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A prescindibilidade da autorização judicial para o uso de rastreadores veiculares em investigações policiais

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21/10/2017 às 13:33
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Delineia-se um esboço sobre a utilidade prática, em sede de investigação policial, dos dados obtidos através uso de rastreadores veiculares, demonstrando a desnecessidade da autorização judicial para a implantação destes instrumentos.

“A plena luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que finalmente protegia. A visibilidade é uma armadilha” – Foucault, Vigiar e Punir


1. Introdução:

O presente trabalho visa delinear um esboço sobre a utilidade prática, em sede de investigação policial, dos dados obtidos através do uso de rastreadores veiculares, demonstrando a desnecessidade da autorização judicial para a implantação de tais instrumentos, posto que esta diligência não estaria abarcada entre as hipóteses constitucionais de provas submetidas à reserva jurisdicional.

Para tanto, iniciaremos estabelecendo conceituações básicas acerca da tecnologia empregada pelos mecanismos em questão, tão somente meras pontuações de ordem técnica de sua utilização e funcionamento, sem a pretensão de adentrar em uma seara mais aprofundada, reservada apenas aos peritos neste tipo de dispositivo.

Passaremos, então, à análise da diferenciação entre as concepções dos direitos constitucionais fundamentais à intimidade e privacidade, firmando a imprescindibilidade do mais absoluto respeito a estes valores, correlatos e basilares ao pleno desenvolvimento e à dignidade da pessoa humana no Estado Democrático de Direito.

Por fim, trataremos os fundamentos lógico-jurídicos que nos levam a defender uma nova visão a respeito da privacidade dos indivíduos, ante aos avanços tecnológicos e a atual conjuntura social, firmando a nossa posição pela prescindibilidade da autorização judicial para o emprego dos dispositivos de rastreamento no curso de investigações policiais realizadas pela Polícia Judiciária, órgão legitimado constitucionalmente ao exercício das funções de Polícia Judiciária neste Estado, atribuições conferidas pelo artigo 144, § 4º, da Constituição da República, artigo 140, § 3º, da Constituição Estadual Paulista, artigo 4º e seguintes do Código de Processo Penal (Decreto-lei nº 3.689/1941) e demais disposições trazidas pela Lei 12830/2013.


2. Rudimentos técnicos quanto aos dispositivos rastreadores:

Os módulos rastreadores de veículos são equipamentos dotados em grande maioria da tecnologia GPS, cuja função é a captação através de satélite de dados de latitude, longitude e direção, permitindo a aferição de localização. Estes dados capturados são tratados e transmitidos a uma central capaz de decodificar estas informações e transformá-las em endereço.

Insta delimitar a diferenciação técnica na área da tecnologia da informação entre os conceitos de “dados” e “informações”. Nas lições de Rossini e Palmisano, dado é “elemento que representa eventos ocorridos na empresa ou circunstâncias físicas, antes que tenham sido organizados ou arranjados de maneira que as pessoas possam entender e usar”, de outra banda, informação é conceituada como “dado configurado de forma adequada ao entendimento e à utilização pelo ser humano” (2003, p. 35).

Em matéria publicada no jornal Estado de São Paulo de 10 de setembro de 2015, Alípio Reis Firmo Filho sintetiza em acertada explicação a diferenciação:

Os dados por si só não representam muita coisa. Podem até não ter significado algum ou, o que é pior, ter todos os significados possíveis, ainda que contraditórios entre si. Eles sustentam vaga aparência de conteúdo, nada mais. E o que são dados? Qual o seu real significado? Respondo: dados são informações não tratadas, não agrupadas, não organizadas, não sistematizadas. [...] Esses dados precisam ser agregados, sistematizados, organizados e tabulados, a fim de que manifestem-se como informação. A informação, portanto, nada mais é que um conjunto de dados tratados, um passo rumo à compreensão do que se passa ao nosso redor. Informações favorecem a tomada de decisão. A margem de erro é maior quando afirmamos ou negamos algo com esteio apenas em amontoados de dados. Enfim: os legisladores dos últimos 15 anos foram prósperos em imporem às administrações públicas a necessidade de divulgarem dados, mas fizeram menos para gerar informação. Temos muitos dados, pouca informação.

