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Ensaio sobre a natureza jurídica da prescrição no Direito Civil

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27/01/2005 às 00:00
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CAPÍTULO SEGUNDO

EFICÁCIA DA PRESCRIÇÃO NA DOUTRINA

A doutrina majoritária atribui eficácia extintiva à prescrição, quer esta ataque os direitos, as ações ou as pretensões.

Mas outra há que, em contraponto, a ela confere efeito simplesmente neutralizante.

No direito alemão, em que o direito subjetivo põe-se a salvo dos efeitos da prescrição (27), a pretensão (Anspruch), consoante fez ver PLANK (28), não é extinta pela prescrição. Contra a pretensão erige-se, apenas, uma exceção, que tem o escopo de paralisar-lhe a eficácia. O efeito da prescrição consumada, averba CROME (29), implica jamais o aniquilamento da pretensão; a prescrição confere ao sujeito passivo da pretensão um direito, que se traduz em um contra-direito contra aquela pretensão.

De par com o direito teutônico, e concebendo a oposição de prescrição como exceção pura – e que, como tal, não pode intervir para extinguir direitos, senão para neutralizar-lhes a eficácia –, PONTES DE MIRANDA (30) ensina que ela, a prescrição, não atinge, de regra, somente a ação. Atua, igualmente, e especialmente, sobre a pretensão (= direito de exigir uma ação ou omissão). O decurso do prazo faz nascer a exceção de prescrição. A partir deste instante, a pretensão, ou esta e a ação, ficam acobertáveis. Em fazendo uso da exceção, mediante declaração de vontade, o sujeito obrigado acoberta a pretensão, ou esta e a ação. A dívida dita prescrita é a dívida que se expõe a ser encoberta; apenas a oposição da exceção da prescrição é que tem o efeito de encobrir, definitivamente, a eficácia da ação ou da pretensão.

A doutrina de PONTES DE MIRANDA é aceita por SEMY GLANZ (31), que nos dá, em breves palavras, uma síntese da teoria do encobrimento (neutralização) da eficácia da pretensão:

          "Admitindo, porém, que seja a dívida civil, por exemplo, os aluguéis de prédio rústico ou urbano, se não os cobra o credor durante cinco anos, o que ocorre? O art. 178 – § 1º do Código Civil fixa neste prazo a prescrição. Mas como se verifica esta? Se o devedor se nega a pagá-los e apenas seis anos após o autor ingressa para cobrá-los em juízo, o juiz manda citar o devedor, de ofício, não pode deixar de fazê-lo (art. 166 do C. Civil). O réu pode (se quiser) alegar a prescrição. Se o fizer e o juiz aceitar como verificado o fato antes da citação, não será o réu condenado a pagar. Ainda, porém, que passe em julgado esta sentença, que reconheceu a prescrição, se o devedor quiser poderá pagar e o credor poderá validamente dar quitação. Ora, se a prescrição extinguisse o direito de crédito, ficaria extinta a obrigação, vele dizer, o direito subjetivo do credor, que não poderia mais receber. Donde se conclui que a prescrição não extingue o direito. O direito fica indiretamente lesado, pela inércia do credor, pois que o Direito não socorre aos que dormem. Mas, se o direito subjetivo não foi atingido, algo o foi pela prescrição. O direito permanece, mas foi atingida a sua pretensão (isto é, exigibilidade). Mas, se no mesmo exemplo, o devedor, podendo, não alega a prescrição e resolve discutir o mérito, vindo a ser condenado, será coagido até a penhora. Pois não cabe ao juiz, de ofício, conhecer da prescrição e só a defesa indireta (exceção) é que paralisa a eficácia da pretensão. Daí dizer PONTES DE MIRANDA que a eficácia da pretensão fica encoberta. Donde podemos conceituar: Prescrição é o impedimento à pretensão não exercida no prazo legal, ante a exceção substancial argüida pelo réu e aceita judicialmente."

A exceção de prescrição, para PONTES DE MIRANDA, encobre a eficácia da pretensão (e da ação). E, por se constituir em exceção peremptória, o faz para todo o sempre, salvo se há, posteriormente, renúncia pelo obrigado. Mas, em sendo a pretensão o poder, reconhecido e tutelado pelo Direito, de exigir-se uma prestação, seria de indagar-se se a própria substância – a essência mesma – da pretensão não estaria arruinada quando paralisada, ad perpetuum, por uma exceção.

