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Uma reflexão sobre a teoria geral do processo penal à luz da doutrina nacional e estrangeira

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05/01/2005 às 00:00
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2. Processo e procedimento.

            Até o século XIX, eram indistintos os conceitos entre processo e procedimento.Em 1868, foi com Oskar Von Bülow, em obra chamada "Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias" que os conceitos de processo e de procedimento puderam ser diferenciados, apesar de estarem inseridos numa mesma realidade.

            Von Bülow asseverou que o processo não se reduz a um mero procedimento, a uma mera sucessão de atos. Nós, estudantes e operadores do Direito sabemos que é inevitável a necessidade de serem praticados diversos atos processuais até o instante em que o órgão jurisdicional, com tranqüilidade e segurança, possa dar sua decisão de forma coerente e concreta.

            O processo, como visto na primeira parte do nosso trabalho, é esta série, esta progressividade, esta seqüência de atos agrupados de forma orgânica e teleológica, utilizada pelo órgão jurisdicional para o julgamento da pretensão do autor ou de sua admissibilidade.O conceito de processo é finalístico ou teleológico, uma vez que reconhecemos nele um complexo de atos processuais sob o ponto de vista de sua finalidade.

            O procedimento, por sua vez, tem noção relacionada a um conteúdo formal, a um aspecto formal do processo, onde a legislação processual disciplina quais, como e em que ordem os atos processuais são praticados.As formas procedimentais devem ser certas e determinadas, mas sempre visando à simplicidade dos atos com o intuito de atingir uma maior celeridade processual (o projeto de reforma do CPP em trâmite no Congresso Nacional desde 83, visa simplificar os procedimentos).Enfim, deve atender a um meio termo: os atos procedimentais não devem se ater a uma rigorosa disciplina na forma, quando se caracteriza por um sistema procedimental rígido, nem abolir por completo as exigências formais, quando se caracterizam os sistemas procedimentais flexíveis.

            Esta baliza, esta justa medida é manifestada através do princípio da instrumentalidade das formas.Cada ato tem o seu momento oportuno e os posteriores dependem dos anteriores para a sua validade, já que, o objetivo da pratica destes atos é o posterior julgamento.

            É neste caminho, nesta direção que os atos processuais seguem, e é aí que vamos perceber a atuação concreta do procedimento.Cada ato processual, isto é, cada anel da cadeia que se faz presente através do procedimento, realiza-se no exercício de um poder, uma faculdade ou no incumbir de um ônus, de um dever, o que significa que é a relação jurídica que dá razão de ser ao procedimento.

            Exemplos de procedimentos? A saber: a forma destes atos, o lugar onde devem ser realizados, os prazos que devem ser obedecidos,...

            Em linhas gerais, o processo é a atividade desenvolvida pelo Estado com o escopo de satisfazer a pretensão de uma das partes, seja o autor, seja o réu. A relação do processo se perfaz entre as figuras que o compõem: o autor, o réu e o juiz enquanto que a relação de atos do processo é característica do procedimento.

            O procedimento é a forma, o modo, o meio pelo qual o Estado alcançará este fim.O procedimento é ainda, a maneira como a atividade desenvolvida pelo Estado em aplicar a lei se realizará e se desenvolverá.Para que o Poder Judiciário possa, por exemplo, "produzir" uma sentença, "produzir" uma execução, "produzir" uma medida cautelar, é necessário que o próprio Judiciário desenvolva a pratica de uma serie de atos que sejam necessários à produção destes objetos. É a esta serie de atos a que chamamos processo.

            Para Paulo Rangel, o procedimento é o conteúdo formal do processo e a lide é o seu conteúdo substancial.Para entendermos melhor a distinção entre processo e procedimento, é de bom tom mostrarmos um erro corriqueiro que cometemos no nosso dia a dia, ao afirmarmos: "É um processo sumário" ou "aquele processo é especial".O correto é falarmos, por exemplo, em procedimentos comuns dos crimes de reclusão de competência do juiz singular, procedimentos comuns dos crimes de competência do júri, procedimentos comuns sumários das contravenções e dos crimes de detenção, procedimentos especiais do Código, procedimentos especiais de leis especiais ou extravagantes, procedimento dos crimes falimentares, procedimento dos crimes de responsabilidade de funcionários públicos, procedimento dos crimes de competência originária dos tribunais,...São todos procedimentos.

