4. A incorporação do princípio do nemo tenetur se detegere no direito brasileiro
O inciso LXIII do art. 5˚ da Constituição Federal assegura o direito ao preso de permanecer calado. (32) Entretanto, uma exegese puramente literal poderia levar-nos a crer que somente ao preso seria resguardado tal direito, ou seja, ao acusado que estivesse mantido em privação de liberdade. Atualmente tal entendimento foi suplantado, conforme veremos um pouco mais adiante.
De toda forma, a Legislação brasileira ratificou alguns tratados internacionais que asseguram expressamente o preceito do nemo tenetur se detegere direcionado não só ao acusado mantido em privação de liberdade, mas aquele sob processo de acusação que responde em liberdade.
O princípio da não auto-incriminação assegurado aos acusados em processo penal foi expressamente ratificado somente no ano de 1992, através dos Decretos n. 592, de 6 de julho, e n. 676, de 6 de novembro, que convalidaram o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): (33) "Toda pessoa tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada". (34)
Surge, entretanto, a controvérsia sobre a hierarquia dos tratados internacionais que asseguram direitos fundamentais na legislação pátria, girando em torno da interpretação do art. 5˚, § 2˚ da Constituição Federal. (35)
As posições doutrinárias são as mais variadas, entretanto, a discussão foi atropelada pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, predominando o entendimento de que os tratados e convenções internacionais, ao serem incorporados ao direito nacional, têm hierarquia de lei ordinária e não de normas constitucionais, nem supranacionais. (36)
Confirmam a tese do Supremo Tribunal Federal Manoel Gonçalves Ferreira Filho (37), Celso Ribeiro Bastos (38), Zeno Velloso (39) e Clèmerson Clève (40).
Por outro lado, José Afonso da Silva (41) entende que em razão do art. 5˚, § 2.˚ da Constituição Federal, as normas de tratados internacionais que versam sobre direitos fundamentais, incorporadas, são direitos constitucionais. [42] Esta é a posição à qual nos filiamos, assentada na mais abalizada doutrina (43):
"A especificidade e o caráter especial dos tratados de proteção internacional dos direitos humanos encontram-se, com efeito, reconhecidos e sancionados pela Constituição Brasileira de 1988: se, para os tratados internacionais em geral, se tem exigido a intermediação do Poder Legislativo de ato com força de lei de modo a outorgar a suas disposições vigência ou obrigatoriedade no plano do ordenamento jurídico interno, distintamente no caso dos tratados de proteção dos direitos humanos em que o Brasil é parte os direitos neles garantidos passam, consoante os artigos 5 (2) e 5 (1) da Constituição Brasileira de 1988, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano do ordenamento jurídico interno". (44)
Nesse passo, mesmo que a Constituição mencione exclusivamente "preso", os tratados e as convenções internacionais que tratam sobre direitos fundamentais têm valor hierárquico constitucional quando ratificados pelo Brasil e, segundo vimos, garantem ao acusado, estando preso ou não, o nemo tenetur se detegere, conforme Decretos mencionados linhas mais acima.
Por outro lado, admitindo-se a tese contrária defendida pelo Supremo Tribunal Federal de que os tratados têm força hierárquica similar à lei ordinária, não há que se admitir somente ao acusado que se encontre recolhido em prisão, conforme elucida o texto expresso da Constituição, pois segundo entendimento doutrinário (45) e jurisprudencial, o simples fato de estar se imputando alguma acusação que possa culminar no jus puniendi estatal assegura-se o direito ao silêncio. Portanto, mesmo que os tratados ou convênios internacionais integrem o ordenamento jurídico brasileiro como lei ordinária, o entendimento perfilado em torno ao texto constitucional, assegura uma hermenêutica homogênea entre ambas legislações. Não estando, portanto, derrogados os textos internacionais ratificados pelo Brasil.
"É o que tem declarado, em diversas assentadas, o Supremo Tribunal Federal, pois não se pode obrigar o acusados, suspeitos ou testemunhas a fornecerem base probatória para caracterizar sua própria culpa (STF, HC 77.135/SP, rel. Min. Ilmar Galvão, j. 8-9-1998, Informativo STF, n. 122; HC 75.527, rel. Min. Moreira Alves, j. 17-6-1997; HC 68.929, rel. Min. Celso de Mello, j. 22-10-1991).
