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Há direito adquirido contra Emenda?

27/01/2005 às 00:00
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Por força da Emenda Constitucional nº 4l, o STF decidiu, administrativamente, dia 05 deste fevereiro, que o teto salarial na área federal será de R$ 19.115,18.

Daí a pergunta? Quem recebe valores acima desse teto, ainda que como vantagem individual, deixará de recebê-los?

Não comporta a mais mínima discussão jurídico/constitucional, o fato de que não existe direito adquirido contra o que estabelece o Constituinte Originário, de 1ª. categoria, ilimitado. Não existe mesmo.

Diferentemente é saber se tal direito existe frente ao que estabelece o chamado Constituinte Derivado, de 2ª. categoria, limitado, ou seja, aquele que altera o ordenamento jurídico através de EMENDAS.

Nesse assunto, é indispensável perquirir se a percepção de estipêndios (vencimentos, remuneração, proventos etc) constitui "cláusula pétrea" e se existe direito adquirido contra Emenda Constitucional.

Há um consenso jurídico de que aquilo que está posto no art. 5º da CF/88 constitui os chamados direitos e garantias individuais e portanto consideram-se "cláusula pétrea", entre os quais estão os estipêndios (vencimentos, remuneração ou proventos de aposentadoria etc).

A grande indagação é a seguinte: há direito adquirido frente à Emenda Constitucional?

É indiscutível, seja na Doutrina ou na Jurisprudência, que não existe direito adquirido contra a Constituição, entendida esta na manifestação do Poder Constituinte Originário, de 1ª. grandeza e ilimitado, o mesmo não se podendo dizer em relação ao Poder Constituinte Derivado, de 2º grau, limitado.

Na Doutrina, predomina que há sim direito adquirido contra Emenda à Constituição (Poder Constituinte Derivado, de 2º grau, limitado), vale dizer, contra o Poder de Reforma, pelas seguintes razões:

a) A Constituição de l988, em seu art.5º, XXXV, assegurou o direito adquirido como uma garantia individual e que a Emenda está sujeita a controle de constitucionalidade;

b) Os direitos e garantias individuais não podem ser abolidos através de emenda (art.60, § 4º, CF/88), ficando clara a impossibilidade do Poder de Reforma (poder constituído, derivado, de 2º grau ou limitado) violar tal preceito, por ser cláusula pétrea, conforme Luiz Alberto Gurgel de Faria (Instituição Toledo de Ensino, in Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Divisão Jurídica, n.27,pg. 9l/l05); Carlos Ayres Britto, hoje Ministro do STF, Valmir Pontes Filho (in Direito Adquirido contra as Emendas Constitucionais, Revista de Direito Administrativo, RJ, Renovar, l995, vol.202;pg;90); Sérgio de Andréa Ferreira (in O princípio da segurança jurídica em face das reformas constitucionais, RJ, Forense, vol.334,p.l98); Manoel Gonçalves Ferreira Filho (in Poder Constituinte, cit.p.25; Alexandre de Morais (in Direito Constitucional,págs. 423/529 e 349/355, editora Atlas); Luiz Roberto Barroso (in Interpretação e Aplicação da Constituição,págs.51/67); Ivo DANTAS (in Direito adquirido, emendas constitucionais e controle de constitucionalidade, RJ, Lumem Juris, l998, p.72); DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, in Direito administrativo, l0.edição, SP,, Atlas, l998, p. 376; Raul Machado Horta (Estudos de direito constitucional, Belo Horizonte: Del Rey, l995, p.282, entre tantos outros e finalmente o Ministro Carlos Mário Velloso, em artigo dedicado ao tema, publicado em Temas de Direito Público, Belo Horizonte, l94,p.448/449 que conclui"..um direito adquirido por força da Constituição, obra do Poder Constituinte originário, há de ser respeitado pela reforma constitucional, produto do Poder Constituinte instituído ou de 2º grau, vez que esse é limitado, explícita e implicitamente pela Constituição".