Por conseguinte, “dados” são elementos básicos que isoladamente não possuem significação distinta, e “informações”, que correspondem aos resultados obtidos através da transformação dos dados em algo útil para o usuário. Logo, os dados obtidos pelos satélites no curso do rastreamento do posicionamento individual no globo terrestre são a matéria-prima embrionária da informação, que corresponderá à efetiva localização apontada com base nos elementos trazidos.

A partir da década de 60, a Força Aérea e a Marinha americanas iniciaram pesquisas no campo da navegação por satélites. No entanto, em 1973, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos desenvolveu um sistema de posicionamento de alvos para fins militares. Surgiu, então, o programa “NAVSTAR GPS” (CARVALHO; ARAÚJO, 2009, p.2), cujo desenvolvimento é possível ser sistematizado em uma série de fases cronológicas:

  • 1ª Fase – dezembro de 1973 até 1979:  foram realizados estudos sobre a viabilidade real do sistema;
  • 2ª Fase – até 1985: iniciaram o desenvolvimento e os testes dos equipamentos de GPS;
  • 3ª Fase: fabricação de aparelhos GPS e finalização da rede de 24 satélites, graças à operação simultânea destes, o sistema passou a proporcionar cobertura completa.

O modelo de navegação é calcado em sinais obtidos através de uma constelação de 24 satélites, colocados em órbita pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos. Projetado inicialmente para finalidade militar, com o objetivo de facilitar os deslocamentos de tropas, localização de tropas inimigas e propiciar navegação de refinada precisão para transporte militar e para o acionamento de mísseis.

De acordo com o Coronel Bradford Parkinson (apud MONTEIRO, 2007), primeiro diretor do programa GPS, a missão desse programa era “acertar com 5 bombas no mesmo buraco e construir um dispositivo de guiamento barato”.

Em 1991, durante a primeira “Guerra do Golfo”, os EUA já possuíam protótipos de bombas e mísseis “Tomahawk” dotados de guiamento por GPS. Quanto a superioridade da precisão destas armas José Rodrigues dos Santos, na obra “A verdade da guerra”, aduz que:

[...] no cálculo efetuado pelo Pentágono de que um único míssil largado durante a guerra do Golfo por um caça furtivo Nighthawk F-117ª tinha uma eficácia estratégica equivalente ao resultado do despejo de 9000 bombas pelos B-17 durante a Segunda Guerra Mundial, ou de 190 bombas dos B-52 durante a guerra do Vietnã, com a vantagem de matar muito menos pessoas (apud MONTEIRO, 2007).

Com o incidente envolvendo o voo Korean Airlines 007, conhecido também como KAL 007 ou KE007, um avião civil coreano que foi derrubado por jatos soviéticos em 01 de setembro de 1983, sobre o mar de Okhotsk, matando 269 passageiros, entre eles o congressista americano Lawrence Mcdonald, deflagrou uma série de protestos em todo mundo, pois a União Soviética alegou desconhecer que o avião era civil, acreditando tratar-se de uma provocação deliberada dos Estados Unidos.

O presidente americano Ronald Reagan classificou o episódio como “o massacre da linha aérea coreana” e um "ato de barbarismo de brutalidade desumana”, concluindo que esta tragédia poderia ter sido evitada se o sistema GPS estivesse franqueado para propósitos civis, anunciou a disponibilidade do sistema ao uso civil (LA MARCA, 2015).

O Sistema de Posicionamento Global, conhecido pela sigla GPS, correspondente à expressão “Global Positioning System”, que também pode ser chamado de NASTAR-GPS, possui dois níveis de serviço, são eles (MONTEIRO, 2007):

  1. “Precise Positioning Service”: utilizado somente por militares autorizados, possui um nível de performance mais elevado, permitindo erros de apenas poucos metros e, também, fornecendo segurança na transmissão de sinais cifrados, evitando a utilização não autorizada;
  2. “Standard Positioning Service”: nível de performance mais fraca, disponível a todos os utilizadores do GPS, capaz de fornecer exatidões na ordem de poucas dezenas de metros.