            No campo penal, os procedimentos de cognição classificam-se em comuns e especiais.Os procedimentos comuns subdividem-se em procedimentos ordinários e procedimentos sumários.Os procedimentos especiais são os de competência do júri e outros previstos em leis extravagantes.Procedimento, nas palavras do processualista Afrânio Silva Jardim, "é a coordenação sucessiva de atos que exteriorizam o processo".

            Segundo entendimento do professor de Direito Processual da Universidade de Barcelona, o processualista Miguel Fenech, o processo não pode ser mais que um fato com desenvolvimento temporal, um fato que tem mais de um momento, um fato que não se esgota em mais de um momento, um fato que não se esgota no mesmo instante de sua produção.Fato que se desenvolve no tempo equivale à serie encadeada de fatos parciais, menores, que constituem ou integram o fato total.O autor continua o seu raciocínio dizendo que esta dimensão temporal, este se desenvolver no tempo é a nota essencial do processo, de todo o processo e de qualquer processo.Não pode haver processo se não há um desenvolvimento no tempo.Diz o autor: "Não há nenhum fato que se desenvolva no tempo que não possa corretamente se aplicar a palavra processo" (FENECH, Miguel.Derecho Procesal Penal, pg. 54).

            Fazendo o paralelo diferenciador entre processo e procedimento, Miguel Fenech entende que o procedimento é a norma reguladora do processo.Segundo o professor, existem procedimentos cujo processo não foi levado adiante ou não se realizou nunca (neste caso, o processo se produziria se seguisse às normas estabelecidas no procedimento) (FENECH, Miguel. Derecho Procesal Penal, pg. 61).

            Vimos que existe no processo uma corrente de atos processuais.Dal Pozzo nos ensina que esta corrente de atos processuais constituirá um método (o método, segundo Antonio Araldo Ferraz dal Pozzo, pode ser enfocado sob dois ângulos diversos: sob o ponto de vista de cada um dos atos que o integram e como uma realidade única).Através do método visualizamos o que seja o processo quando nos perguntamos: Para que serve isto? Ou seja, é a disciplina legal da estrutura exterior de cada ato. É a visualização do processo sob o ponto de vista teleológico, como também acentua Afrânio Silva Jardim.Mas quando nos atemos aos atos processuais que o constituem, nos focamos ao procedimento.O procedimento vincula-se à dinâmica da realização dos atos processuais bem como à ordem que os atos processuais devem se suceder (rito procedimental).

            Uma outra diferença entre processo e procedimento diz respeito à validade de determinados fatos e quais as conseqüências que isto pode ocasionar.Há fatos exteriores que podem atingir o processo como um todo, gerando nulidades de cunho absoluto e nós sabemos que existem outros fatos que atingem apenas alguns atos dentro do processo.

            Estas irregularidades ocasionadas dentro do processo podem ser convalidadas em muitos dos casos, como o que prevê os artigos 566 e 567 do CPP, prezando pela não anulação de atos imperfeitos quando não prejudicarem a acusação ou a defesa e quando não influírem na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.Neste ultimo caso, estas irregularidades particularizadas atingem diretamente ao instituto do procedimento.

            Na visão de Vicente Greco Filho, não há processo sem procedimento e não há procedimento que não esteja associado a um processo.Para o autor, o processo constitui o que boa parte da doutrina nomeia parte essencial.Já o procedimento, este se revela através da exteriorização do processo, ou em outras palavras, é o meio extrínseco pelo qual se instaura, desenvolve-se e termina o processo.A essência e a exterioridade não podem ser separadas.