Antes da atual Constituição, o STF já chegou a admitir não existir direito adquirido contra Emenda entendimento esse que não foi recebido pela novel Constituição: " não há direito adquirido contra texto constitucional, resulte ele do Poder Constituinte Originário ou do Poder Constituinte Derivado "(RE n. 94414 -SP, Rel.Min. Moreira Alves DJU de l9.04.85,pg.05456 e RE n.93290 -RJ, DJU 06.ll.l98l, p.III, 0l, cfe Francisco Antônio Nogueira Bezerra e Rommel Barroso da Frota, in Direito Adquirido e Emenda Constitucional - Revista da OAB-CE n.2, pags.153/175 e Prof. Paulo Modesto (Parecer de fls.539/556, apresentado pelo MPF).

E, já na vigência da atual Constituição, o próprio STF, no julgamento das ADINs 926-5/DF e 939-7/DF, admitiu a possibilidade de existência de normas inseridas na Constituição estarem eivadas do vício de inconstitucionalidade por violar direito adquirido "verbis"

ADIn e Emenda à CF - 1

Prosseguindo no julgamento ação direta acima mencionada, o Tribunal conheceu da ação na parte em que se discute a Emenda Constitucional nº 16/97, que deu nova redação ao § 5º, do art. 14, da CF ("O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente.") em face da jurisprudência do STF no sentido de que só é viável o controle abstrato de constitucionalidade contra emenda à Constituição Federal na hipótese de violação ao § 4º, do art. 60 ("Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - a forma federativa de Estado; II - o voto direto, secreto, universal e periódico; III - a separação dos Poderes; IV - os direitos e garantias individuais."). Precedente citado: ADI 939-DF (RTJ 151/755). ADInMC 1.805-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 26.3.98.

ADIn e Emenda à CF - 2

Em seguida, o Tribunal, por maioria, indeferiu a medida liminar em que se requeria fosse concedida interpretação conforme à Constituição Federal ao mencionado § 5º, do art. 14, da CF, pretendendo a aplicação, aos casos de reeleição para o mesmo cargo, da renúncia do mandato prevista no § 6º do mesmo art. 14, da CF ("Para concorrerem a outros cargos, o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos devem renunciar aos respectivos mandatos até seis meses antes do pleito."). À primeira vista, entendeu-se não ser possível interpretar a CF de modo a criar cláusula restritiva de direitos políticos não prevista, expressamente, no texto constitucional. Considerou-se, ainda, que a tese sustentada pelos autores da ação - ofensa aos princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade, da isonomia e da moralidade na administração (CF, art. 60, § 4º, IV c/c § 2º, do art. 5º) - não possuía a relevância jurídica necessária para justificar a concessão de medida liminar, uma vez que não restou comprovada a ofensa direta a nenhuma das cláusulas pétreas pelo mencionado § 5º, do art. 14, da CF, porquanto não se declara a inconstitucionalidade de ato normativo por violação ao sistema da CF, mas apenas a dispositivo expresso desta. Vencido o Min. Marco Aurélio, que deferia a cautelar por entender que não se poderia emprestar alcance ao § 5º do art. 14, da CF, de modo a que os candidatos à reeleição permanecessem nos seus respectivos cargos sem a necessidade da desincompatibilização, sob pena de conflito com o sistema constitucional em vigor. ADInMC 1.805-DF, rel. Min. Néri da Silveira, 26.3.98.

Portanto, no referido ADIN nº 939-DF, o STF concluiu "verbis":

a) "Uma emenda à Constituição, emanada, portanto, de Constituinte derivado, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional pelo STF, cuja função precípua é a guarda da Constituição (art.l02,I,"a" da CF (...)",cfe RTJ 151/755);

b) "Se na vigência da lei anterior, o servidor preenchera todos os requisitos exigidos, o fato de, na sua vigência, não haver requerido a aposentadoria não o faz perder o seu direito que já estava adquirido (...)", in RMS n. 11.395, in RTJ 48/392.

