2.3. A CONSENSUALIDADE À LUZ DA JURIDICIDADE, EFICIÊNCIA, E BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Ademais, insta salientar o surgimento de uma nova percepção de vinculação dos atos administrativos que, como visto anteriormente, tradicionalmente era considerado como uma vinculação positiva à lei.

Um dos fatores que levaram a revisão do princípio da legalidade administrativa foi a insuficiência e a inadequação da lei formal para atender as necessidades da Administração contemporânea.

Nesse sentido, assegura Patrícia Baptista (2003, p. 101):

A via legislativa formal realmente tornou-se insuficiente e inadequada para o atendimento das necessidades normativas da Administração contemporânea. A lentidão do processo legislativo tradicional não é capaz de responder, com a presteza exigida pela dinâmica dos fatos no mundo atual, às demandas de regulação de uma Administração interventora e ordenadora, sobretudo na área econômica. Além do mais, não seria sequer razoável conceber que todas as múltiplas atribuições e decisões que integram a vida administrativa pudessem ser legalmente previstas e reguladas.

Por sua vez, Rafael Carvalho (2013, p. 74-75) sustenta existir outros fatores que levaram à crise da legalidade estrita, quais sejam: a atuação estatal pressupõe a necessidade de desburocratização, a crescente inflação legislativa, o desprestígio da democracia representativa e a heterogeneidade dos interesses.

Assim, sobre a referida superação nomeada de “juridicidade”, assevera Gustavo Binenbojm (2014, p. 36-37) sobre a atual necessidade de vinculação ao Direito como um todo – incluindo leis e princípios - e não só à lei em sentido estrito:

Tal postura científica assenta na superação do dogma da imprescindibilidade da lei para mediar a relação entre a Constituição e a Administração Pública. Com efeito, em vez de a eficácia operativa das normas constitucionais – especialmente as instituidoras de princípios e definidoras de direitos fundamentais – depender sempre de lei par vincular o administrador, tem-se hoje a Constituição como fundamento primeiro do agir administrativo. Tal como afirma Canotilho, “a reserva vertical da lei foi substituída por uma reserva vertical da Constituição”.

Com base em tal posicionamento, percebe-se que a Constituição Federal passa a ser tratada como um grupo de normas e princípios norteadores que vinculam a atividade administrativa. Logo, torna-se prescindível a criação de uma lei a fim de concretizar as direções da Administração Pública.

Os agentes públicos, sob essa ótica, passam a poder e dever buscar fundamento tanto na lei em sentido estrito, desde que a lei seja constitucional, quanto diretamente na Constituição Federal de 1988.

Assim é o entendimento de Rafael Carvalho (2013, p. 77):

Não se pode exigir que a lei predetermine de forma completa toda a atuação da Administração, sendo absolutamente indispensável a existência de uma margem decisória importante de ponderação e concretização das normas constitucionais por parte do administrador.

No entanto, uma ressalva deve ser feita. Há funções administrativas que estão vinculadas por reserva legal a uma lei ou a um texto constitucional, razão pela qual não podem ser reguladas por discricionariedade do agente público. Nesse contexto, explica Patrícia Baptista (2003, p. 111):

A função administrativa encontra-se vinculada positivamente ao Direito, de modo que qualquer atuação da Administração Pública deve encontrar fundamento no ordenamento jurídico, principalmente no sistema de regras e princípios do ordenamento constitucional. Subsiste, todavia, a regra da vinculação positiva à lei – quer dizer, a necessidade de prévia autorização legal – para aquelas matérias submetidas constitucionalmente à reserva de lei e, ainda, para as atividades administrativas de natureza gravosa, passíveis de limitar ou extinguir direitos subjetivos dos administrados.

O princípio da eficiência, por sua vez, determina que deve ser equilibrado o custo benefício no momento de praticar determinado ato administrativo. Nesse sentido, posiciona-se Fábio Belotte Gomes (2012, p. 46):

Introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela Emenda Constitucional nº 19, de 4-6-1998, o princípio da eficiência impõe à Administração Pública e a seus agentes o dever de desempenhar suas funções com rapidez, perfeição e rendimento compatíveis, de modo a satisfazer os anseios dos administrados.

Ademais, a ação estatal deve ser pautada a fim de obter os resultados previstos na Constituição Federal de 1988, sendo que isto é mais importante do que o respeito aos procedimentos formais. Assim é o posicionamento de Rafael Carvalho (2013, p. 113):

O resultado destaca-se como um novo paradigma do Direito Administrativo: a legitimidade da ação estatal não se resume ao respeito aos procedimentos formais, mas, principalmente, ao alcance dos resultados delimitados pelo texto constitucional.

Vale ressaltar que Celso Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 122) dispõe que o princípio da eficiência previsto no art. 37. da Constituição Federal de 1988 é somente uma parte de um princípio mais amplo, denominado de princípio da boa administração, nos seguintes termos:

O fato é que o princípio da eficiência não parece ser mais do que uma faceta de um princípio mais amplo já superiormente tratado, de há muito, no Direito italiano: o princípio da boa administração. Este último, significa, como resulta das lições de Guido Falzone, em desenvolver a atividade administrativa do modo mais congruente, mais oportuno e mais adequado aos fins a serem alcançados, graças à escolha dos meios e da ocasião de utilizá-los, concebíveis como os mais idôneos para tanto.

Ainda sob o enfoque da eficiência, a administração pública deixa de lado o exercício dos atos administrativos de forma impositiva e estritamente legalizada e passa a utilizar também instrumentos consensuais para satisfazer as necessidades públicas. Sobre o tema, importante trazer à baila os ensinamentos de Rafael Carvalho (2013, p. 152):

É a necessidade de conferir maior legitimidade à atuação do Poder Público, no contexto de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, que leva ao surgimento de novos mecanismos de participação popular na elaboração de normas e na tomada de decisões administrativos (ex.: consultas e audiências públicas), assim como o incremento de meios consensuais de atuação administrativa (ex.: convênios com particulares).

As razões para a valorização da consensualidade são muitas. Patrícia Baptista (2003, p. 266-267) destaca três: o primeiro é que os interesses públicos podem ser atendidos com mais eficiência em um contexto de harmonia e, simultaneamente, com a satisfação de interesses privados, o segundo é o aumento da transparência das atividades administrativas e o terceiro é que assegura uma maior estabilidade nas relações administrativas.

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Sobre os autores
Anderson Sant'Ana Pedra

Doutorando em Direito Constitucional pela PUC/SP, Mestre em Direito pela FDC/RJ, Especialista em Direito Público pela Consultime/Cândido Mendes/ES, Chefe da Consultoria Jurídica do TCEES, Professor em graduação e em pós-graduação de Dir. Constitucional e Administrativo, Consultor do DPCC ­ Direito Público Capacitação e Consultoria, Advogado em Vitória/ES

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRA, Anderson Sant'Ana ; ROCHA, Nathalia Linard Paes Landim. Os requisitos para a utilização de meios consensuais de resolução de conflitos pela Administração Pública.: Contribuição para maior efetividade ao acesso à Justiça brasileira?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7849, 27 dez. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60919. Acesso em: 22 mar. 2025.

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