3. A UTILIZAÇÃO DE MEIOS CONSENSUAIS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Os capítulos anteriores demonstraram a evolução histórica do tratamento dispensado aos meios consensuais no direito brasileiro (item 1.1), bem como o desenvolvimento da interpretação do direito administrativo até o presente momento (item 2).
No presente tópico, veremos como a conciliação, a mediação e a negociação passaram a ser positivadas e permitidas em lei própria com aplicação nacional e serão apontados requisitos para tanto.
3.1. OS MEIOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS POSITIVADOS NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
Em primeiro lugar se destaca o Código de Processo Civil de 2015, que possui artigos que, por si sós, já seriam suficientes para sustentar todo o sistema de solução consensual dos conflitos na Administração Pública, inclusive extrajudicialmente.
Assim, inicialmente dispõe o § 3º do art. 3º ao determinar que a conciliação, a mediação e também outros métodos consensuais de resolução de conflitos deverão ser estimulados pelas agentes da justiça.
Acrescenta e inova o referido dispositivo ao afirmar que a obrigação deverá ser cumprida inclusive durante o processo judicial, demonstrando, assim, a possibilidade de que o seu estímulo seja feito também extrajudicialmente, como forma preventiva.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Por sua vez, o inciso VII do § 1º do art. 525. permite que a transação seja utilizada para fins de impugnação de procedimento executivo ao demonstrar causa modificativa ou extintiva da obrigação.
Art. 525. Transcorrido o prazo previsto no art. 523. sem o pagamento voluntário, inicia-se o prazo de 15 (quinze) dias para que o executado, independentemente de penhora ou nova intimação, apresente, nos próprios autos, sua impugnação.
§1º Na impugnação, o executado poderá alegar:
[...]
VII – qualquer causa modificativa ou extintiva da obrigação, como pagamento, novação, compensação, transação ou prescrição, desde que superveniente à sentença
Por último, o inciso IV do art. 784. demonstra expressamente o reconhecimento da possibilidade de transação pela Administração Pública ao determinar que o instrumento de transação referendado pela Advocacia Pública constitui título extrajudicial.
Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:
[...]
IV - o instrumento de transação referendado pelo Ministério Público, pela Defensoria Pública, pela Advocacia Pública, pelos advogados dos transatores ou por conciliador ou mediador credenciado por tribunal;
Observa-se, assim, que o Código de Processo Civil de 2015 concede semelhança entre uma sentença transitada em julgado, que configura título executivo judicial e um instrumento de negociação referendado pela Administração Pública, que configura título executivo extrajudicial, visto que ambos são títulos executivos.
O estudo dos mencionados artigos evidencia que quaisquer métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados pelas entidades públicas extra e judicialmente, bem como aquelas transações reduzidas a termo pela Administração Pública serão consideradas títulos executivos extrajudiciais.
E não é só.
Há posicionamento no sentido de que a Constituição Federal também possui dispositivo que agregaria a ideia de consensualidade na administração pública, ao determinar no art. 37, §6º a possibilidade de transação extrajudicial para a solução da responsabilidade civil da Administração Pública.
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Nesse sentido, disserta Bruno Grego dos Santos (2015, p. 289):
A análise desse dispositivo nos revela duas importantes circunstâncias a acolher, com plenitude, a possibilidade de transação extrajudicial para a solução da responsabilidade civil da Administração Pública. Em primeiro momento, é de se destacar que o dispositivo, em nenhum momento, sustenta que seria necessária condenação judicial para que a responsabilidade civil do Estado tome lugar. Nesse sentido, ao instituir a regra de que os entes da Administração Pública “responderão [afirmação imperativa] pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros”, e não que poderão ser responsabilizados judicialmente, a Constituição Federal abre as portas para que tal responsabilidade seja resolvida administrativamente.
Ocorre que, conforme pesquisa bibliográfica realizada neste trabalho, faz-se importante pontuar a raridade de entendimento no sentido de que o mencionado dispositivo, por si só, permita a realização de acordo consensual pela via administrativa com a Administração Pública.