            Vicente Greco afirma ainda que, para cada tipo de processo há uma variedade de procedimentos, desde que estejam adequados a atender as suas respectivas finalidades, tanto no esquema legal quanto prático.Destarte, para que um procedimento seja satisfatório do ponto de vista prático, deve-se dedicar uma maior atenção à simplificação dos atos no que tange ao aspecto quantitativo, diminuindo a quantidade de formas sem que prejudique a sua estrutura legal.

            O procedimento é o conjunto de normas que estabelecem as condutas a serem observadas no desenvolvimento da atividade processual pelos sujeitos do processo, bem como auxiliares da justiça e os terceiros que eventualmente sejam chamados a participar da atividade processual. É através do procedimento que será definido o que os sujeitos do processo deverão fazer, de que forma agirão dentro do processo e como alcançarão o resultado final.Albuquerque Rocha, seguindo a mesma linha de Afrânio Silva Jardim, conceitua o processo como uma cadeia de atos visando produzir um efeito jurídico final.

            O processo pode ser entendido como a soma de atos que lhe dão corpo e as relações entre estes atos.Para Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Candido Rangel Dinamarco, o processo é indispensável à função jurisdicional exercida com vistas a eliminar conflitos e fazer justiça mediante a atuação da vontade concreta na lei (CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Candido Rangel. Teoria Geral do Processo, p.277).O processo, para os ilustres autores, é o procedimento realizado mediante o desenvolvimento da relação entre seus sujeitos.

            Os autores ainda definem o processo como o instrumento através do qual a jurisdição opera. É instrumento para legitimar o exercício do poder, estando presente em todas as atividades estatais, seja ele um processo administrativo ou um processo legislativo e até ainda em processos que não sejam do Estado.

            Luis Maria Cazorla Prietro, administrativista espanhol, fazendo um estudo das diferenças entre processo e procedimento no âmbito do Direito Administrativo, posiciona-se contrariamente ao tratamento de processo, que foi dado ao procedimento administrativo.Para o autor, não há processo administrativo, mas procedimento administrativo.Para o autor, não podemos falar em processo, uma vez que não há um poder jurisdicional na Administração Pública.Nas palavras do autor: "El procedimiento administrativo, en lo que atañe a su naturaleza, no es un verdadero proceso, puesto que la Administración carece de poder jurisdiccional propiamente dicho aunque disfrute de potestad de tal tipo, sino un procedimiento en sentido técnico" (PIETRO, Luis Maria Cazorla.Temas de Derecho Administrativo, p.364).

            Bülow, na visão do professor Fernando Capez, teve mérito na realização da obra "Teoria dos pressupostos processuais e das exceções dilatórias" porque sistematizou a relação jurídica processual fazendo uma distinção da relação jurídica material.A relação jurídica processual passa a ter conceituação própria e exposta da seguinte forma: nexo que une e disciplina a conduta dos sujeitos processuais em suas ligações recíprocas durante o desenrolar do procedimento.Capez explica que o procedimento será adequado à respectiva infração penal cometida pela pessoa (por exemplo, os crimes apenados com detenção seguem o rito sumário).

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            O processualista Francesco Carnelutti comenta que o processo pode se desenvolver em um ou mais procedimentos.Se, por exemplo, a parte vencida não se conforma com a decisão do juiz de primeiro grau e recorre em apelação, aí está demonstrado um processo compreendido por dois procedimentos, o de primeiro e o de segundo grau.O mestre ainda distingue os conceitos de processo e procedimento, comparando-os a um sistema decimal.Enquanto o procedimento corresponderia a uma dezena, o processo poderia corresponder ou a um número concreto que não chegasse a uma dezena ou a um número correspondente a mais de uma dezena.

            Para o autor italiano, o procedimento é um tipo de combinação de atos cujos efeitos jurídicos estão vinculados entre si pela causa.Cada um desses atos supõe a existência de um ato ocorrido anteriormente e o último ato supõe a existência de todos os atos anteriores.Assim, por exemplo, se percebe que a sentença, última fase do procedimento, supõe a existência da fase de instrução (CARNELUTTI, Francesco. Instituciones del Nuevo Proceso Civil Italiano, pg.243;244)


3. Sistemas Processuais.

            Paulo Rangel define o sistema processual penal como o conjunto de princípios e regras constitucionais que estabelecem as diretrizes a serem seguidas para a aplicação do Direito Penal de acordo com o momento político de cada Estado.São três os sistemas processuais utilizados na evolução histórica do Direito: o inquisitivo, o acusatório e o misto.