O modelo proposto pelo sistema baseia-se no princípio matemático da “trilateração” na determinação da distância entre um ponto, denominado receptor, e os pontos de referências, que são os satélites. Deste modo, conhecendo-se a distância entre o receptor e os três satélites, é possível determinar a posição relativa do receptor através da interseção de três circunferências, cujos raios correspondem às distâncias medidas entre o receptor e os satélites (GOMES, 2010, p. 7).

O sistema de posicionamento por satélites russo GLONASS tem se mostrado uma alternativa ao GPS e tem evoluído nos últimos anos, sendo capaz de oferecer algumas vantagens ao GPS convencional. Do mesmo modo que o GPS americano, foi concebido com finalidade bélica pela Rússia no final da década de 1970. Entretanto, com o fim da União Soviética, acabou por ser negligenciado, somente voltando a receber atenção do governo russo no início dos anos 2000, no governo de Vladimir Putin, e atualmente conta com cobertura global e precisão superior ao GPS, sendo o programa mais caro financiado pela Agência Espacial Federal da Rússia (BARBIAN, 2016).

Do mesmo modo que o GPS, o GLONASS inicialmente iniciou seu funcionamento com 24 satélites, responsáveis pelo fornecimento dos dados de posicionamento, os quais são distribuídos entre três camadas com 8 satélites em cada, utilizando do já referido processo de “trilateração” para aferição do posicionamento individual. Em dezembro de 2007 foram lançados 14 novos satélites de nova geração para composição do sistema global (BARBIAN, 2016).

Entre as vantagens do uso do GLONASS em detrimento do GPS está a maior precisão de posicionamento do mecanismo russo, pois após as melhorias do sistema, ele é capaz do fornecimento de sua resolução máxima ao uso civil, o que não ocorre com o GPS americano, que limita a capacidade de precisão do sistema, criando duas sessões, a “Precise Positioning Service” e a “Standard Positioning Service”.

Em toda comunidade científica internacional, vários estudos foram realizando comparando a precisão e qualidade de cobertura dos sistemas GPS e GLONASS, realizando proposta de integração dos sistemas para aumentar a cobertura e acurácia, obtendo diversas vantagens que os sistemas isoladamente não conseguem obter. De acordo com Urlichich (apud VAZ; PISSARDINI; FONSECA JÚNIOR, 2013 p. 534/535), a integração destes sistemas oferecem as seguintes vantagens:

  1. Maior probabilidade de receber sinais com melhor geometria (PDOP) devido a um maior número de satélites disponíveis para observação;
  2. Obtenção de um maior número de sinais na maior parte dos cenários;
  3. Minimização do bloqueio de sinais devido a obstáculos diversos.

Podemos citar ainda os projetos GALILEO e COMPASS, o primeiro corresponde ao sistema de navegação por satélite pela União Europeia para uso civil, prometendo fornecer maior precisão, segurança, menor suscetibilidade a problemas e interoperabilidade com os sistemas já existente, permitindo maior cobertura de satélites, estará plenamente operacional no ano de 2020 e contará com 30 satélites distribuídos em três planos orbitais  Por sua vez, a China também lançou seu próprio sistema de navegação e posicionamento, batizado de COMPASS ou “Beidou” o qual entrou em operação em 27 de dezembro de 2013, com serviço públicos e comerciais para a região da Ásia-Pacífico (MONSERRAT FILHO, 2013).


3. Direitos Fundamentais Constitucionais à Intimidade e Privacidade e hipóteses de limitação: Direito, Intimidade e Privacidade

Lúcio Packter (2016) em seu texto “O que é intimidade?” afirma:

A intimidade pode ser um dos lugares onde a pessoa encontrará uma parte dela que se pronuncia quando a maioria das coisas se cala, quando o silêncio propicia que se explique conosco o que no emaranhado dos eventos simultâneos da vida acaba por se perder.

