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A possibilidade de intervenção judicial no poder disciplinar do empregador

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A Doutrina há muito busca justificar a possibilidade da intervenção judicial para interferir na qualidade e gradação das penalidades impostas pelo empregador ao empregado, no caso do cometimento de falta comissiva ou omissiva.

Porém, a jurisprudência majoritária permanece inalterável, no sentido de ser inviável a interferência estatal no dirigismo empresarial, alterando o tipo da penalidade ou sua dosagem, apesar de admitir a anulação da punição, sob as conseqüências de estar se usurpando do empregador o seu poder diretivo, garantido pela norma do artigo 3º da CLT e pelo princípio da livre iniciativa, consagrado nos artigos 1º, IV e 170, caput, da Constituição Federal de 1988.

36003704 – FALTA GRAVE – DESPROPORCIONALIDADE DA PUNIÇÃO – CASSAÇÃO JUDICIAL – A aplicação da justa causa, enquanto penalidade máxima imposta ao trabalhador, vincula-se à caracterização dos seguintes elementos. atualidade, proporcionalidade, e que o fato imputado ao empregado seja determinante da rescisão contratual, e que não tenha sido objeto de outra punição (Evaristo de Moraes Filho). A gravidade da falta, em relação ao empregado, deve ser avaliada, considerando-se as condições pessoais do agente e outras circunstâncias concretas de tempo, meio, costumes (Délio Maranhão). Uma única irregularidade de procedimento funcional praticada por funcionário admitido aos quadros do Banco do Brasil, mediante concurso público, com quase duas décadas de serviços prestados à instituição, sem notícia de qualquer outra conduta desabonadora, não autoriza a demissão por justa causa, ficando caracterizado o excesso de rigor no exercício do poder disciplinar.

130011608 – RECURSO DE REVISTA – ATESTADO MÉDICO FALSIFICADO – JUSTA CAUSA – ATO DE IMPROBIDADE – CONFIGURAÇÃO – O empregado que entrega atestado médico falsificado comete, na esfera trabalhista, ato de improbidade (CLT, art. 482, "a"), e pratica, no âmbito penal, o crime de uso de documento falso (CP, art. 304). Contrariamente ao entendimento adotado pelo Tribunal Regional, salvo no que se refere ao controle de legalidade de atos abusivos, não cabe à Justiça do Trabalho dosar a pena aplicada ao empregado, porque isso significa indevida intromissão no poder diretivo e disciplinar do empregador. Praticar o crime de uso de documento falso, não é suscetível de ensejar, tão-somente, a pena de advertência, como posto na decisão recorrida. Recurso de Revista conhecido e provido. (TST – RR 476346 – 5ª T. – Rel. Min. Conv. Walmir Oliveira da Costa – DJU 25.10.2002) JCLT.482 JCLT.482.A JCLT.482.A JCP.304

Autores diversos admitem ser possível a interferência judicial na qualificação ou dosagem da pena, por também serem princípios constitucionais os valores sociais do trabalho, e a função social da propriedade privada, e fundamentos do Estado Democrático de Direito. De tal forma, o processo de constante modificação das relações laborais direciona-se a uma democratização das relações entre empregado e empregador, contando o empregado com participação ativa na organização e administração da empresa, buscando assim concretizar a efetiva função social da propriedade dos meios de produção pelo empregador, democratizando a relação de emprego.

A concepção do direito disciplinar como potestade do empregador, já não possui a mesma relevância que outrora tinha no liberalismo clássico. A participação dos empregados na atuação empresarial foi garantida pela Constituição Federal de 1988. As causas de dispensa fundada foram tipificadas (apesar de conter conceitos jurídicos indeterminados em seus tipos), sendo admissível à anulação da referida dispensa pela não observância dos requisitos objetivos, subjetivos e "circunstanciais" [1] (nexo causal, adequação da penalidade à falta praticada, proporcionalidade, imediaticidade da punição, ausência de perdão tácito, singularidade da punição, inalteração da punição, ausência de discriminação, caráter pedagógico, gradação das penalidades). Foi garantida a eleição de representante dos empregados para atuar junto aos órgãos, conselhos e diretoria do empregador e foram criadas comissões intra - empresariais de empregados, que representam a categoria no âmbito da empresa - empregadora.

