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Novas perspectivas do controle da omissão inconstitucional no Direito brasileiro

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28/12/2004 às 00:00
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9. Fundamentos do controle das omissões relativas pelas vias de fiscalização dos atos comissivos

Já se sublinhou que as omissões relativas, inclusive as implícitas, por não dizerem respeito à inobservância de alguma norma constitucional sem aplicabilidade direta, estão a contrario sensu do §2º do art. 103 da CF/88 excluídas do âmbito de cabimento dos instrumentos de controle da constitucionalidade omissiva. Essa conclusão, portanto, restringe à fiscalização comissiva o problema dos fundamentos da fiscalização das omissões relativas.

Pois bem. Conforme demonstrado, a utilização das ações do controle de constitucionalidade comissivo tem a vantagem de, a um só tempo, permitir tanto o reconhecimento da desconformidade constitucional "daquilo que foi feito" quanto "daquilo que faltou fazer" na disciplina normativa incompleta. Como a igualdade pode ser restabelecida seja declarando a inconstitucionalidade do próprio regime favorável ("aquilo que foi feito"), seja reconhecendo a inconstitucionalidade da norma (implícita ou explícita) que consagra a discriminação arbitrária ("naquilo que não foi feito"), fiscalizar as omissões relativas por meio das ações do controle de atos comissivos é a melhor opção.

Entretanto, ao contrário do que se pode pensar, a aplicação dessas ações do controle comissivo para cuidar das omissões relativas quanto "àquilo que não foi feito" não significa necessariamente retroceder com o progresso obtido, embora de forma deficitária, com a disciplina contemplada pelo ato normativo. Muito pelo contrário.

Eventual juízo de inconstitucionalidade articulado nas vias do controle de atos comissivos fulmina, exatamente, a norma discriminatória extraída da interpretação do preceito impugnado, "na parte em exclui" ou "que não inclui" o que deveria prever. Então, sabendo que o parâmetro de controle das omissões relativas é formado por normas constitucionais auto-aplicáveis, defende-se o seguinte. Uma vez decretada a incompatibilidade constitucional do preceito que promove discriminação arbitrária, a defeituosa "vontade negativa" contida na disciplina incompleta seria reparada pela aplicação da própria norma constitucional violada, a qual, por possuir eficácia plena, não necessita de interpositio legislatoris para ser imediatamente aplicada. [148]

Por isso, nessas hipóteses, a decisão do tribunal implicaria espécie de "efeito aditivo". Declarar a inconstitucionalidade seja da cláusula expressa de exclusão (omissão relativa explícita), seja da norma implícita discriminatória (omissão relativa implícita), envolve nítida "adição normativa" ao preceito impugnado, pois a conseqüência lógica dessa declaração é a própria extensão da disciplina legal a fatos, pessoas ou situações não desejados pelo órgão legislativo. [149] Em outras palavras, mesmo quando a censura incide em face "daquilo que não foi contemplado" pela providência normativa, por meio dessa mecânica de controle, o que sucede é a adesão, à providência censurada, daquilo que foi por ela omitido. [150]

Obviamente, a proposta de controlar as omissões relativas por meio de mecanismos assim empreendidos não resolve sempre o problema, até porque não é freqüentemente que se encontram regras que impliquem extensão logicamente imposta pelo sistema constitucional. Contudo, se essa constatação é mais veemente nos países cujas constituições não são tão analíticas quanto a brasileira, parece que o constituinte pátrio disponibilizou ao STF número maior de regras para realizar a importante tarefa, mencionada por CERRI, de "descobrir instrumentos auto-aplicáveis de eliminação das inconstitucionalidades". [151]

Todavia, não se pode deixar de ressaltar que o tribunal controlador não procede, ele próprio, à aplicação da regra constitucionalmente obrigatória, pois a incidência concreta dela não é objeto de consideração no controle abstrato de constitucionalidade. O tribunal restringe-se a decidir pela existência de uma única solução constitucionalmente obrigatória para o defeito da providência incompleta. Somente então, se essa decisão contar com efeitos vinculantes, é que a solução apontada será também vinculante aos casos concretos em que se discutir a incidência da disciplina deficitária. Ou seja, o "momento reconstrutivo" do ato normativo incompleto é sempre uma conseqüência da nulidade da norma discriminatória contida na regulação omissa. [152]

De fato, o tema não é assim tão simples que possa ser resolvido somente com essa linha de considerações, pois sempre remanescerão polêmicas quanto à legitimidade e extensão do controle judicial da constitucionalidade. Nesse rumo, se inclusive a declaração de inconstitucionalidade do texto da cláusula expressa de exclusão importa na incorporação de algum "efeito aditivo" ao programa normativo do ato impugnado, é de se concordar com MENDES quando afirma que se situa "a problemática principal da omissão do legislador menos na necessidade da instituição de processos para o controle dessa modalidade de ofensa constitucional do que no desenvolvimento de formas adequadas de decisão para superar o estado de inconstitucionalidade". [153]

Mas uma coisa é certa: enquanto não incorporados às vias de controle abstrato fundamentos teóricos e técnicas decisórias que não resumam o julgamento à mera dicotomia entre declarar a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da "disposição" impugnada, a superação das omissões relativas será sempre um problema insolúvel.


