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A reforma do Judiciário e o novo Recurso Extraordinário

30/12/2004 às 00:00
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Na manhã de 8 de dezembro de 2004, data em que se comemora o Dia da Justiça, o Congresso Nacional enfim promulgou a Emenda Constitucional n.º 45, de 2004 – EC 45/2004, que introduz modificações na estrutura do Poder Judiciário. Trata-se da tão esperada Reforma do Judiciário, alvo das mais acerbadas críticas, seja pelos mecanismos processuais que introduz (súmula vinculante – art. 102, § 2.º; critério da repercussão geral para conhecimento do recurso extraordinário – art. 102, § 3.º etc.), seja pelos órgãos fiscalizadores que cria (Conselho Nacional de Justiça – art. 103-B e Conselho Nacional do Ministério Público – art. 103-A).

A bem da verdade, a EC 45/2004 é fruto da cisão da Proposta de Emenda à Constituição n.º 29, de 2000, cuja outra parte, renomeada como Proposta de Emenda à Constituição n.º 29A, de 2000, ainda será apreciada pela Câmara dos Deputados antes de entrar em vigor.

Cinge-se o presente artigo a analisar um ponto de real relevo à classe jurídica, qual seja, a nova repartição da competência para apreciar uma das hipóteses de cabimento de recurso excepcional (extraordinário e especial), mais especificamente aquela ocorrente quando a decisão recorrida julgar válida (entenda-se: fundar-se em) lei ou ato de governo local contestada em face de lei federal. Ressalte-se que esta alteração consta da EC 45/2004, o que significa dizer que foi promulgada pelo Congresso Nacional da Sessão Solene de 8 de dezembro e entrará em vigor na data da publicação da emenda.

Pois bem.

Na vigência da Constituição de 1967, o tipo que ensejava o recurso extraordinário era o seguinte: decisão que "julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição ou de lei federal" (EC 1/69, art. 119, III, c). Àquela época, somente se cogitava do recurso extraordinário, já que sequer o Superior Tribunal de Justiça compunha o Poder Judiciário nacional, haja vista que foi criado pela Carta Republicana de 1988. Com o advento da Constituição Federal vigente, houve o desmembramento da hipótese de cabimento aqui examinada, passando o Supremo Tribunal Federal a ter competência para, mediante recurso extraordinário, julgar as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida – dentre outras afrontas – julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal (art. 102, III, c da CF/88); ao Superior Tribunal de Justiça coube a função de julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, quando a decisão recorrida, v. g., julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal (art. 105, III, b da CF/88). Note-se, com RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO (1), que "nos dois casos há um núcleo comum: ‘lei ou ato de governo local’; e diferença específica: no caso do especial, a preterição se dá em face de lei federal; no do extraordinário, em face da Constituição."

A EC 45/2004, como se vê, ampliando a competência do STF (e por via de conseqüência reduzindo a do STJ) faz novo agrupamento das hipóteses de cabimento, passando a cometer àquele a apreciação e o julgamento, via recurso extraordinário, do inconformismo surgido em face de decisão que julgou válida lei ou ato de governo local contestado em face da Constituição Federal (art. 102, III, c da CF/88, que não sofreu alteração) ou também da irresignação advinda de decisum que julgou válida lei local contestada em face de lei federal (art. 102, III, d, acrescido pela EC 45/2004). Observe-se que a contraposição à lei federal só será analisada pelo STF se a contrariedade advier de decisão cuja fundamentação está baseada em lei local, não se admitindo o recurso extraordinário quando a preterição for fulcrada em ato de governo local, situação mantida na competência do STJ (art. 105, III, b).

Pela expressão "lei local" deve ser entendida toda norma estadual ou municipal que, sob as vestes de regra geral, emanada de autoridade competente, seja imposta coativamente a todos (2), a exemplo das leis (stricto sensu), decretos, portarias, regulamentos, ordens jurídicas menores etc. "Ato de governo local", por sua vez, é locução indicativa dos atos praticados por agentes públicos dotados de certa parcela de poder (governadores, prefeitos, secretários, diretores de órgãos públicos, reitores etc.). Curial ressaltar – a advertência é de MANCUSO (3) – que "essas normas e esses atos bem podem ser emanados do Executivo, como do Legislativo ou até do Judiciário, ressalvados, nesse último caso, os atos puramente jurisdicionais, ou seja, os atos do juiz passíveis de recurso por error in procedendo ou in iudicando (sentenças, despachos interlocutórios – Código de Processo Civil, art. 162), já que tais provimentos jurisdicionais, por óbvio, não cabem na rubrica de ‘lei ou ato de governo local’."