Atualmente vivemos em um mundo tecnologicamente intrincado, repleto de simultaneidades, onde nossa privacidade se vê constantemente atacada pelos olhares das lentes de inúmeras câmeras, onde nossos passos são acompanhados e vigiados. Será que premonições de George Orwel em “1984” parecem estar certas, o “grande irmão” zela por nós e estamos todos sob a constante vigilância através de “teletelas”?

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Em um Estado Democrático de Direito, o ser humano deve ser inserido no epicentro de todo o ordenamento jurídico, devendo todas as normas emanarem do mais absoluto respeito à sua dignidade e direcionarem-se ao seu pleno desenvolvimento individual.

A dignidade e a personalidade são atributos ínsitos à natureza humana, traços que nos singularizam e, por isso, são dignos de respeito e preservação,

[...] são marcas vistas apenas na humanidade, devem ser preservadas. Precisam ser balizas indeléveis, colocadas em um grau de estima absolutamente diferenciado, posto que nenhum outro valor que se queira resguardar pode alcançar igual consideração por parte da sociedade e do Estado” (SIQUEIRA, 2010).

Assumindo que a dignidade e a personalidade são inerentes à condição humana, incumbe ao sistema jurídico proteger e permitir a promoção dessas concepções. A ordem constitucional ascendeu a cidadania e a dignidade como fundamentos da República Federativa do Brasil, estabelecendo balizas que devem nortear o legislador infraconstitucional e o intérprete, firmando-se no ordenamento pátrio como “cláusula geral da personalidade” (TEPEDINO, 2004, p. 50). 

Essa cláusula geral representa o ponto de partida para todas as situações que se relacionam, direta ou indiretamente, com a personalidade, sacramentando a dignidade da pessoa humana como valor fundamental, conforme aduz no inciso terceiro de seu artigo inaugural. A primazia da dignidade no ordenamento jurídico para Pietro Perlingeri (1997, p. 155) configura “o valor fundamental do ordenamento, está na base de uma série (aberta) de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessante mutável exigência de tutela”.

Nesta esteira, a Constituição Federal de 1988 consagra em seu art. 5º, X a inviolabilidade dos Direitos Fundamentais à intimidade, vida privada, honra e a imagem do cidadão. Logo, o constituinte erigiu, de forma expressa, esses valores enquanto essenciais à dignidade da pessoa humana.

José Afonso da Silva (1992, p. 188) revela a existência, em sua visão, de uma conexão entre esses valores e o direito à vida, previsto no caput do mesmo art. 5º, sendo, consequentemente, um reflexo ou manifestação deste. Nesta sentido, o autor prefere utilizar a expressão “Direito à Privacidade”, adotando um sentido amplo e genérico, abarcando todas manifestações. Assim, de acordo com J. Matos Pereira (apud SILVA, 1992, p. 188), a privacidade equivale ao “conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controlo, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem isso poder ser legalmente sujeito”. Deste modo, trata-se de inviolabilidade ampla, abarcando as relações familiares, domiciliares e afetivas, hábitos, nome, imagem, segredos, pensamentos etc.

Portanto, os direitos à intimidade e à vida privada, positivados no texto constitucional, configuram partículas que compõem a integralidade moral do cidadão. Todavia, estes dois preceitos, como veremos, não se confundem, são autônomos e tutelam situações diversas, mas ambos assumem a finalidade da defesa da cidadania no Estado Democrático de Direito.

Na obra “A Treatise on the Law of Torts”, publicada em 1880 pelo Juiz norte-americano Thomas Cooley, utilizou-se pela primeira vez a expressão “right to be let alone”, mencionando-a como sendo o direito de uma pessoa ser deixada em paz, tranquila, de estar só. De acordo com a Suprema Corte dos Estados Unidos, o “right of privacy” representa o direito de toda pessoa tomar sozinha  decisões na esfera de sua vida privada (apud SILVA, 1992, 188/189).

Segundo René Ariel Dotti (apud SILVA, 1992, p. 189), a intimidade se caracteriza como “a esfera secreta da vida do indivíduo na qual este tem o poder legal de evitar os demais”.