Ora, se a pretensão é faculdade jurídica que se exerce positiva e energicamente, é difícil conceber uma pretensão inerte, neutralizada, ineficaz, e, ainda assim, pretensão. Pretensão ineficaz soa-nos como uma contradição in terminis. A exigibilidade já é a emanação da própria eficácia do direito subjetivo ao qual se liga. Pode-se imaginar, de fato, exceções que neutralizem a eficácia do direito subjetivo, inclusive por atingi-lo na pretensão ou na ação. Mas é difícil, senão impossível, encobrir-se a eficácia do que já é, em si mesmo, pura eficácia. E não se abstrai a operatividade da eficácia, senão aniquilando-a. Como a pretensão é a possibilidade de exigir juridicamente, deflui, logicamente, que uma pretensão, que passa, ad aeternum, à não-operatividade, pela alegação de prescrição, se algo o será, já não será em si pretensão. Se se retira da pretensão aquela possibilidade, dela se amputa um elemento essencial à própria conceituação jurídica. Uma pretensão para sempre desfalcada da possibilidade de tornar-se exigência só pode ser explicada se o emprego da exceção, que lhe é oposta, inutiliza radicalmente aquela potência, conduzindo-a, inexoravelmente, à extinção.

Parece-nos que, se a exceção de prescrição apenas paralisa a eficácia da pretensão (ou da ação), neutralizando a força impositiva (ou, por conseguinte, coercitiva) do direito, não o pode fazer ad aeternum, sob pena de negar a própria essência da exigibilidade (e, por conseqüência, da coercibilidade). Mas, se a exceção é apenas transitória, sacada para neutralizar e repelir a pretensão (ou a ação) no momento do exercício, a segurança das relações jurídicas, e a paz social, que justificam o instituto, estariam absolutamente comprometidas. E assim o estariam porque, se a ação e a pretensão não se extinguem, mas são apenas repelidas, por fato de uma exceção, produzida no processo ou fora dele, nada poderia impedir que, ulteriormente, viesse o titular do direito prescrito a exigi-lo ou acioná-lo.

Daí por que se nos afigura difícil conceber a prescrição como exceção pura e, portanto, destituída de qualquer eficácia extintiva.


CAPÍTULO TERCEIRO

NATUREZA JURÍDICA DA PRESCRIÇÃO NA DOUTRINA

Também não há, na doutrina, consenso quanto à natureza jurídica da prescrição. Sustentam não poucos autores que a prescrição é fato jurídico. Esgotado o prazo previsto em lei, a prescrição opera os seus efeitos, independentemente e até mesmo contra a vontade das partes. Assim pensa JOSÉ PAULO CAVALCANTI (32), para quem a prescrição deve incluir-se entre as figuras que acarretam a perda do direito, como conseqüência de uma atitude objetiva considerada pela lei – a fluência do tempo –, sem qualquer consideração pela determinação da vontade do titular. É neste sentido que se movimenta a inteligência de CLÓVIS (33):

          "A prescrição, para cumprir o seu efeito extintivo ou liberatório, não necessita de outro requisito, senão o decurso do tempo.

          [...]

          A prescrição entra na classe das exceções peremptórias, que excluem a intenção do autor [...]"

Para outros, a prescrição – salvo exceção de lei – não opera pleno jure, devendo o interessado argüí-la. Porque exceção ou defesa, "requer invocada pela pessoa a quem aproveita, e só à solicitação da parte pode o juiz decretá-la" (34).

O simples decurso do prazo, por si só, não tem, conforme ponderam os autores que concebem a prescrição como exceção (35), a virtude de afetar o direito, a ação ou a pretensão; possui, contudo, a potência de conferir, ao obrigado, uma exceção, da qual este se poderá valer, utilmente, se e quando o titular do direito o acionar. A alegação do interessado, é, assim, para essa corrente, nas expressivas palavras de ORLANDO GOMES (36), "um requisito configurativo da prescrição."

