3. PARTICIPAÇÃO DO DIREITO PROCESSUAL NO CONTEXTO DO DANO MORAL COLETIVO
Estamos hoje num cenário de franca mutação no modo de encarar o relacionamento entre o direito processual e o direito material. Exaurem-se as visões que tendem a hipervalorizar um ou outro isoladamente, apresentando um vulto cada vez maior a visão que reconhece o íntimo relacionamento que entre eles existe. É o que nos mostra CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO:
"Direito e processo constituem dois planos verdadeiramente distintos do ordenamento jurídico, mas estão unidos pela unidade dos escopos sociais e políticos, o que conduz à relativização desse binômio direito processo (substance-procedure). Essa é uma colocação acentuadamente instrumentalista, porque postula a visão do processo, interpretação de suas normas e solução empírica dos seus problemas, à luz do direito material e dos valores que lhe estão à base..." 55
Essa novel mentalidade é que justifica e até mesmo impõe a existência desta parte do trabalho – este ficaria indubitavelmente incompleto se deixasse de apreciar o arcabouço processual de que se pode servir a coletividade quando se vê ferida em seus valores, em sua moralidade.
O instrumento processual que se presta por excelência à defesa dos valores coletivos em geral, na hipótese de dano, é a ação civil pública, em virtude da regra aberta acolhida pelo artigo 1º, IV, da Lei 7.347/85, diploma sobre o qual, aliás, muito se tem escrito 56, o que nos dispensa de uma averiguação mais profunda a seu respeito; cingir-nos-emos, assim, a tecer algumas considerações sobre a legitimação ativa.
Acreditamos que seria fundamental que se acrescentasse o cidadão ao rol do artigo 5º do diploma legal em tela, na hipótese de dano ambiental. Como já tivemos a oportunidade de expor em trabalho recentemente publicado sobre o assunto, as razões são várias:
"A uma, estimular-se-ia a propositura de ações civis públicas.
A duas, o cidadão sentir-se-ia mais responsável pelo meio que o cerca, zelando pela defesa do patrimônio ecológico e policiando os atos dos demais.
A três, possibilitar-se-ia uma prestação jurisdicional mais rápida e efetiva, principalmente em locais em que se não faça sentir a presença do Ministério Público ou de associação que preencha os requisitos legais.
A quatro, estar-se-ia levando em consideração o fato de que, mesmo não podendo ter, tecnicamente falando, legitimação ordinária, já que se trata de interesses coletivos ou difusos, o cidadão pertence à comunidade (indeterminada, ou indeterminável) deles detentora.
A cinco, fortalecer-se-ia no brasileiro, o esírito coletivo, ainda tão frágil. Nesse particular, a ação civil pública atuaria como poderoso instrumento de superação do individualismo, tão arraigado em nosso caráter, permitindo-nos pensar um pouco mais no todo, no coletivo.
A seis, estar-se-ia reconhecendo, oficialmente, a analogia entre a ação civil pública e a ação popular, fechando-se o ciclo de proteção ao meio ambiente. Ora, o cidadão individualmente considerado pode litigar, e.g., com um poluidor para defender um interesse próprio e legítimo, por meio de ação de indenização, ou para aquele recompor os danos causados ao meio ambiente, através da ação popular, que, contudo, não se presta à plena defesa ambiental, sendo somente viável nas hipóteses de agressões por atividades dependentes de autorizações, para o seu exercício, do Poder Público. (...)" 57 58
Ademais, deve-se asseverar que a determinação da legitimação ativa, na prática, há de ser feita com muita cautela, a fim de que a ação civil pública logre êxito. Assim, v.g., no caso de insulto à bandeira estadual paulista, o legitimado para a propositura da ação será o Estado de São Paulo, através de sua Procuradoria Geral 59; na hipótese de ataque à honra da comunidade negra de uma certa localidade, legitimados serão o Ministério Público e eventual associação que preencha os requisitos do artigo 5º, I e II, da Lei 7.347/85.