Dessa forma, na linha de estudo e pesquisa deste trabalho, afirma-se que neste dispositivo constitucional há um importante fundamento para a realização de negociação extrajudicial pela Administração Pública caso seja interpretado com os outros dispositivos legais que permitem a realização de consenso pelo procedimento administrativo, ou seja, extrajudicialmente.
Ademais, a Lei nº 13.140/2015 que trata especialmente da mediação e de outros métodos de resolução de conflitos na seara administrativa oferece maior suporte legal para a efetiva implementação de meios consensuais.
A referida lei implementou em seu artigo 32 a possibilidade de os entes federativos criarem câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos no âmbito dos próprios órgãos da Administração Pública, o que implica em explícita autorização legal para dirimir conflitos e estimular a consensualidade extrajudicial.
Art. 32. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão criar câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Administração Pública, onde houver, com competência para:
I – dirimir conflitos envolvendo órgãos e entidades da administração pública;
II – avaliar a admissibilidade dos poderes de resolução de conflitos, por meio de conciliação, no âmbito da administração pública;
III – promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta.
Por sua vez, o Código de Processo Civil de 2015 dispôs no mesmo sentido acerca da possibilidade de criação de câmaras para a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, previsto em seu art. 1742.
Ainda assim, no § 3º do art. 32. da Lei nº 13.140/15, determina-se que o acordo entre as partes será reduzido a termo e constituirá título executivo extrajudicial, nos mesmos termos do art. 784, IV, CPC/15 anteriormente mencionado.
§ 3º Se houver consenso entre as partes, o acordo será reduzido a termo e constituirá título executivo extrajudicial.
Quanto ao instituto de transação entre as partes, a Lei nº 13.140/15 determina que a Administração Pública Federal poderá realizar transação por adesão, nos termos do art. 35. e ss.
De toda sorte, vê-se que o ordenamento jurídico autoriza a realização de meios consensuais de resolução de conflitos, meios estes alternativos, mas não excludentes do procedimento judicial, desde que inexista norma que imponha a via judicial como a única possível.
3.2. REQUISITOS PARA A UTILIZAÇÃO DOS MEIOS CONSENSUAIS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS ENVOLVENDO A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Conforme análise das legislações de âmbito nacional (item 3.1), inexistem delimitações específicas acerca da forma de aplicação dos institutos consensuais, ou seja, requisitos para a sua utilização no âmbito da Administração Pública.
O conhecimento e a discussão quanto aos requisitos necessários para a aplicação de métodos consensuais são imprescindíveis para uma Administração Pública eficiente e razoável sem constantes impugnações pelos órgãos de controle ou mesmo pela população aos acordos celebrados, ante a inegável discricionariedade do agente público ao transacionar.
Nesse sentido, destacam Onofre Alves Batista Júnior e Sarah Campos (2014, p. 37) sobre as constantes tentativas de anulações ou penalizações aos servidores públicos que abraçam a via consensual:
Há agentes públicos que se afastam de soluções consensuais que possam melhor atender ao interesse público com receio de sofrerem represália de interpretações mais burocráticas e ortodoxas sobre a sua utilização da consensualidade.
Dessa forma, busca-se encontrar balizas importantes para a utilização dos meios consensuais resolução de conflito extrajudicialmente, com especial atenção ao método de transação.
A maior atenção neste estudo conferida à transação se dá porque se trata de um instituto mais simples de dirimir controvérsias, uma vez que prescinde da atuação de um terceiro. Nesse sentido, destaca Ricardo Goretti Santos (2012, p. 94):
[A negociação] Diferencia-se da mediação e da conciliação por não contar com a intervenção imparcial e não decisória de terceiros interventores como mediadores e conciliadores.