Não obstante pareçam claros os disjuntos termos em que se estabelece, doutrinariamente, a natureza jurídica da prescrição – fato ou exceção, excludentemente – a verdade é que os autores, embora sustentem essa ou aquela tese, geralmente terminam, no desenvolvimento do tema, por incidir em contradições (37), ao não atentarem para as conseqüências que logicamente derivam do princípio nuclear ao qual aderiram.

A rigor, se o princípio fundamental, que deve presidir à elaboração teórica do instituto, reside em que a prescrição é fato jurídico – opera sine facto homines –, é de se ter, como decorrências inarredáveis, as seguintes conclusões:

          a) o simples decurso do prazo opera a prescrição, independentemente da declaração de vontade do prescribente;

          b) é prescrito o direito (ou a ação ou a pretensão) não exercido no prazo;

          c) se se considera que é a ação (ou a pretensão) o que prescreve, o direito, que sobrevive – e para não poucos como mera obrigação natural –, não pode ser legitimamente exigido ou acionado; se o obrigado presta, não pode ser compelido a repetir;

          d) o juiz pode decretar a prescrição de ofício, quando a encontrar provada nos autos.

Mas, se se parte de um postulado nuclear oposto, que concebe a prescrição como exceção, as conseqüências são outras, a saber:

          a) o decurso do prazo não extingue, ou acoberta, os direitos, as ações ou as pretensões, senão confere uma exceção ao prescribente;

          b) a prescrição somente se configura se o prescribente, ou alguém legitimado, a declara;

          c) se se considera que é a ação (ou a pretensão) o que prescreve, o direito, que sobrevive, pode ser, a despeito do exaurimento do prazo, ainda assim, legitimamente exigido ou acionado; se o prescribente presta, cumpre uma obrigação perfeita;

          d) o juiz não pode decretar, de ofício, a prescrição, porquanto esta resulta de um ato de vontade.

Para nós – ver-se-á oportunamente –, o decurso do prazo nada extingue ou paralisa; condiciona, contudo, a exigibilidade do direito, que passa a subordinar-se ao poder jurídico, coetaneamente suscitado em prol do obrigado, de resolver a pretensão que lhe é oposta ou oponível. A prescrição, que se passa, exclusivamente, no plano do direito material, não é, apenas, meio de defesa. É negócio jurídico unilateral, receptício de vontade, que se realiza em juízo ou fora dele, e que tem por efeito a extinção da exigibilidade do direito que não fora exercido no prazo fixado em lei.


CAPÍTULO QUARTO

O DIREITO POSITIVO EM FACE DO OBJETO, EFICÁCIA E
NATUREZA JURÍDICA DA PRESCRIÇÃO

1. O objeto e eficácia extintiva da prescrição no sistema positivo de Direito Civil.

O Art. 189 do Código Civil dispõe que, "violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206."

O exame do dispositivo retrotranscrito induz, imediata e inelutavelmente, às seguintes ilações:

          a) A prescrição pressupõe a violação do direito;

          b) a prescrição atinge a pretensão, extinguindo-a;

          c) o simples decurso do prazo produz os efeitos extintivos, sine facto homines.

Essas conclusões são imediatas, mas só prevalecem quando se examina o dispositivo em sua solidão. Uma análise sistemática – ver-se-á – conduz a conclusões que parecem divergir da dicção literal da lei.

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Primeiramente, tenha-se em conta que o que a lei chama pretensão nada mais é que a própria ação de direito material. Não se trata, evidentemente, da pretensão assimilada à exigibilidade pura. Neste passo, o Código, em que pese divergir na terminologia, acompanha as pegadas do anterior. Logrou, apenas, substituir o termo ação, que vinha no anterior, por pretensão, fazendo-o, decerto, para deixar assente que não é a ação processual o que prescreve, mas o poder jurídico de exigir a reparação do subjetivo, se e quando violado. Veja-se, porém, que o termo "pretensão" é inadequado para exprimir o poder de exigir coercitivamente. Pretensão, na acepção civilística do termo, significa o poder jurídico, tutelado pelo direito, de exigir, de outrem, uma ação ou uma abstenção, independentemente da violação do direito. O credor, quando exige, diretamente ao seu devedor, o pagamento de uma promissória no prazo do vencimento, exerce a sua pretensão. Se o devedor não paga, surge a ação de direito material. E é a esta que o Código se refere ao utilizar o vocábulo pretensão.