            O sistema inquisitivo tem suas raízes no Direito Romano, firmou-se no mundo medieval através dos Tribunais da Santa Inquisição, os quais tinham como objetivo o julgamento e punição das chamadas "heresias".O acusado, em meio de coações e torturas, era interrogado pelo tribunal religioso.

            O sistema perpetuou-se nas monarquias absolutistas e entrou em declínio com o marco divisório da História: a Revolução Francesa.

            Contemporaneamente, o sistema inquisitivo é traço característico dos regimes totalitários.Neste sistema se permite ao juiz iniciar o processo ex officio, ou seja, o processo de desenvolve em fases por impulso oficial.Possui as características de ser um sistema que vela pelo sigilo processual, é escrito e secreto (o máximo de segredo se alcançou, provavelmente, na atuação da famosa Heilige Vene alemã, especialmente no século XIV. Os Tribunais da Heilige "Santa" Vene eram compostos do conde local, atuando como presidente, e dos escabinos pertencentes à nobreza, denominados wissendes).Não dispõe à pessoa que está sendo acusada a garantia do contraditório e reúnem na mesma figura as funções de acusar, defender e julgar (o juiz é quem inicia ex officio o processo, é o mesmo que defende, é o mesmo que acusa e é o mesmo que julga o processo, prolatando a decisão).

            Em geral, não há garantias ao acusado, tanto é que como vimos, as praticas de tortura chegam a serem comuns neste sistema.O sistema processual inquisitivo se mostra inconveniente, pois fere princípios como o da imparcialidade do juiz, o do devido processo legal, o da igualdade e o principio da ampla defesa e do contraditório.

            O sistema de provas adotado é o sistema da certeza moral do juiz (também chamado de sistema da intima convicção do juiz).Neste, o juiz é quem vai determinar o valor da prova sem nenhum limite na lei.O legislador impõe ao magistrado toda a responsabilidade pela avaliação das provas encarregando a ele total liberdade para decidir de acordo, única e exclusivamente, com a sua consciência.O magistrado não está obrigado a fundamentar sua decisão.

            O segundo sistema em estudo é o acusatório. É o vigente no Brasil desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.Tem as características de ser um sistema que valoriza a imparcialidade do órgão julgador, garante a publicidade dos atos permitindo a qualquer do povo a sua fiscalização.Caracteriza-se também no agir de acordo com o principio da ampla defesa e do contraditório como forma de segurança jurídica ao cidadão e, ainda nesta linha de raciocínio, há distribuição das funções de acusar, defender e julgar designados a três órgãos diferentes, nos quais são: a parte que irá propor a acusação, a parte que irá defender-se desta acusação e o magistrado, como órgão julgador.

            No sistema acusatório, a fase investigatória fica a cargo da autoridade policial e do Ministério Publico.A autoridade judicial não atua como sujeito ativo na produção da prova e não instaura processo por iniciativa própria, pois, acabaria ligado psicologicamente à pretensão, agindo em muitos dos casos em desacordo ao principio da imparcialidade.De todo modo, o sistema acusatório certifica o acusado de garantias contra qualquer arbítrio advindo do Estado.

            É patente a consonância do sistema acusatório com os princípios da tutela jurisdicional, o principio do devido processo legal, o principio do acesso à justiça, o principio do juiz natural (nulla poena sine judice), o principio do tratamento paritário entre as partes, o principio da publicidade dos atos processuais, o princípio da motivação dos atos decisórios e o principio da presunção de inocência.O principio da imparcialidade do juiz na solução das causas que lhe são submetidas, possui uma relação direta com o sistema acusatório e se funda em obstruir influências sobre a decisão que será prolatada.Em termos práticos, retira-se o juiz da função da persecução penal (jus persequendi) devendo este permanecer inerte, aguardando ser provocado (ne procedat judex ex officio).

            Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, há um estabelecimento expresso de que o Estado deve garantir o principio da imparcialidade do juiz:

            "Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial...". (Previsão também no artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica).

            Antes da Constituição de 1988, em que prevalecia a constituição ditatorial de 1967, consubstanciada num sistema inquisitivo, o Ministério Público tinha o encargo artificial de representar os interesses do Poder Executivo em juízo, como bem regulamentava os artigos 94, §2º e 126 da CF/67.Esta era a redação prevista no §2º do art.94, in verbis: "Nas comarcas do interior, a União poderá ser representada pelo Ministério Público estadual".No art.126 também havia esta previsão: "A lei poderá... atribuir ao Ministério Público local a representação judicial da União".Após 1988, o encargo de representar as entidades de direito publico interno passou a ser dos seus respectivos procuradores.

            É inegável que a Constituição de 1988 tem a virtude de espelhar o fortalecimento das garantias e direitos fundamentais, como a cidadania, além de fortalecer direitos difusos e coletivos, removendo toda uma conjuntura autoritária, inquisitiva e intolerante que foi imposta ao país durante a ditadura militar.Pari passu, o Ministério Público passa a ter a função de dominus litis com a prerrogativa de ser o titular da ação penal, apenas outorgando legitimação à parte nos casos de ação penal privada (Thomas Hobbes, mesmo vivendo sob o sistema inquisitivo, formula um exemplo que bem expressa a necessidade de se deslocar para um órgão dotado de imparcialidade e domínio da função da persecução penal: "Suponhamos um homem dotado de excelente uso natural e desteridade em mexer os braços, e um outro que acrescentou a esta destreza uma ciência adquirida acerca do lugar onde pôde ferir ou ser ferido pelo seu adversário, em todas posturas e guardas possíveis. A habilidade do primeiro estaria para a habilidade do segundo: ambas úteis, mas a segunda infalível". HOBBES. Thomas. Leviatã).

            A forma de apreciação das provas no sistema acusatório brasileiro é a da livre (mas não intima) convicção do juiz (ou sistema da verdade real, do livre convencimento ou da persuasão racional).Dá ao juiz liberdade de agir de acordo com as provas que se encontra nos autos, não podendo fundamentar qualquer decisão em elementos estranhos (quod non est in actis non est in mundo).A partir daí, o juiz avalia as provas de forma comparativa.O sistema da livre convicção não estabelece valor entre as provas, pois nenhuma prova tem mais valor do que a outra nem é estabelecida uma hierarquia entre elas.Todas as provas são relativas, nenhuma delas terá valor decisivo.Como característica do sistema acusatório, o juiz está obrigado a motivar sua decisão diante dos meios de prova constantes nos autos, sob pena de nulidade.

            O sistema da persuasão racional faz com que o magistrado somente possa condenar com base em provas contraditadas.São aquelas que foram objeto de analise judicial e submetidas às partes em contraditório, mirando impedir a chamada condenação com base em "provas" do inquérito policial. É o sistema que dá ao juiz liberdade para apreciar as provas, sem se tratar de liberdade absoluta, mas restringida pelo que determina a lei e a Constituição Federal.Perceba que as características deste sistema de prova demonstram o tratamento igualitário em oportunidades dado às partes, tanto a quem acusa quanto a quem defende, reprimindo uma provável atuação imparcial do juiz, tudo em estreita ligação com os valores perfilhados no sistema acusatório.

            O terceiro sistema que vamos analisar é o misto. É fortemente influenciado pelo sistema acusatório privado de Roma.Tem também comunicação direta com o posterior sistema inquisitivo desenvolvido a partir do direito canônico e da formação dos Estados Nacionais sob o regime da monarquia absolutista.Embora as primeiras regras deste processo fossem introduzidas com as reformas da Ordenança Criminal de Luis XIX(1670), a reforma radical foi operada com o Code d’Instruction Criminelle de 1808 na época de Napoleão Bonaparte, espalhando-se pela Europa Continental no século XIX. É ainda o sistema adotado em vários paises da Europa e da América Latina, como por exemplo, a Venezuela.