A modificação, se não acaba definitivamente, ao menos traça um norte para a intricada questão sobre a qual se debruçaram a doutrina e a jurisprudência pátrias, relativa à confusão entre a validade de lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal (até então sujeita a recurso especial), com discussão de inconstitucionalidade de lei estadual ou municipal (caso em que o recurso extraordinário seria cabível). Doravante, se o que se confronta com a Constituição ou com lei federal é "lei local", a competência para julgamento é do STF, mediante recurso extraordinário (lembre-se que o "ato de governo local" contestado em face da Constituição continua a autorizar recurso extraordinário – art. 102, III, c); se se trata de "ato de governo local" em contraposição a lei federal, cabe recurso especial, ao STJ.

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Se a reforma tem o condão de facilitar ao intérprete a subsunção da hipótese "decisão que julgou válida lei local contestada em face de lei federal" ao recurso extraordinário (art. 102, III, d da CF/88, acrescido pela EC 45/2004), o mesmo não se pode dizer quando da ocorrência da situação em que a decisão recorrida prestigiou ato de governo local contestado em face de lei federal, caso em que, em princípio, seria cabível o recurso especial.

Veja-se, neste particular, comentário do ex-Ministro do STF MOREIRA ALVES (4), sobre a expressão "julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal": "Ora, as questões de validade de lei ou de ato normativo de governo local em face da lei federal não são questões de natureza legal, mas sim, constitucional, pois se resolvem pelo exame da existência, ou não, de invasão de competência da União, ou, se for o caso, do Estado." Nesse mesmo sentido as lições de ATHOS GUSMÃO CARNEIRO (5) e SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA (6), advertindo este último, porém, que desse entendimento "não comungou a Suprema Corte em ‘questão de ordem’ suscitada no Recurso extraordinário n. 117.809-PR. Ainda, a propósito do controle da constitucionalidade, é oportuno aqui recordar que nada impede que, em incidente suscitado perante o órgão competente do STJ, seja apreciada a inconstitucionalidade pela via indireta, a exemplo do que se dá com os demais pretórios do país."

Nesses casos em que a decisão local funda-se em ato de governo local contestado em face de lei federal, dá-se o que a doutrina convencional chamar "contencioso constitucional", pois o Tribunal local, julgando válido o ato governamental em face da lei federal, reconhece que o ato comportava-se na competência constitucional assegurada ao governo local, tendo a lei federal, pois, invadido competência local, pelo quê é inconstitucional. Isto porque o ordenamento jurídico nacional assenta-se no princípio da conformação constitucional, idealizado por HANS KELSEN, e segundo o qual todas as normas jurídicas inferiores têm na Constituição sua raiz axiológica, dela, pois, não podendo se afastar, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade.

Não é demais afirmar, pois, que a emenda constitucional ora promulgada restaurou, mutatis mutandis, a redação utilizada pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969. Assim o fazendo, o Congresso Nacional acabou por ampliar o campo de atuação do STF no tocante ao julgamento dos recursos extraordinários, situação que refletirá sobremaneira no quantitativo de processos, ainda que se considere outra inovação da EC 45/2004: o critério da "repercussão geral", segundo o qual o recorrente deverá demonstrar que as questões constitucionais agitadas no recurso são se limitam à sua órbita privada, mas, pelo contrário, são úteis à preservação da "inteireza constitucional".

NOTAS

  1. Recurso extraordinário e recurso especial. 6. ed. São Paulo: RT, 1999, pág. 183.
  2. A definição de lei é de CLÓVIS BEVILÁQUA (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, obs. 1 ao art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Civil).
  3. Ob. cit., pág. 188.
  4. O Supremo Tribunal Federal em face da Nova Constituição – Questões e perspectivas, pág. 7.
  5. RT 654/14.
  6. Art. cit., pág. 8.
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Sobre o autor
Flávio Corrêa Tibúrcio

Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Oeste de Minas em 2000. Laureado com o prêmio “Professor Hélio Lopes Ribeiro”, pela obtenção do 1º lugar geral no curso de Direito. Ex-membro das Comissões de Ensino Jurídico, Direito Desportivo e Direito Empresarial da OAB/GO. Membro-fundador do Instituto de Direito Societário de Goiás (IDSG). Pós-graduado em Direito Civil pela Universidade Federal de Goiás. LLM em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Advogado sócio do escritório Tibúrcio Advogados, em Goiânia/GO e Brasília/DF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TIBÚRCIO, Flávio Corrêa. A reforma do Judiciário e o novo Recurso Extraordinário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 541, 30 dez. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6137. Acesso em: 19 dez. 2024.

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