Outro instrumento processual que deve ser mencionado é a ação popular, a respeito da qual também há farta bibliografia. 60 A medida de sua importância prática no campo em estudo é dada pela ilustre jurista ADA PELLEGRINI GRINOVER:
"Lembre-se, v.g., a ação popular intentada contra a construção do aeroporto internacional de São Paulo, para proteger as matas de Caucaia; contra o aterro parcial da lagoa Rodrigo de Freitas, para proteger a paisagem; contra o aeroporto de Brasília, por questões estéticas; contra a demolição do Colégio Caetano de Campos, em São Paulo, para preservar seu valor histórico e artístico; contra o plano de esgotos "Sanegran", em São Paulo, para preservar o meio ambiente e a saúde pública; contra a instalação de quiosques e toldos visando a atividades comerciais, em praça pública da estância hidromineral de Águas de Lindóia; contra a construção de prédios de apartamentos em uma praia de Itanhaém, no litoral de São Paulo etc". 61
A pertinência da ação popular no campo do dano moral coletivo é assaz reforçada pelo saudoso HELY LOPES MEIRELLES:
"Embora os casos mais freqüentes de lesão se refiram ao dano pecuniário, a lesividade a que alude o texto constitucional tanto abrange o patrimônio material quanto o moral, o estético, o espiritual, o histórico. Na verdade, tanto é lesiva ao patrimônio público a alienação de um imóvel por preço vil, realizada por favoritismo, quanto a destruição de um recanto ou de objetos sem valor econômico, mas de alto valor histórico, cultural, ecológico ou artístico para a coletividade local". 62
Dignas de elogio são as normas constantes dos artigos 3º, 11 e 13 da Lei 7.347/85, por força dos quais, respectivamente, a ação civil pública poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer; na ação que tenha por objeto obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica, ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor; havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais, de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade. 63 Aliás, a imposição judicial de fazer ou não fazer "é mais racional que a condenação pecuniária, porque, na maioria dos casos, o interesse público é mais o de obstar à agressão ao meio ambiente ou obter a reparação direta e in specie do dano que receber qualquer quantia em dinheiro para sua recomposição, mesmo porque quase sempre a consumação da lesão ambiental é irreparável, como ocorre no desmatamento de uma floresta natural,na destruição de um bem histórico, artístico ou paisagístico, assim como no envenenamento de um manancial, com a mortandade da fauna aquática". 64
Em havendo condenação em dinheiro, deve aplicar-se, indubitavelmente, a técnica do valor de desestímulo, a fim de que se evitem novas violações aos valores coletivos, a exemplo do que se dá em tema de dano moral individual; em outras palavras, o montante da condenação deve ter dupla função: compensatória para a coletividade e punitiva para o ofensor; para tanto, há que se obedecer, na fixação do quantum debeatur, a determinados critérios de razoabilidade elencados pela doutrina (para o dano moral individual, mas perfeitamente aplicáveis ao coletivo), como, v.g., a gravidade da lesão, a situação econômica do agente e as circunstâncias do fato. 65
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vem a teoria da responsabilidade civil dando passos decisivos rumo a uma coerente e indispensável coletivização. Substituindo, em seu centro, o conceito de ato ilícito pelo de dano injusto, tem ampliado seu raio de incidência, conquistando novos e importantes campos, dentro de um contexto de renovação global por que passa toda a ciência do Direito, cansada de vetustas concepções e teorias.
É nesse processo de ampliação de seus horizontes que a responsabilidade civil encampa o dano moral coletivo, aumentando as perspectivas de criação e consolidação da uma ordem jurídica mais justa e eficaz.
Conceituado como a injusta lesão da esfera moral de uma dada comunidade, o dano moral coletivo é produto de ação que toma de assalto a própria cultura, em sua faceta imaterial. Diante, pois, da evidente gravidade que o dano moral coletivo encerra, exsurge a necessidade de sua efetiva coibição, para a qual está o ordenamento jurídico brasileiro relativamente bem equipado, contando com os valiosíssimos préstimos da ação civil pública e da ação popular, instrumentos afinados da orquestra regida pela avançada Carta Magna de 1988.
Seja protegendo as esferas psíquicas e moral da personalidade, seja defendendo a moralidade pública, a teoria do dano moral, em ambas as dimensões (individual e coletiva), tem prestado e prestará sempre inestimáveis serviços ao que há de mais sagrado no mundo: o próprio homem, fonte de todos os valores.
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