            Este sistema se compõe de duas fases distintas, sendo a primeira a fase a de instrução preliminar, onde o magistrado procede às investigações e uma segunda fase, em que nasce a acusação propriamente dita, proposta pelo Estado-administração através do Ministério Publico.Enquanto que na fase preliminar, o procedimento é secreto, escrito e o autor do fato é objeto de investigação sem direito ao contraditório e ampla defesa, na fase judicial é assegurado ao acusado a ampla defesa e o contraditório, garantindo também a publicidade do processo.

            Partiremos agora para o exame minucioso dos sistemas inquisitivo e acusatório.

            Para bem compreendermos o sistema inquisitivo brasileiro antes da CF/88, decifrarmos o porquê de tantas restrições à ampla defesa e quais os motivos que levaram à busca incessante pela condenação dos que estavam sendo acusados em todo este período antecedente, basta acompanharmos os comentários feitos na Exposição de Motivos de nosso Código de Processo Penal de 1941.Transcrevemos um dos comentários para uma melhor reflexão do mesmo:

            "Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou da defesa, e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não deverá pronunciar o in dubio pro reo ou o non liquet".

            A partir daí podem começar a surgir alguns questionamentos: O que teria de errado à possibilidade do juiz buscar averiguar melhor a matéria processual?A principio não há nada de errado, mas se remetermos a frase ao contexto histórico de 1941...

            Pois bem.Para acentuarmos a intenção do legislador de 1941 em coibir algum tipo de defesa do acusado, não devemos esquecer que em 1941 o contexto histórico nos remete à 2ª Guerra Mundial e o Brasil vivia um período ditatorial imposto por Getúlio Vargas.O nosso presidente regia o país sob forte influência dos ideais facistas de Mussolini e reprimia violentamente qualquer atitude que "cheirasse" a comunismo.O período foi marcado por profunda retração de direitos e somente com um Código de Processo Penal autoritário seria possível "legalizar" todo o pensamento inquisitivo que pairava no Estado ditatorial brasileiro no início da década de 40 (a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal é incisiva ao dispor: "É restringida a aplicação do in dubio pro reo").

            Já sabemos que, quanto ao efeito ou valor, a prova pode ser classificada como plena, sendo aquela que é convincente para a condenação. É aquela que dá um juízo de convicção acerca dos fatos, auxiliando-lhe a formar o seu juízo de certeza no momento da sentença.No sistema inquisitivo, se o juiz não dispõe de provas plenas (mesmo que o Ministério Público não tenha logrado êxito em provar a acusação que fez em sua peça exordial) e tendo duvidas a respeito da culpabilidade do acusado, não lhe deve ampliar a aplicação da máxima in dubio pro reo (em dúvida, a favor do réu).

            A doutrina tradicional e majoritária ainda guarda um certo apreço por valores resguardados pelo sistema inquisitivo adotados até antes à promulgação da Constituição Federal de 1988.O renomado autor Julio Fabbrini Mirabete, dentre tantos outros autores, entende que é necessário possibilitar ao juiz a produção de prova com vista a adquirir plena certeza do cometimento um ilícito penal e imputar a determinada pessoa uma sanção pelo crime cometido.Esta corrente doutrinária preza por uma maior segurança jurídica quando designa ao juiz o poder de produção de provas, como mais um ente (além do Ministério Publico e das partes) capaz e perseguidor da verdade real.Dentro da discussão doutrinária que ronda o principio da imparcialidade do juiz, lanço a seguinte pergunta: De fato, não é uma segurança a mais para o Estado a possibilidade de mais um ente poder produzir prova, aumentando em graus a probabilidade de descobrir a verdade do fato acontecido?Vou mais além.