O Código prestigia, assim, a doutrina que toma a ação (de direito material) – e não o direito – como o elemento jurídico afetado pelo prazo prescricional. Parece sufragar a tese, defendida por BEVILÁQUA e CÂMARA LEAL, segundo a qual o fato de não se exercer o direito não é bastante para subtrair-lhe o vigor, já que a infruição do direito não é incompatível com a conservação das faculdades jurídicas nele contidas; apenas em caso de violação do direito é que se instaura uma situação antijurídica, removível pelo emprego da ação. É o não uso da via defensiva que atrofia e faz perecer a ação – o tegumento protetor – deixando-se intacto, contudo, o direito subjetivo sobre o qual se operou a prescrição.

Esta última inferência é ratificada pelo que dispõe o art. 940: o credor que demanda além o que lhe é efetivamente devido ficará obrigado a pagar ao devedor o equivalente ao que dele exigiu, salvo se houver prescrição. É dizer: ainda que prescrita a dívida, o direito existe, e a ordem jurídica não proíbe que seja demandado. Permanece a faculdade do titular em fazê-lo. Extinguisse a prescrição, mesmo que por via reflexa, o direito, e a solução seria distinta: haveria a necessidade de pagar-se, ao acionado, a parte fulminada pela prescrição.

Mas o Código, ao invés do que poderia fazer crer o art.189, não descarta, em absoluto, a prescritibilidade das pretensões. Para que se chegue a esta conclusão, é suficiente que se examinem as hipóteses do art. 199, nas quais a lei não alude, em absoluto, à violação do direito como pressuposto da prescrição.

Se pende condição suspensiva, ou não está o prazo vencido, a prescrição, obviamente, não pode correr. E o prazo prescricional não escoa porque, em tais hipótese, não há, ainda, a exigibilidade. O direito não é eficaz. Todavia, uma vez exigível a prestação, passa a prescrição a correr naturalmente, sem que, para tanto, precise cogitar a lei, como o fizera no art. 189, em violação a direito subjetivo.

Se a violação do direito fosse, sempre, pressuposto da prescrição, o art. 199 seria, de todo, ocioso, já que o implemento da condição, ou o advento do termo, por si sós, sem o elemento antijurídico, seriam inábeis a induzir à fluência do prazo.

Mas o que o dispositivo citado está a dizer, sem qualquer cogitação a violação de direito (38), é que, no momento em que advém o termo, ou se cumpre a condição, passa a correr o prazo prescricional, se o titular do direito, cumprindo-lhe o ônus de perseguir a prestação – como é a regra, CC, art. 327 –, permanece inerte. E não poderia ser de outra forma. A pensar-se diferente, dar-se-ia vazão a toda sorte de iniqüidades. Alguns exemplos deixarão clara a nossa idéia.

Imagine-se a hipótese do credor de dívida líquida, constante de instrumento, que, para fazer valer o seu direito, tenha de apresentá-lo ao devedor. Mas, vencido o prazo para a apresentação do título, condição sine qua non ao pagamento, o credor queda-se inerte, e permanece inativo por longo tempo. Indaga-se: transcorrido o prazo de cinco anos, seria obstado ao devedor argüir a prescrição, a pretexto de que o direito do credor não teria sido violado? Intui-se que não. Se quem viola o direito se beneficia da prescrição, por que negar o mesmo favor a quem se coloca em uma situação de conformidade com o direito? Nesta hipótese, o que prescreveu foi a pretensão, não a ação. Esta, no exemplo dado, sequer chegou a nascer.

Imagine-se, ainda, que a dívida seja querabile, mas o locador, que deve procurar a prestação no domicílio do devedor, não se incumbe do encargo. Tenha-se em mente, que, como a consignação em pagamento é simples faculdade, e não dever jurídico, não se pode exigir, do locatário, no exemplo que se ora considera, que deposite a prestação. Transposto o triênio, é de se conferir, ao devedor, o poder de repelir a pretensão tardia do credor. Neste caso, sem que se cogite na violação do direito do senhorio, por fato do locatário, prescrição houve, e esta atingiu a exigibilidade.