Ademais, a transação do Código Civil de 2002 pode ser realizada de forma preventiva e ainda implica em concessões mútuas, o que se assemelha mais ao plano democrático em que se situa o Brasil. Assim dispõe o art. 840. do mencionado Código:
Art. 840. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas
Além disso, a transação proporciona maior celeridade, menores custos e maior adesão das partes à solução, razão pela qual é um método a ser utilizado preferencialmente em desfavor de outros, conforme posicionamento de Bruno Grego dos Santos (2015, p. 335):
A comparação assim estruturada nos leva à transação como método de solução consensual de conflitos em que as partes, por sua própria iniciativa, adotam concessões mútuas com o fim de prevenir ou terminar o litígio. O confronto entre a transação e as demais modalidades abordadas mostra que ela está no estágio mais avançado na escala de preferencialidade proposta uma vez que, na transação, as partes obtêm a solução para o seu potencial ou efetivo litígio sem depender da atuação de terceiros, sejam eles árbitros, conciliadores ou mediadores. Sustenta-se, assim, que a maior autonomia das partes traria à transação extrajudicial vantagens operacionais de maior celeridade, menores custo e, com o seu desenvolvimento, uma maior adesão das partes à solução dialogicamente construída.
Inicialmente, cumpre destacar que no âmbito do direito privado, os requisitos para a realização da transação são explicitados por Silvio de Salvo Venosa (2004, p. 316) e se resumem em: (i) acordo de vontades; (ii) concessões mútuas; (iii) caráter seguro e definitivo; (iv) extinção de obrigações.
Portanto, temos que para seus requisitos há necessidade de um acordo de vontades; para que as partes façam concessões mútuas, ou seja, que cedam parte de suas pretensões em troca de receber o restante em caráter seguro e definitivo e que haja com isso extinção de obrigações litigiosas ou duvidosas.
Vê-se, assim, a imprescindibilidade que as partes queiram realizar acordo de forma definitiva para extinguir obrigações existentes ou possíveis mediante concessões mútuas, ou seja, entre ambas as partes.
Além disso, importante mencionar que, nos termos do artigo 842 do Código Civil de 2002, a transação deve ser realizada mediante instrumento escrito e formalizado, não sendo possível, assim, a validade de transação não escrita.
Art. 842. A transação far-se-á por escritura pública, nas obrigações em que a lei o exige, ou por instrumento particular, nas em que ela o admite; se recair sobre direitos contestados em juízo, será feita por escritura pública, ou por termo nos autos, assinado pelos transigentes e homologado pelo juiz.
Nesse mesmo sentido, aplica-se o § 3º do art. 32. da Lei 13.140/2015 ao determinar que o consenso entre as partes deverá ser reduzido a termo e constituirá título executivo extrajudicial, in verbis.
§ 3º Se houver consenso entre as partes, o acordo será reduzido a termo e constituirá título executivo extrajudicial.
No entanto, por estamos diante de consensualidade envolvendo a Administração Pública, os requisitos definidos para o âmbito privado não se mostram suficientes.
Isso porque a realização de um acordo, ou seja, um contrato entre administrador e administrados acarreta em um processo administrativo, sendo que os princípios que regem o procedimento administrativo devem ser igualmente respeitados quando houver participação de particulares.
Quanto à mencionada necessidade de observância aos princípios do processo administrativo, dispõe o inciso LV do art. 5º da Constituição Federal de 1988 a necessidade de respeito ao contraditório e a ampla defesa, nos seguintes termos:
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
Sobre os princípios do contraditório e da ampla defesa, Odete Medauar (2012, p. 182-185) destaca que, para a efetivação dos mencionados princípios, “os sujeitos da lide, dentre outros direitos, devem obter conhecimento adequado dos fatos que estão na base da formação do processo e ter a possibilidade de se manifestarem, inclusive com produção de provas”.
Assim, no âmbito do consenso na Administração Pública, para Jorge Ulisses Jacoby (2006), os elementos necessários para que ocorra a transação com a entidade pública são: (i) concreta quantificação da vantajosidade da avença para a Administração; (ii) manifestação expressa de órgão de controle interno; (iii) sejam adotadas as cautelas instrutórias que se mostrem necessárias; (iv) seja exarado parecer do órgão jurídico que indique fundamentadamente a impossibilidade de êxito ou possibilidade muito remota em eventual demanda judicial.
No tocante à concreta quantificação da vantajosidade da avença para a Administração Pública, por vezes, pode ser inviável devido à impossibilidade técnica de liquidação dos exatos valores a serem objeto do acordo.
Dessa forma, defendo a possibilidade de uma quantificação da vantajosidade superficial e aparente para que não torne o procedimento administrativo para a realização do acordo lento e caro.