Sussekind, defende a tese da possibilidade de intervenção Estatal na dosagem da pena, ao sublinhar que "fundando-se no contrato a faculdade do empregador de punir, disciplinarmente, o empregado, não pode furtar-se ao controle judicial." [2]

Já se invocava por analogia o disposto no artigo 924 do Código Civil de 1916 como meio legal de interferência Estatal na punição aplicada ao empregado pelo empregador, ao dispor o referido artigo que o juiz poderia reduzir proporcionalmente a pena quando cumprida em parte a obrigação ajustada.

Críticas a esta linha interpretativa foram formuladas, pois tendo o contrato presunção de continuidade, como seria feita a gradação da proporcionalidade entre a redução da falta e a aferição da parcela da obrigação já cumprida? Levaria-se em conta quanto tempo já se passou? Nos casos dos contratos a prazo determinado seria mais facilmente averiguável tal proporcionalidade tendo em vista o momento de aplicação da penalidade e o lapso restante para o termo final do contrato, por exemplo.

Com o advento da Lei 10.406/2002, surgiu nova norma, que se adequa a analise in casu.

Dispõe o artigo 413 da lei 10.406/2002:

Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio.

A norma contida na primeira parte do artigo supracitado, limita-se a transcrever o conteúdo do artigo 924 da Lei 3.071/16. A novidade surge no tocante a parte final do citado artigo.

Ao prescrever ser dever do magistrado, reduzir eqüitativamente a penalidade, quando for manifestamente excessiva, tendo em vista a natureza e finalidade do negócio, abriu a possibilidade de alteração/dosagem/regulação judicial das penalidades impostas ao empregado, no caso de cometimento de falta comissiva ou omissiva.

É assente na doutrina que as penalidades impostas ao empregado, pelo cometimento de infração contratual, constituem cláusulas penais. Que apesar de não haver tipificação, são admitidas como penalizações a advertência ou admoestação (verbal ou escrita), a suspensão e a dispensa por justo motivo. A pena de multa em regra não é admitida, sendo apenas possível a sua aplicação no âmbito do contrato do atleta profissional. As penas que possuam caráter vexatório, humilhante ou discriminatório, em qualquer grau ou intensidade, são vedadas, sendo possível a reparação por danos morais e matérias ao empregado, além de poder pleitear este a rescisão indireta (art. 483 CLT) [3]. Em sendo assim, e, por estar na ratio da norma supra transcrita a manutenção da proporcionalidade entre lesão e reparação, não há óbice algum a aplicação do referido preceito normativo nas relações de trabalho.

Levar em consideração a natureza e a finalidade do negócio, ressalta mais ainda a possibilidade de dosagem da pena pelo Judiciário, pois, v.g, ocorrendo ilícito contratual, não tão grave que pudesse causar o rompimento do contrato de emprego, e sendo esta penalidade imposta, seria possível a manutenção da relação empregatícia, inequivocamente em virtude da sua natureza continuada, eminentemente social e pela manutenção de sua finalidade produtiva, alterando a pena aplicada, ou modificando a qualificação do tipo de terminação do contrato de emprego, de rompimento por justa causa para dispensa. Da mesma forma seria admissível a diminuição do prazo de uma suspensão imposta, ou, inclusive a redução de uma multa.