O direito à privacidade é circunstância para o pleno desenvolvimento da personalidade, conforme aponta Bernardo Gonçalves Fernandes (2014, p. 412), está unido à exigência do indivíduo encontrar-se “protegido na sua solidão, na sua paz e equilíbrio, sendo a reclusão periódica uma necessidade da vida moderna, até mesmo como elemento de saúde mental”.

Miguel Reale (2004) afirma que o ser humano é o valor fonte de todos os valores, correspondendo ao fundamento principal do ordenamento jurídico, de modo que “os direitos da personalidade correspondem às pessoas humanas em cada sistema básico de sua situação e atividades sociais”. Por isso, é imprescindível sublinhar que cada direito da personalidade corresponde a um valor considerado primordial à condição do que somos enquanto seres humanos, nossos sentimentos, nossas percepções do mundo, nossos pensamentos e ações. 

O direito à privacidade é protegido em dois momentos distintos, conforme esclarece Paulo José da Costa Júnior (1995, p. 34):

na expressão ‘direito à intimidade’ são tutelados dois interesses, que se somam: o interesse de que a intimidade não venha a sofrer agressões e o de que não venha a ser divulgada. O direito, porém, é o mesmo. (...) No âmbito do direito à intimidade, portanto, podem ser vislumbrados estes dois aspectos: a invasão e a divulgação não autorizada da intimidade legitimamente conquistada.

Em um primeiro momento, a proteção consiste em uma reação diante de interferências ilícitas na intimidade do cidadão, evitando sua devassa. Posteriormente, a reação volta-se contra a divulgação indevida dos dados e elementos obtidos em afronta à intimidade. Assim sendo, inicialmente a proteção dirige-se a terceiros e depois ao destinatário do fato íntimo.

Para o Ministro Gilmar Mendes (p. 367/368), o direito à privacidade é direito do indivíduo de se destacar, de se apartar de um grupo, de se isolar da observação alheia e, também, o direito ao controle das informações sobre si veiculadas.

Para delimitar as fronteiras entre estas concepções, tem-se que a intimidade possui amplitude diminuta em relação à privacidade e se encontra no âmbito de sua incidência. Sob esta perspectiva, Manuel Gonçalves Ferreira Filho (1997, p.35) estabelece que intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo da pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto vida privada envolve todos os demais relacionamentos humanos, inclusive os objetivos, tais como relações comerciais, de trabalho, de estudo etc.

Dentre os estudos realizados no que tange à vida privada, destaca-se a “teoria dos círculos concêntricos da esfera da vida privada” de Heinrich Hubmann, que dividiu a esfera da vida privada em três círculos, de acordo com sua densidade, sendo que a externa corresponderia à privacidade, a intermediária alocaria o segredo e a esfera mais interna seria o plano da intimidade (COSTA JR., 1995, p. 36). Esta corrente foi trazida ao Brasil por Elimar Szaniawski e é adotada por parcela minoritária da doutrina pátria, capitaneada por Cristiano Chaves de Farias (DI FIORE, 2012). 

De outro lado, posiciona-se a linha majoritária, na qual destacam-se, Silmara Chinelato e Flávio Tartuce, os quais filiam-se a Heinrich Henkel, que também tripartiu a vida privada em círculos concêntricos, mas diferentemente da teoria anterior, o núcleo destes círculos seria o do segredo, deixando a intimidade como intermediária e a privacidade como o círculo externo (TARTUCE, 2012, 109/110).

Hidemberg Alves da Frota (2007, p. 463) ilustra e facilita a visualização da teoria dos círculos concêntricos da vida privada de Henkel estabelecendo as seguintes comparações:

[...] o círculo da vida privada em sentido amplo lembra o todo do sistema solar; o círculo da vida privada em sentido estrito, o sistema solar externo (dos planetas exteriores; mormente os gigantes gasosos); o círculo da intimidade, o sistema solar interno (dos planetas “terrestres” ou interiores); o círculo do segredo, o Sol. [...] a comparação pode ser feita também com a estrutura geológica da Terra: o círculo da vida privada em sentido amplo simbolizaria o globo terrestre; o círculo da vida privada em sentido estrito, a crosta; o círculo da intimidade, o manto; o círculo do segredo, o núcleo.