Em relação ao requisito da participação preventiva de órgão de controle interno acima mencionado, aduzem Onofre Alves Batista Júnior e Sarah Campos (2014, p. 42) ser necessária também a participação de órgão de controle externo.
Para se garantir a “flexibilização responsável” torna-se necessário priorizar a incidência dos órgãos de controle, interno e externo, preventivamente. O controle preventivo procedimental pode minorar o “medo administrativo”, gerando uma redução dos riscos imputados ao agente administrativo por meio do modelo burocrático repressivo, de modo a propiciar a adoção de soluções extraordinárias de cunho mais efetivo e eficiente.
No tocante à discutida participação do órgão de controle externo, importante destacar que tal obrigatoriedade criaria uma grande demanda consultiva aos mencionados órgãos controladores externos, razão pela qual, em busca da eficiência, torna-se mais razoável a solicitação de manifestação apenas para os órgãos de controle interno.
Ademais, embora não tenha sido encontrado discussão sobre o tema, sobre o requisito de que seja exarado parecer do órgão jurídico que indique fundamentadamente a impossibilidade de êxito ou possibilidade muito remota em eventual demanda judicial, entendo que tal parecer possa ser dispensado mediante motivação pelo órgão jurídico interno do ente público nos casos em que o litígio seja muito específico e, assim, não seja possível analisar a possibilidade ou não de êxito em âmbito judicial da demanda.
Por sua vez, Onofre Alves Batista Júnior (2007, p. 328) apresenta outro apontamento quanto aos requisitos para a realização da transação realizado por pessoa jurídica de direito público que, em síntese, seriam: (i) relação jurídico-administrativa controvertida; (ii) vontade de transigir; (iii) capacidade do interessado e competência administrativa para transigir; (iv) objeto litigioso transacionável (direito disponível ou lei que autorize a transação); (v) concessões recíprocas.
No tocante à necessidade de relação jurídico-administrativa controvertida, nos termos do art. 840. do Código Civil de 2002 já mencionado, é possível a realização de transação para prevenir ou terminar litígio, razão pela qual se torna possível a interpretação de que a transação é possível de ser celebrada ainda não haja controvérsia a ser dirimida, ou seja, litígio, sendo o acordo celebrado para regulamentar e, assim, evitar possíveis problemas futuros.
A capacidade do interessado também possui previsão legal no art. 104, inciso I do Código Civil de 2002, visto que, para o negócio jurídico ser válido, torna-se imprescindível que os agentes sejam capazes. No tocante à pessoa jurídica de direito público, tal capacidade é compreendida como competência administrativa.
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I - agente capaz;
Em relação à exigência de que exista direito disponível ou lei que autorize a transação, discorda Bruno Grego dos Santos (2015, p. 312) por entender ser prescindível a autorização legal específica, sendo possível, por outro lado, a criação de parâmetros normativos de validade:
O presente trabalho se posiciona contundentemente pela desnecessidade de autorização legislativa específica para que a Administração Pública lance mão da transação extrajudicial na solução dos conflitos em que se envolva. Tal postura, no entanto, não impede que sejam adotados parâmetros normativos de validade para as transações entabuladas pelos entes estatais, seja em decorrência do regime jurídico civil próprio da transação, seja por força das sujeições de Direito do Estado a que se encontra adstrita a Administração.
No mesmo sentido, posiciona-se Odete Medauar (2008, p. 92) ao defender a existência de uma “nova legalidade” em desfavor da clássica legalidade restrita (item 2.2), principalmente nas relações entre cidadãos e Administração:
O processo administrativo estende a legalidade e dá ensejo ao surgimento de uma nova legalidade, em especial nas relações entre cidadão e Administração, o que não significa opção neopositivistas ou ideia de onipotência da lei, mas a adequada compreensão da atividade administrativa, com base na realização dos princípios constitucionais, sem renúncia a um grau de certeza e de garantia, ou seja, um padrão de coerência sistemática, segundo as linhas inerentes ao Estado de Direito.
Dessa forma, por todo o exposto, pode-se considerar que a doutrina sabiamente delimitou algumas sugestões de requisitos para a validade do acordo realizado entre administrado e administrador, tornando-o a utilização dos meios consensuais de resolução de conflitos mais objetiva e eficaz.