Carlos Roberto Gonçalves, disserta que a norma impôs ao juiz o dever de reprimir abusos, se a penalidade aplicada for manifestamente excessiva, desproporcional à natureza e à finalidade do negócio. Continua sua lição, aduzindo que "a disposição é de ordem pública, podendo a redução ser determinada de ofício pelo magistrado, devendo ser considerada a boa – fé do devedor e a vantagem auferida pelo credor" [4], diferente do artigo 924 do Código Civil de 1916, onde encerrava mera faculdade do magistrado.

Correntes jurisprudenciais vanguardistas, já admitiam a dosagem da pena aplicada, conforme o julgamento de lavra de Valentin Carrion:

" Suspensão disciplinar. Dosagem da pena. Respeita-se o princípio de que a sentença não deve regular quantitativamente a sanção imposta. Conduta do empregado intoleravelmente desidiosa em serviço público relevante (ambulância) que, por ser a primeira, não autoriza longo corte de salários. Tal situação de perplexidade permite ao Tribunal distinguir, os componentes naturais, da suspensão aplicada: manter o efeito disciplinar (a mácula funcional na fé-de-ofício do empregado), inevitável pela falta cometida e, de outro lado, cancelar-se o aspecto econômico da sanção. Leva-se em consideração, assim, o caráter alimentar do salário, elevadamente atingido e que privou o trabalhador e sua família da metade de seu ganho mensal.

Dessa forma atende-se ao interesse do serviço público, sem olvidar-se as necessidades de subsistência do servidor. Reforma-se parcialmente a sentença que havia julgado a ação procedente ( TRT/SP, RO 13.725/85, Valentin Carrion, Ac. 18.320/86)

Destarte, há compatibilidade plena entre a norma contida no artigo 413 do Novo Código Civil e sua aplicação no âmbito das relações de emprego. Conforme dispõe o artigo 8º da CLT, sua aplicação se concretiza por haver omissão na legislação trabalhista e por não ser a norma incompatível com os princípios fundamentais do Direito do Trabalho. Não vislumbra-se tensão ou colisão entre princípios (livre iniciativa e propriedade x valor social do trabalho, função social da propriedade e pleno emprego), mas subsunção aos ideais do Direito do Trabalho, exortando os princípios protetivo (e suas vertentes), da primazia da realidade, da razoabilidade e da proporcionalidade.

A tensão (ou colisão) aparente de princípios que poderia ser invocada, resolve-se pela concordância prática ou ponderação dos valores em jogo (conforme doutrina de Konrad Hesse), relativizando a aplicação do princípio da livre iniciativa e da propriedade privada, preponderando a valorização social do trabalho, a função social da atividade produtiva, a manutenção do emprego e a justiça social.

Ingo Wolfgang Sarlet, tratou a concordância prática (praktische konkordanz) da seguinte forma: "Em rigor, não se trata da atribuição de uma prevalência absoluta de um valor sobre o outro, mas, sim,na tentativa de aplicação simultânea e compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária atenuação de uma delas." Aduz ainda que o próprio Hesse, admite ser a concordância prática um corolário do princípio da proporcionalidade.

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De fato já ocorre uma relativização dos princípios liberais face aos princípios sociais que dirigem a Constituição Federal de 1988, por ser esta fundada na harmonia social destinada a resguardar os direitos sociais [5].

Vale ressaltar que o Estado não pode afastar-se da apreciação de lesão ou ameaça de lesão a direito, em especial quando se trata de lesão a direito fundamental, que é o direito ao emprego (art.7º, I, Constituição Federal de 1988).

Aplicar o artigo 413 do Novo Código Civil, como fundamento legal para dosagem ou alteração das penalidades impostas ao empregado é concretizar a aplicação dos direitos e garantias fundamentais (art.5º, §1º, da Constituição Federal de 1988). Não se trata de excluir ou extinguir o poder diretivo e disciplinar do empregador, mas adequá-lo a dinâmica das relações de trabalho, evitando a aviltação do seu uso.