10. Controle da inconstitucionalidade da omissão parcial e vedação da atuação do juiz como "legislador positivo"

Como já que se antecipou, um dos grandes desafios do trabalho está em navegar entre os limites do que a sistemática ora vigorante permite fazer e daquilo que ainda se pode avançar em relação ao velho dogma da proibição a que o juiz atue como "legislador positivo". [154]

Dessarte, o maior obstáculo da superação das omissões inconstitucionais relativas, por intermédio das vias de controle da constitucionalidade comissiva, reside nas objeções a que órgãos judiciais intervenham, positivamente, no programa normativo ou no âmbito de incidência do preceito impugnado.

Isso porque ainda vigora concepção que impede a atribuição de qualquer "efeito aditivo" aos atos normativos questionados em juízo, nem mesmo a pretexto de corrigir claras distorções que neles se possam verificar. Na jurisprudência do STF, é paradigmático o seguinte exemplo:

(...) O STF COMO LEGISLADOR NEGATIVO: A ação direta de inconstitucionalidade não pode ser utilizada com o objetivo de transformar o Supremo Tribunal Federal, indevidamente, em legislador positivo, eis que o poder de inovar o sistema normativo, em caráter inaugural, constitui função típica da instituição parlamentar. Não se revela lícito pretender, em sede de controle normativo abstrato, que o Supremo Tribunal Federal, a partir da supressão seletiva de fragmentos do discurso normativo inscrito no ato estatal impugnado, proceda à virtual criação de outra regra legal, substancialmente divorciada do conteúdo material que lhe deu o próprio legislador. (...) [155]

Para a Corte, portanto, se a declaração de inconstitucionalidade importar na modificação da sistemática do ato normativo impugnado, por acréscimo ou alteração de seu sentido, haverá impossibilidade jurídica do pedido. [156] E essa concepção restritiva do STF acaba por atingir também tanto os casos de omissões inconstitucionais relativas do tipo indefinido, [157] como os em que se alegara a existência de omissões relativas da espécie definida. [158]

Nesse rumo, sem distinguir entre os tipos de omissão, a Corte vem genericamente entendendo que, embora seja factível declarar a inconstitucionalidade da norma que concede o benefício discriminatório, não o seria a extensão jurisdicional dela "aos fatos arbitrariamente excluídos do benefício, dados que o controle da constitucionalidade das leis não confere ao Judiciário funções de legislação positiva." [159]

Certo, ainda é necessária a manutenção do dogma proibitivo da atuação do juiz como "legislador positivo". Não se discute que o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito exige que o princípio da independência das funções estatais seja preservado, de maneira que o Judiciário não pode e nem deve se imiscuir na esfera discricionária da atuação normativa dos demais Poderes. Nessa linha, é salutar o autocontrole da jurisdição constitucional, pois não é atribuição dela interferir ou impedir que os outros órgãos atuem, mas sim zelar para que isso seja feito de forma compatível com os preceitos constitucionais.

Todavia, se não for o caso de julgar inconstitucional o preceito impugnado em face "daquilo que foi contemplado", o princípio da supremacia constitucional pode exigir atitude que não restrinja o poder decisório do tribunal à simples extinção do processo por impossibilidade jurídica do pedido.

Especialmente quando se depara com omissões inconstitucionais relativas definidas, é o próprio ordenamento constitucional que prevê regra preexistente e plenamente eficaz para ser aplicada no lugar da norma (implícita ou explícita) que consagra a discriminação arbitrária. Com isso, tem-se por descaracterizada uma atuação do juiz como "legislador positivo", porquanto o que se faz é simplesmente permitir a aplicação de norma já existente, auto-aplicável e que possui superior hierarquia. É dizer: não há falar-se em desrespeito ao princípio da separação dos Poderes, pois, se a norma constitucional adequada para suprir a omissão relativa dispõe de eficácia plena, não se poderia recusar a aplicá-la em substituição à disciplina defeituosa. O tribunal limita-se a fazer aquilo há muito recomendado por HAMILTON, o precursor do controle de constitucionalidade: dar prevalência à norma constitucional em detrimento da norma infraconstitucional decorrente da providência incompleta. [160]

Em outras palavras: infirmada a constitucionalidade do preceito discriminatório "naquilo que faltou fazer", supera-se a omissão relativa pela incidência obrigatória de norma constitucional auto-aplicável, na mesma trincheira já aberta, na Espanha e na Itália, pelas chamadas sentenças "manipulativas" aditivas. [161]