Como decorrência do direito de permanecer calado, o privilégio contra a auto-incriminação traduz o direito público subjetivo, assegurado a qualquer indiciado, imputado ou testemunha. A jurisprudência do Pretório Excelso (STF, HC 75.244-8/DF, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 26-4-1999) e a doutrina (Antonio Magalhães Gomes Filho, Direito à prova no processo penal, p. 113; Antonio Scarance Fernandes, Processo penal constitucional, p. 262) entendem que, embora o inciso LXIII do art. 5. ˚ fale em preso, a exegese do preceito constitucional deve ser no sentido de que a garantia alcança toda e qualquer pessoa, pois, diante da presunção de inocência, que também constitui garantia fundamental do cidadão, a prova da culpabilidade incumbe exclusivamente à acusação, por assim reiterar as nossas anotações ao inciso LV desse art. 5.˚ ". (46)
Ademais, o direito de não produzir provas contra si mesmo não pode exclusivamente ser extraído do inciso LXIII do art. 5˚ da Constituição Federal, mas de todo um conjunto de princípios que asseguram a vasta amplitude do direito à plena defesa do indivíduo. Dentro do espectro dos direitos e garantias fundamentais há um conjunto orgânico que permite extrair diversos preceitos assecuratórios à defesa que devem ser analisados em consonância, destacando-se entre estes o princípio da ampla defesa, do devido processo legal, da inviolabilidade da intimidade, do domicílio e das comunicações, da presunção de inocência, do direito ao silêncio e da vedação de utilização de provas ilícitas, todos elencados implícita ou expressamente nos diversos incisos do mencionado artigo constitucional. (47)
5. Legislação, doutrina e jurisprudência acerca do tema
O direito a não produzir provas contra si mesmo ganhou contornos bem definidos no direito processual penal brasileiro, inclusive com a entrada em vigor da Constituição de 1988. O Código de Processo Penal em seu artigo 186, objeto de modificação recente, resguarda o direito ao silêncio, mas por outro lado, admitia que tal silêncio poderia ser imputado em desfavor do réu. Era a chamada presunção de culpabilidade em razão do silêncio, inserida na parte final do dispositivo, que só veio a ser derrogada a partir do texto Constitucional, assegurando que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". (48)
O final do dispositivo citado veio a ser formalmente modificado com a entrada em vigor da Lei n˚ 10.792, de 1 de dezembro de 2003, alterando sua parte final, a qual passou a ser redigida da seguinte forma: "O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa".
Entretanto, antes mesmo de quaisquer modificações no texto processual, a doutrina majoritária já admitia o direito ao silêncio, e conseqüentemente, a não obrigatoriedade de produzir provas contra si mesmo, não induzindo, após a Constituição de 1988, o desfavor em razão deste silêncio. As linhas de Tourinho Filho ilustram tal entendimento:
"É verdade que no atual CPP o interrogatório do réu foi posto no capítulo da prova e, assim, seu silêncio pode ser interpretado em seu desfavor. Mas, não se deve olvidar que, inobstante tal posição topográfica, defesa e acusação não podem intervir no interrogatório. Essa proibição não advém daquela circunstância de se considerar o interrogatório meio de defesa. Sendo-o, evidente que o réu pode preferir calar-se. E se o Juiz tirar ilações desse silêncio, contrárias ao réu, certamente ele estará neutralizando a defesa, cerceando-a grosseiramente. Por isso mesmo, na Alemanha, o interrogatório do réu (Vernehmung des Beschuldigten) é o exercício de sua defesa material, é essencialmente um ato de natureza defensiva e não meio de prova". (49)
No mesmo sentido a doutrina de Ada Pellegrini Grinover (50), que ao ratificar o entendimento esboçado, inclui, ainda, o direito de mentir como resguardo da prerrogativa constitucional de defesa:
"O réu, sujeito da defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem. Pode calar-se ou até mesmo mentir. Ainda que se quisesse ver no interrogatório um meio de prova, só seria em sentido meramente eventual, em face da faculdade dada ao acusado de não responder. A autoridade judiciária não pode dispor do réu como meio de prova, diversamente do que ocorre com as testemunhas; deve respeitar sua liberdade, no sentido de defender-se como entender melhor, falando ou calando-se, e ainda advertindo-o da faculdade de não responder". (...) "o único arbítrio há de ser sua consciência, cuja liberdade há de ser garantida em um dos momentos mais dramáticos para a vida de um homem e mais delicado para a tutela de sua dignidade". (51)