A manutenção da relação de emprego, hoje, é fator de inclusão social do indivíduo, dirigindo-se com meio de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, Constituição Federal de 1988) e da valorização do trabalho humano (art. 170, Constituição Federal de 1988). Infelizmente, mesmo com as situações precárias que se observam, com a exploração do trabalho escravo, com a falta de garantias e a usual infringência às normas protetivas do trabalhador, a existência de um vínculo empregatício, garante ao trabalhador, em especial o de baixa renda, o status, de "cidadão", perante sua comunidade e seus pares, rege a doutrina do "qualquer emprego melhor que nenhum emprego".

Dentre os meios de manutenção ou preservação desta relação, não se pode excluir a possibilidade de interferência estatal no poder empregatício. O hibridismo de nosso Estado, que paira entre a liberal – democracia e a e estado social – democrático [6], deixou à margem, uma proteção eficaz aos empregados, sob os auspícios do laissez faire, permitindo ao empregador, o uso indiscriminado de suas prerrogativas diretivas e disciplinares.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001;

CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2002;

CATHARINO, José Martins. Compêndio de Direito do Trabalho.São Paulo: Saraiva. 1982;

CD - JURIS SÍNTESE MILLENIUM - MARÇO/ABRIL DE 2003, N.º 41, Repositório autorizado de Jurisprudência do TST, n.º 20/2000;

DWORKIN, Ronald. Levando direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002;

GODINHO DELGADO, Maurício. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2003;

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Obrigações (Parte Geral). São Paulo: Saraiva, 2002;

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.

SUSSEKIND, Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2002;

SUSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. Rio de Janeiro/São Paulo: Renovar, 2001.

Artigos:

Aída Glanz. Os direitos sociais e a moderna teoria da constituição. In: Doutrina em fascículos mensais O Trabalho, n.º 66, 2002, pp 1574 a 1577;

Fraga, Roberto C e Ricardo C. Novo Código Civil e Direito do Trabalho. Algumas Transformações trazidas pelo novo CC são visíveis. O direito do trabalho terá sim, influência delas. In: Doutrina em fascículos mensais O Trabalho, n.º 76, 2002, pp 1834 a 1839;

Sítios acessados:

www.senado.gov.br

www.direitovivo.com.br

www.presidencia.gov.br

www.tst.gov.br

www.direitopublico.com.br

www.otrabalho.com.br

www.ilo.org


NOTAS

1 Godinho Delgado, Maurício. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Ltr, 2003.

2 Sussekind, Arnaldo Lopes e outros. Instituições de Direito do Trabalho, São Paulo: Ltr, 2002. Vol I.

3 30044599 – DANO MORAL – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO – É possível que o dano moral decorra da relação de trabalho, quando o empregador lesar o empregado em sua intimidade, honra e imagem (CF, art. 5º, V e X; CLT, art. 483, "a", "b" e "e"). Punição disciplinar ou pecuniária injusta, que denigra a imagem do empregado, é passível de indenização na esfera trabalhista, uma vez comprovado o caráter danoso do ato patronal. (TST – RR 348045 – 4ª T. – Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho – DJU 04.02.2000 – p. 338) JCLT.483.A JCLT.483.B JCLT.483.E JCF.5.V JCF.5.X

4 Gonçalves, Carlos Roberto. Direito das Obrigações. Parte geral.São Paulo: Saraiva, 2002

5 Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Preâmbulo. Apesar do preâmbulo da Constituição não possuir conteúdo normativo, é inegável seu caráter programático.

6 Sussekind, Arnaldo. Curso de Direito Constitucional do Trabalho. Rio de Janeiro, São Paulo: Renovar, 2001.

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Sobre o autor
Eduardo Henrique Brennand Dornelas Câmara

sócio do Escritório Brennand e Câmara Advogados Associados S/C

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CÂMARA, Eduardo Henrique Brennand Dornelas. A possibilidade de intervenção judicial no poder disciplinar do empregador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 562, 20 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6201. Acesso em: 26 abr. 2024.

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