Por conseguinte, tem-se que o círculo da vida privada, em sentido amplo, encerra-se em três círculos concêntricos, ou seja, em sobreposição de camadas, cada qual com suas características e traços distintivos:

  1. Camada superficial – círculo da vida privada em sentido restrito: circunferência externa, de maior amplitude, trata-se de fatos e informações que o indivíduo almeja, em uma primeira análise, excluir do conhecimento alheio, como a sua imagem, seus hábitos e costumes (JOSÉ FILHO, 2016);
  2. Camada intermediária – círculo da intimidade: informações mais restritas sobre o ser humano, compartilhadas apenas com poucas pessoas. Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona FIlho (2002, p. 180), o elemento fundamental do direito à intimidade, manifestação primordial do direito à vida privada, é a exigibilidade de respeito ao isolamento de cada ser humano, que não pretende que certos aspectos de sua vida cheguem ao conhecimento de terceiros, ou seja, é o direito de estar só.
  3. Camada nuclear – círculo do segredo: onde se projeta a imagem mais autêntica de alguém, composto de informações e fatos cujo conteúdo o sujeito não deseja dividi-lo, apenas em restritas circunstâncias, por exemplo, opções sexual, filosófica e religiosa (FROTA, 2007, p. 469).

Reforçando e orientando a carga normativa posta no texto constitucional brasileiro, existem documentos internacionais, recepcionados pelo ordenamento jurídico pátrio em que o respeito à privacidade individual do cidadão é positivado.

O sistema global de proteção aos direitos humanos, formado pelo conjunto de tratados internacionais editados pela Organização das Nações Unidas, os quais criam uma ordem jurídica internacional que se lança sobre os países, vinculando-os, assegurando o respeito à dignidade da pessoa humana. Neste âmbito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, resolução da Assembleia Geral da ONU, fruto das barbáries vivenciadas pela humanidade na Segunda Guerra Mundial e marco da modernização dos direitos humanos, estabeleceu uma gama de direitos básicos aplicáveis a todos os seres humanos do planeta, inserindo entre estes o respeito à vida privada. Em seu art. 12 indica: “ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à proteção da lei”.

Diante do fato de a Declaração Universal dos Direitos Humanos possuir natureza jurídica de resolução e não de tratado internacional, já em 1949 começaram os trabalhos para a formulação de efetivo tratado internacional para a disciplina e inserção dos direitos contidos na declaração na ordem interna de cada país. Culminando, nesta toada, em 1966 no texto do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, que não apenas reconhece uma série de direitos e deveres contidos na Declaração Universal, mas procede maior detalhamento destes e, também, estende o rol. Dentre estes, mais uma vez surge o direito ao respeito à vida privada do cidadão, em seu art. 17-1 ,dispondo que “Ninguém poderá ser objetivo de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação”.

Adentrando a esfera do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, no âmbito da Organização dos Estados Americanos, a Convenção Americana sobre os Direitos do Homem, conhecido como Pacto de São José da Costa Rica, ao tratar da proteção da honra e da dignidade também sacramenta a proteção à intimidade em seu art. 11:” 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade; 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas”. Do mesmo modo, o art. 5º da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem estabelece que: “Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra os ataques abusivos à sua honra, à sua reputação e à sua vida particular e familiar”.

Todo o arcabouço teórico e legislativo exposto conduz à certeza de que o respeito aos direitos fundamentais aqui expostos são fulcrais para a manutenção e desenvolvimento da dignidade humana em um Estado Democrático, devendo, desse modo, serem considerados como vigas mestras do ordenamento jurídico brasileiro.

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Sobre o autor
Sandro Vergal

Delegado de Polícia Civil do Estado de São Paulo, Professor Universitário e de Cursos Preparatórios, Mestre em Direitos Sociais, Difusos e Coletivos, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, pós-graduando em Balística.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERGAL, Sandro. A prescindibilidade da autorização judicial para o uso de rastreadores veiculares em investigações policiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5225, 21 out. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61236. Acesso em: 28 mar. 2024.

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