Parece-nos que o não uso do direito conspira contra a sua preservação se tal direito é daqueles que, para se fazer valer, requer uma atividade do titular em face sujeito obrigado. A inação do titular instaura, aqui, o mesmo estado de insegurança e incerteza resultante da inatividade de quem teve o direito violado, e que deve ser, de igual forma, suplantado pela prescrição. Disse CARPENTER (39), com estilo, e algum acerto, que "a ação é... o próprio direito violado, em atitude enérgica, clamando pela reintegração". Mas não é, como quer o professor do Rio de Janeiro, em hipótese alguma, "o próprio direito não violado, mas exigível, reclamando pela realização". Aqui temos uma definição exata da exigência, que é a materialização da exigibilidade. Ora, não se pode deixar, indefinidamente, ao alvedrio do credor o momento oportuno para exigir. A segurança das relações jurídicas não o admite. Devem-se conceder prazos para que titular do direito exerça a sua exigência. Se não o faz, a pretensão prescreve.

Urge assim que se trace a linha divisória entre a prescrição da ação e a prescrição da pretensão.

Se o direito existe, mas não é exigido, por inércia do titular, a hipótese é a de prescrição da pretensão, correndo esta a partir do momento em que o sujeito ativo podia pedir a prestação.

Se o direito existe, mas não é exercido, porque o obrigado não entregou a prestação, a hipótese é de prescrição da ação e da pretensão que a contém.

Cabe distinguir:

a) Direitos existem que não são atingidos, substancialmente, quando lesados. Permanecem íntegros, apesar de violados. Tal se verifica nas hipóteses em que há uma pretensão a uma prestação positiva. A pretensão, na hipótese, nasce momento em que o titular pode exigi-la. Se e apenas quando o direito é violado, exsurge a ação. A prescrição conta-se do surgimento da pretensão; ou desta e da ação, se nascem juntas.

b) Mas há aqueles cuja violação, sem acarretar a extinção do direito subjetivo, opera-lhe a degradação moral ou econômica. Há, aqui, a pretensão a uma abstenção. Pode ser pessoal, mas, se oponível erga omnes, sói concentrar-se em determinada pessoa, como no caso de turbação ou ameaça de lesão. A pretensão, em um ou noutro caso, dirige-se a um não-fazer, e a ação não espera pela agressão: nasce com a simples ameaça do direito. Se, contudo, o direito é lesado, a pretensão à abstenção, que se extingue, dá lugar à pretensão à reparação, ou a restituição ao status quo ante, nascendo – assim como a ação –, com a lesão. A partir daí, conta-se a prescrição.

c) E há direitos que, por decorrência da simples violação – ou por conta da intensidade, extensão, ou irreversibilidade dos efeitos da violação –, se extinguem. Neste caso, a pretensão se extingue com o direito e, com ele, igualmente, o tegumento protetor. Mas se instaura, em contrapartida, e em momento logicamente sucessivo, relação outra, cujo objeto consiste no pagamento de uma indenização. Constituído o vínculo havido por sub-rogação legal, nascem, coetaneamente, direito, pretensão e ação.

Desde o preciso instante em que o titular do direito pode exigi-lo, exsurge a pretensão. A ação vem posteriormente, se e quando o direito exigível é violado. Ainda que nasçam no mesmo instante cronológico, a pretensão precede, logicamente, à ação. A pretensão é um prius relativamente à ação. De fato, só pode agir quem pode exigir. Estabelecida a precedência lógica da pretensão, o corolário que se impõe é o de que não há ação que não seja amparada por uma pretensão: quem age, exige. Mas a recíproca não é verdadeira. Pode-se exigir sem agir. A pretensão é susceptível, por conseguinte, prescrever sozinha. O poder de exigir um comportamento alheio pode prescrever sem que se cogite em violação de direitos. Mas, se a pretensão contém uma ação, esta com aquela prescreve. A pretensão, que é pressuposto de existência da ação, prescreve, contudo, em um momento logicamente anterior. A ação prescreve ex consequentia.