            Em geral, as instituições públicas do nosso Estado Brasileiro e, caminhando nas searas do Poder Judiciário e do Ministério Publico, sofrem, por todos os lados com o descaso dos governantes, que marginalizam estruturas sérias como as citadas.Falta de estrutura para o trabalho, envolvimento de juizes com os crimes organizados, venda de sentenças, omissões em interposições de ações penais públicas por promotores públicos, descaso destes próprios promotores públicos com o andamento de ações penais já interpostas,...Enfim, são inumeráveis os exemplos que assolam tanto o Poder Judiciário quanto o Ministério Publico.São casos sabidos de todos.

            A partir daí, pergunto: Não é interessante que o juiz, em nome do Estado Democrático de Direito, possa vir a suprir a desídia de algum promotor publico ou de um advogado incompetente no que diz respeito à produção de provas?Vamos supor, num exemplo hipotético, que esteja bem visível o cometimento de um crime por determinada pessoa e que tudo leve a crer que esta virá a ser condenada (não vamos avaliar aqui a presunção de inocência desta pessoa, esta assegurada como principio constitucional). Por imperícia tanto do promotor publico quanto do advogado de acusação, este no papel de assistente de acusação, o acusado veio a ser absolvido por falta de provas ou por uma acusação mal fundamentada (não entraremos no mérito da imperícia, mas sabemos que existem bons e maus profissionais do Direito em todas as áreas em que atua, mas vamos supor que a imperícia seja devido à falta de atualização, à falta contínua de estudo).

            Por conseguinte, vamos supor que o juiz do processo seja uma pessoa de extremo caráter, uma pessoa dotada de honestidade, alguém preocupado em sempre estar atualizado, sempre estudando e acima de tudo, disposto a dar o melhor de si na sua profissão.Vamos supor que este juiz, mesmo presenciando toda esta "falta de atenção" da acusação com relação ao processo, não pudesse produzir nenhum tipo de prova e o acusado viesse a ser absolvido.Como ficaria o principio da supremacia do interesse publico, valor absoluto do Estado a da sociedade, diante da falta de condenação do acusado?

            Que diria o jurista Rosseau a respeito do caso in concreto?O Estado não estaria violando o "contrato social" pactuado com os civis?

            Indo de encontro com o lado pratico do nosso dia a dia, como ficam as pessoas que foram vitimadas, sabendo da absolvição do acusado e que certamente irá cometer mais atrocidades contra as mesmas?O tema realmente é polêmico.

            Numa outra linha de raciocínio, Paulo Rangel, citando o mestre Afrânio Silva Jardim como seguidor do mesmo posicionamento acerca do tema, demonstra todo o desapreço tanto pelo sistema inquisitivo quanto pelo sistema misto.Entendem os renomados autores que, se a sociedade dispõe de uma instituição regida pelos interesses do Estado como o Ministério Público, capaz de realizar investigações e promover a acusação, a partir deste momento se torna inaceitável dar ao juiz a função de órgão investigador.Um Estado Democrático de Direito não pode ser complacente com um sistema repressivo, que inibe a defesa do acusado, que mantém caracteres de um estado autoritário.

            Infelizmente, é sob esta ideologia inquisitiva que o Código de Processo Penal de 1941 ainda vige no Direito Processual Penal brasileiro até hoje (daí a necessidade de haver uma reforma urgente no nosso Código).Mesmo havendo o entendimento de que a Constituição Federal em 1988 tenha adotado o sistema acusatório, é impressionante o resquício deixado pelo sistema inquisitivo.São recentes e também diversos, os números de casos em que o legislador insiste na concepção de que não cabe ao juiz a única e exclusiva função de julgar, afrontando o principio da imparcialidade do juiz. Permitem, como se diz o jargão popular, "derrubar ladeira abaixo" a previsão constitucional do artigo 129 da Carta Magna.