É bem verdade, mesmo nesses países, o tema está longe de ser pacificado. Embora as sentenças "manipulativas" venham sendo adotadas pelas Cortes Constitucionais italiana e espanhola, há brilhantes doutrinadores a sustentar que tais expedientes convertem o órgão controlador em "legislador positivo". [162] Sem embargo, segue prevalente a tese de que o tribunal constitucional, como acima sustentado, apenas faz emergir, por via da interpretação, norma auto-aplicável e já presente no texto constitucional. [163]

Ademais, na defesa desse tipo de controle sobre as omissões relativas, REVORIO traz outros argumentos de peso, dos quais se destacam os seguintes. Em muitos casos, as exigências constitucionais podem impor a extensão do regime previsto no preceito discriminatório, já que a supressão da regulação favorável iria contra certos mandamentos contidos na própria constituição. Se a disciplina deficiente representa, ainda que de modo incompleto, a atuação da constituição, o realizado na disciplina não pode ser "desatuado" contra a vontade da norma fundamental. [164] Por isso, num contexto constitucional com grande elenco de direitos sociais, é justificável por que a Corte Constitucional espanhola vem antes preferindo considerar a legislação antiisonômica como portadora de "insuficientes generalizações" do que de benefícios em sentido inconstitucional. [165] Embora não se devam chancelar privilégios injustificados, [166] a solução aditiva, quando contrastada com a opção de decretar a inconstitucionalidade do regime favorável, é mais respeitosa com as exigências constitucionais. [167] Enfim, a sentença aditiva não é senão uma maneira de salvar, ao menos parcialmente, a decisão tomada pelo legislador. [168]

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Obviamente, não são todos os casos de omissão que admitem livremente sentenças "manipulativas" aditivas. A Corte Constitucional italiana, com base no rigoroso princípio da legalidade em matéria penal, não admite sentenças aditivas in malam partem. [169]

Além disso, atenta ao problema financeiro que a solução judicial pode ensejar, a doutrina italiana tem diferenciado decisões "aditivas de gastos" ou de "prestação" (additive di spese e additive de prestazione) daquelas "aditivas de garantias". Assim, questiona-se a constitucionalidade de precedentes da Corte Constitucional italiana nos quais não houve indicação da fonte de recursos necessários para suportar o aumento de despesas decorrente da extensão, mediante sentenças "aditivas de prestação", do original programa normativo da lei deficitária.

Essa discussão tem por pano de fundo o art. 81, §4º, da Constituição italiana, o qual exige – de forma até mais contundente que o art. 63 da CF/88 – que qualquer lei que implique novos ou maiores gastos deve indicar os meios para lhes fazer frente. [170] A melhor solução para o problema, contudo, tanto no Brasil quanto na Itália, parece estar no raciocínio exposto por ROMBOLI, para quem o art. 81, §4º, da Constituição italiana não vincula diretamente os pronunciamentos judiciais, mas deve ser visto como princípio a ser considerado e valorado pela Corte no momento de julgar a legitimidade constitucional de uma lei. [171]

Neste ponto, vem ainda à tona a relevante distinção já aludida entre omissões definidas e indefinidas. Isso porque, se a constituição contempla diversas soluções possíveis para remediar a providência deficiente, todas indiferentes sob a óptica do respectivo parâmetro de controle (omissão indefinida), não compete ao órgão controlador, mas à discricionariedade do próprio órgão normativo optar por uma delas. Logo, a decisão do tribunal não poderá indicar uma regra que traduza a solução constitucional obrigatória, senão apontar princípio ou princípios que nortearão as posteriores modalidades de atuação normativa necessárias para corrigir a disciplina incompleta. [172]

No entanto, se a omissão indefinida for da espécie imprópria, é possível ainda que o tribunal identifique um princípio específico a direcionar a reconstrução da disciplina deficitária por parte dos demais órgãos constituídos, sem que isso signifique vulnerar o âmbito discricionário do órgão normativo omisso. Como disse REVORIO, há ocasiões em que as conseqüências jurídicas derivadas da constituição são suficientemente genéricas a ponto de exigir uma concretização, porém não tão genéricas que tornem imprescindível que a concretização se realize pelo próprio legislador. [173] Ademais, existem outras situações em que, embora a intervenção do legislador seja muito conveniente ou necessária, ainda sim cabe uma aplicação "provisional" dos princípios constitucionais considerados como soluções ao problema da providência deficiente. [174]

Daí se vê que a compulsória indicação e posterior incidência do preceito constitucional violado, no lugar da norma (explícita ou implícita) discriminatória, só é cabível em se tratando de omissão relativa definida, pois somente nesses casos é que os aplicadores do preceito impugnado estão constitucionalmente vinculados a observar aquela única solução constitucionalmente obrigatória.

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Sobre o autor
Juliano Taveira Bernardes

juiz federal em Goiás, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, mestre em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB), ex-membro da magistratura e do Ministério Público do Estado de Goiás, membro do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BERNARDES, Juliano Taveira. Novas perspectivas do controle da omissão inconstitucional no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 539, 28 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6126. Acesso em: 28 mar. 2024.

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