2. O Código Civil e a natureza jurídica da prescrição.

A ação (pretensão, conforme a terminologia empregada pelo Código) prescreve com o implemento do prazo. É o que afirma o Código, no art. 189.

Contraditoriamente, o Código declara, no art. 194, que o juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se favorecer a incapaz.

Difícil, senão impossível, conciliar ambos os dispositivos.

Em um – art. 189 –, afirma-se que a prescrição opera de pleno direito, sine facto homines ("a pretensão [...] se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts..."). Noutro – art. 194 –, exige-se que a prescrição seja alegada ("o juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição...").

Gritante, pois, a antinomia que se estabelece entre os artigos indicados. Conforme o primeiro dos artigos (art. 189), a prescrição opera ipso juris, pelo tão-fato do transcurso do tempo, o que, por decorrência puramente lógica, tornaria prescindível a argüição em juízo: a prescrição resulta de uma circunstância fática, objetivamente considerada pela lei, independentemente da vontade e do conhecimento das partes. Segundo o outro (art. 194), a mesma prescrição realiza-se não por arte da exaustão do prazo, mas exceptionis ope, não apenas requerendo, mas tornando imprescindível, aquela alegação.

O decurso do prazo, extinguindo a ação, produz a prescrição, proclama o art. 189. O que significa dizer que, verificado o fato, produzem-se os efeitos da prescrição, independentemente de qualquer ato de vontade, por pura decorrência da lei. Se assim o é, pouco importaria, obviamente, para a configuração da prescrição, a declaração do favorecido. A prescrição realiza-se, segundo o artigo invocado, independentemente da vontade do prescribente, e até contra a sua vontade. Opera-se, assim, na consciência das partes, ou fora dela.

Ora, se o implemento do prazo é o fato jurídico, objetivamente considerado pela lei, que extingue a ação (art. 189), não haveria por que se negar ao juiz, garantido o contraditório, o poder de declarar, de ofício, a prescrição, quando esta se encontra provada nos autos. O juiz não agiria de maneira diferente se a hipótese fosse de pagamento, ou de qualquer outro meio extintivo de direitos (40) ou pretensões (41) argüível pela via direta. Se a ação já está extinta por arte do decurso do prazo, e isso se torna evidente, indiscutível, no processo, seria um contra-senso, e mesmo uma iniqüidade, deixar o juiz de decretá-la. Vejamos: consumada a prescrição, pelo decurso do prazo, o titular não mais pode exigir, coercitivamente, a prestação; mas, mesmo assim, o juiz a impõe ao obrigado. O titular do direito subjetivo, que já não tem ação contra o réu, exerce uma poder puramente de fato, com o que o Estado-Juiz submete o réu a uma coação não mais emanante do direito subjetivo e desamparada pelo direito objetivo.

Se se parte do pressuposto de que a prescrição – que é matéria de ordem pública – opera ipso jure, independentemente do querer do prescribente, não se teria por que subordinar a sua decretação à manifestação de uma vontade anódina e inoperante. Contra a argüição de que o juiz não pode declarar a prescrição, porque ela envolve um ato de consciência (42), CARPENTER (43) argumenta, com argúcia, que, "pronunciada ex officio a prescrição, ainda pode o prescribente ou o interessado renunciá-la, dando assim satisfação aos seus escrúpulos de consciência". E se o prescribente não a alega, porque, malgrado evidente a prescrição, pretende provar a ilegitimidade do direito que lhe é pleiteado, a inação judicial implicaria a subordinação da Jurisdição, que visa antes de tudo à ágil solução dos conflitos, e à pacificação social, aos simples escrúpulos de consciência de quem, em assistindo razão, já não mais pode ser, de qualquer forma, constrangido a prestar. A lide permanecerá acesa, e o processo, que poderia ser rápida e convenientemente extinto, desenvolver-se-á, em todas as suas fases e incidentes possíveis, com gastos e dispêndio de energias preciosas, desnecessariamente, para alcançar um mesmo resultado prático. O querer – e mesmo o capricho – do prescribente, em discutir o mérito, por via de defesa, não se concilia, assim, com a seriedade e com o caráter eminentemente público que hoje não apenas se imprime, mas antes consubstancia a atividade jurisdicional.