            O Procurador de Justiça Sergio Demoro Hamilton, no prefácio da 2ª edição da obra "Direito Processual Penal" do professor Paulo Rangel, bem acentua as violações cometidas ao sistema acusatório brasileiro.O procurador dá seu parecer favorável ao princípio da imparcialidade do juiz e diz que após a CF/88, outras leis vieram a atentar contra o sistema acusatório. É o caso da Lei do Crime Organizado, Lei nº 9034/95, art.3º, in verbis:

            "Nas hipóteses do inciso III do artigo 2º desta Lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligencia será realizada pessoalmente pelo juiz, adotando o mais rigoroso segredo de justiça".

            É visível o destaque de figura inquisitiva dada ao juiz.Outra lei que atenta contra o principio acusatório é a Lei de Interceptação Telefônica (Lei nº 9296/96), também situando o juiz em posição investigatória na fase de inquérito policial, ferindo sua indispensável imparcialidade.

            Conjunturas que permitem deturpar o princípio da imparcialidade do juiz são analisadas pela doutrina de vanguarda e torna-se ponto de discussão na disciplina de Direito Processual Penal em diversas Faculdades do Brasil.Uma destas discussões refere-se à prevenção do juiz para julgar a causa a partir do momento em que figura como investigador na fase de inquérito policial.

            Não seria uma porta de ilegalidade o fato de um juiz requerer prova em fase de inquérito policial e a este mesmo juiz ser dada a prerrogativa de julgar o feito em sede de instrução criminal?Volto a frisar que o tema é bastante polemico e que a doutrina de vanguarda, tanto a brasileira quanto a internacional, como por exemplo, a doutrina espanhola, combate ferozmente a possibilidade do juiz produzir prova na fase de inquérito e dar ao próprio juiz o munus de julgar, baseando-se nestas provas produzidas por si próprio.

            Sob a mesma discussão observada acima, um ponto que é alvo de constantes debates diz respeito às arbitrariedades que o juiz pode se valer na produção da prova e a imediata falta de controle do mesmo, em fase de instrução criminal.Sabemos que o procedimento probatório é composto de quatro fases: a proposição, a admissão, a produção e a valoração.A proposição de provas pode ser feita tanto pelas partes quanto pelo juiz. É o primeiro momento da parte se manifestar nos autos (por exemplo, o primeiro momento previsto para a produção de prova pelo Ministério Público é com o oferecimento da denúncia e o primeiro momento previsto para a produção de prova pela parte que defende o acusado é com a defesa prévia).A segunda fase do procedimento probatório é a admissão, cuja competência exclusiva pertence ao juiz.Trata de ato processual específico e personalíssimo do juiz, que ao examinar as provas feitas pelas partes e o seu objeto, irá deferir ou não a sua produção.A terceira fase é a da produção das provas, cuja competência pertence tanto às partes quanto ao juiz e a quarta fase é a da valoração das provas, cujo munus pertence somente ao juiz. Pois bem.

            Expostas as fases do procedimento probatório, a partir daí, lanço a seguinte pergunta: Não é estranho que o juiz possa produzir provas na fase de proposição e que na fase de admissão ele próprio venha a fazer um juízo de valor desta prova produzida por si mesmo?Quem o fiscaliza de eventuais arbitrariedades acerca da admissibilidade desta prova que o próprio juiz produziu e depois admitiu? É com profundo pesar dizer que, na realidade, não há uma fiscalização externa direta a respeito do fato.

            Fazendo uma reflexão do princípio da imparcialidade do juiz, o autor espanhol Miguel Fenech assevera que ser imparcial é a nota exclusiva da atividade jurisdicional.Na visão do processualista, o princípio da imparcialidade é tão correlato ao conceito de órgão jurisdicional que nem sequer necessita enunciação positiva nas leis normativas de sua atividade.

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Sobre o autor
Hugo Eduardo Mansur Góes

Acadêmico de Direito da Ucsal – Universidade Católica do Salvador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GÓES, Hugo Eduardo Mansur. Uma reflexão sobre a teoria geral do processo penal à luz da doutrina nacional e estrangeira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 547, 5 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6109. Acesso em: 24 abr. 2024.

Mais informações

Texto elaborado sob a coordenação do Professor Bernardo Montalvão Varjão de Azevêdo.

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