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal posicionando-se sobre a matéria formaliza a importância do direito de permanecer calado, inclusive destacando que a ausência da informação deste direito ao acusado, no momento inquisitivo, gera a nulidade de todo o procedimento adotado (52). É, portanto, imprescindível a garantia constitucional do direito ao silêncio, não só materialmente, assim como formalmente. É o que a doutrina denomina do dever de instrução do direito ao silêncio, de caráter prioritário para o ordenamento jurídico, como enfatiza Theodomiro Dias Neto, pois não se pode pressupor o conhecimento do direito nesses casos, afastando inclusive a regra do art. 3˚ da Lei de Introdução do Código Civil. (53) ("Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece). Esta é a posição de nossa Corte Superior:
"informação do direito ao silêncio (Const., art. 5˚, LXIII): relevância, momento de exigibilidade, conseqüências da omissão: elisão, no caso, pelo comportamento processual do acusado. I. O direito à informação da faculdade de manter-se silente ganhou dignidade constitucional, porque instrumento insubstituível da eficácia real da vestuta garantia contra a auto-incriminação que a persistência planetária dos abusos policiais não deixa perder atualidade. II. Em princípio, ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas. III. Mas, em matéria de direito ao silêncio e à informação oportuna dele, a apuração do gravame há de fazer-se a partir do comportamento do réu e da orientação de sua defesa no processo: o direito à informação oportuna da faculdade de permanecer calado visa assegurar ao acusado a livre opção entre o silêncio – que faz recair sobre a acusação todo o ônus da prova do crime e de sua responsabilidade – e a intervenção ativa, quando oferece versão dos fatos e se propõe a prová-la: a opção pela intervenção ativa implica abdicação do direito a manter-se calado e das conseqüências da falta de informação oportuna a respeito". (54)
Consubstanciando o que vimos expondo no decorrer do trabalho, recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal resguardou o direito ao silêncio não só ao formalmente indiciado em inquérito policial, ou mesmo ao acusado em processo penal, mas desde o momento em que o Estado, através de suas funções Executiva, Legislativa e Judiciária, manifestar o jus puniendi, ou poder-dever de punir, fazendo surgir ao cidadão o direito de não se auto-incriminar, não estando este, portanto, obrigado a produzir provas contra si mesmo.
"EMENTA: comissão parlamentar de inquérito – privilégio contra a auto-incriminação – direito que assiste a qualquer indiciado ou testemunha – impossibilidade de o poder público impor medidas restritivas a quem exerce, regularmente, essa prerrogativa – pedido de habeas corpus deferido.
O privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito – traduz direito público subjetivo assegurado a qualquer pessoa, que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos do Poder Legislativo, do Poder Executivo ou do Poder Judiciário.
O exercício do direito de permanecer em silêncio não autoriza os órgãos estatais a dispensarem qualquer tratamento que implique restrição à esfera jurídica daquele que regularmente invocou essa prerrogativa fundamental. Precedentes.
O direito ao silêncio – enquanto poder jurídico reconhecido a qualquer pessoa relativa a perguntas cujas respostas possam incriminá-la (nemo tenetur se detegere) – impede, quando concretamente exercido, que aquele que o invocou venha, por tal específica razão, a ser preso, ou ameaçado de prisão, pelos agentes ou pelas autoridades do Estado.
Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado.
O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário. (...) (55).
No mesmo sentido, no Habeas Corpus 79244/DF o Supremo Tribunal Federal resguardou a garantia contra a auto-incriminação nas investigações das Comissões Parlamentares de Inquérito, ressaltando-se que, em linha de princípio, é irrecusável a prerrogativa ao investigado do direito de não se auto-inculpar. Esse foi o voto do Ministro Sepúlveda Pertence adotando doutrinariamente a clássica literatura de Nelson S. Sampaio. (56)
6. Conclusão
O direito ao silêncio, instituto consagrado por nosso texto constitucional, dogmaticamente formulado no inciso LXIII do art. 5˚ da Constituição Federal, constitui-se na prerrogativa reservada ao indiciado ou acusado em não colaborar com o Estado em sua persecução penal. Portanto, o cidadão não deve ser coagido a colaborar com sua própria incriminação, sendo arbitrária a conduta do Estado em exigir que o cidadão forneça as bases probatórias da conduta delituosa. Constitui-se como princípio fundamental advindo do rol da primeira geração, segundo a clássica lição de Canotillho (57), ou seja, integrando os preceitos que impedem o agir Estatal em prol da preservação dos direitos individuais, construído fundamentalmente na postura anti-ética de se exigir que o cidadão sofra o infortúnio de corroborar com seu próprio castigo.