A vedação à pronúncia ex officio, na prescrição concebida sine facto homines, apresenta-se ainda mais injustificável quando o réu, no dizer de CARPENTER (44), "resiste à demanda com todas as sortes de defesa, ainda as mais pueris, e só não alega a prescrição por erro, ignorância, ou inadvertência". Neste caso, em que não cabe aludir aos "escrúpulos de consciência", restaria ao juiz, ante a resistência do réu, decretar a prescrição já operada ipso juris.

O recusar-se, ao juiz, a decretação, ex officio, da prescrição sine facto homines, conduz, irremediavelmente, a um paradoxo: a prescrição extingue a ação (ou pretensão); mas, se o prescribente não a alega, o titular maneja uma ação (ou pretensão) extinta.

Parasse por aí o legislador, e dúvida não haveria: a prescrição, porque opera de pleno direito ao exaurir-se o prazo assinado pela lei, prescinde da invocação das partes, e pode ser, de ofício, decretada pelo juiz. Mas há o artigo 194, que caminha em sentido diametralmente oposto; ao fazer da alegação uma exigência, e não simples faculdade, nega a lei, paradoxalmente, possa a prescrição realizar-se sine facto homines.

A exigência de argüição, nos termos do recém-citado dispositivo legal, é uma realidade incontestável. O Código, no art. 194, alude ao suprimento da declaração de prescrição pelo juiz. Tal expressão deixa a salvo de qualquer dúvida que, mesmo no caso em que é absolutamente incapaz o prescribente, a argüição da prescrição é imprescindível. Há de ser oposta, sempre, a exceção à ação. Se não se opõe a exceção, a ação prospera. Mas, como prosperar uma ação que, conforme estabeleceu o art. 189, se extinguiu com o prazo? Por que se exigir a declaração de vontade para operar o que o decurso do prazo já exauriu, já o fez completamente?

A imposição de que seja a prescrição suscitada em juízo, e assim necessariamente, só se afina com um embasamento teórico que nega eficácia extintiva ao simples decurso do prazo; o fenômeno prescritivo reclama, aqui, uma postura ativa do prescribente. Mas, vejamos: ou a prescrição opera de pelo direito, e não se faz necessário alegá-la para que ela se configure, ou, ao contrário, a prescrição é produto da vontade, requerendo seja argüida. Se se pensa da derradeira maneira, forçoso será reconhecer que os efeitos da prescrição – sejam estes extintivos ou neutralizantes – só se exaurem se o prescribente, por declaração de vontade, a invoca oportunamente. E a argüição de prescrição terá o efeito constitutivo-negativo se se postula que é a vontade do obrigado, operando por sobre o fator temporal, que extingue a ação. Se, porém, argumenta-se que a argüição de prescrição se insere entre as exceções puras, fica-lhe negado o efeito extintivo; a declaração de prescrição neutraliza a eficácia da ação (ou da pretensão). E, porque concebida, em qualquer dessas vertentes de pensamento, como arma de defesa, para extinguir ou neutralizar a ação, é evidente que o juiz não pode declará-la de ofício, devendo aguardar, sempre, a iniciativa da parte.

Parece, assim, que, nos dispositivos assinalados, o Código civil positivou correntes lógico-doutrinárias não apenas conflitantes, mas entre si excludentes. Como fazer, porém, que habitem no mesmo corpo duas almas, e duas almas antagônicas, que, entre si, disputam não a primazia, mas o domínio sobre o todo?

De tudo o quanto expusemos, apenas uma certeza suscita: segundo a letra do Código, a prescrição atinge a ação, malgrado, implicitamente, admita a prescritibilidade da pretensão. Mas se a prescrição opera ipso juris, ou, do contrário, exceptionis ope; se verdadeiramente extingue ou simplesmente confere uma exceção neutralizante; o Código, por si só, em seus conflitantes termos, não nos permite decidir.

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Sobre o autor
José Paulo Soriano de Souza

advogado da União no Estado da Bahia, ex-procurador do Estado da Bahia, professor de Direito Público da Faculdade de Salvador (FACSAL)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, José Paulo Soriano. Ensaio sobre a natureza jurídica da prescrição no Direito Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 569, 27 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6220. Acesso em: 25 abr. 2024.

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