Resumo: existe sim direito adquirido contra Emenda Constitucional, pelo limite material constante do art.60,IV da CF/88 referente à cláusula pétrea – direitos e garantias individuais c/c art.5º, XXXVI (a lei não prejudicará o direito adquirido, entendido esse em seu sentido amplo), tendo o STF entendido que os direitos individuais são limites (limites formais, materiais e circunstanciais) à emenda e não se restringem aos do art.5º, podendo, neles, estarem inclusos outros, a exemplo dos direitos tributários (ADIN 939-7-DF,Rel. Min.Sydney Sanches e ADIN 829-DF,Rel. Min.Moreira Alves, já referidas).

Após a Constituição cidadã de l988, esse assunto não desperta maior trabalho de interpretação na visão do próprio STF, senão vejamos: Quando o Constituinte Originário, de 1º grau, ilimitado, resolveu pôr um final nos super-salários, dos "marajás", dispondo no art. 17 do ADCT da CF/88 ""Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título". o que fez o STF?

No RE 141788.9-CE, DJU 18.6.93, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, o STF deixou definitivamente esclarecido que as chamadas vantagens pessoais ou individuais estão fora do teto remuneratório, "verbis":

"II - Vencimentos do Ministério Público estadual: teto: imunidade à sua incidência das vantagens de caráter individual, ainda que incorporadas.

Na ADIn 14, de 28.9.89, Célio Borja, RTJ 130/475, o STF - embora sem confundir o campo normativo do art. 37, XI, com o do art. 39, § 1º, da Constituição - extraiu, da inteligência conjugada dos incisos XI e XII do art. 37, a aplicabilidade, para fins de cálculo dos vencimentos sujeitos ao teto, do mesmo critério do art. 39, § 1º, para fins de isonomia, isto é, o de isentar do cotejo as vantagens de caráter individual.

Ora, mesmo quando o Constituinte Originário, de la. categoria, ilimitado, determinou no art. 17 da ADCT da CF/88 que se respeitasse o teto salarial, aquela mais alta Corte Judicante (STF) decidiu que as VANTAGENS PESSOAIS/INDIVIDUAIS poderiam permanecer fora do teto, em respeito à clausula pétrea do direito adquirido, como aceitar esse mesma "ordem" vinda agora do Constituinte Derivado, de 2a.categoria, limitado?

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É preciso se entender, entender mesmo, sem paixão ou preconceitos, que ninguém é simplesmente favorável a que se perceba salários, vencimentos, proventos, estipêndios, etc, em valores acima de um teto que, antes de tudo, é moralizador e bom para a Sociedade. O limite máximo salarial é o ideal, mormente em um País como o Brasil, em que a grande massa brasileira de trabalhadores ganha menos de dois salários mínimos.

Todavia, também é preciso compreender, compreender mesmo, da mesma forma sem paixão e sem preconceito, que não compete ao Poder Judiciário deixar que uma cláusula pétrea, como o direito adquirido, seja eliminada pelo Constituinte Derivado, de 2ª. categoria, limitado, que neste momento está atingindo os ganhos salariais dos servidores porque, amanhã, poderá vir também a eliminar a ampla defesa, o contraditório, considerar lícita provas ilícitas ou obtidas ilicitamente mediante tortura ou outros meios que a própria Imprensa termina também por não aceitar e, quem sabe, até chegar ao ponto de abolir os direitos à saúde, à liberdade de imprensa, a liberdade individual e à própria vida. É aí?

O Poder Judiciário não pode ser comprometido com planos econômicos de nenhum Governo. Não o foi com o de Fernando Collor de Melo. Não o foi com o de Fernando Henrique Cardoso e não deverá sê-lo com o atual nem com os futuros. O seu compromisso - do Poder Judiciário - terá de ser sempre com a lei constitucional e a Constituição de seu País.

"Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica, nem é simples estrutura de normatividade e nem pode caracterizar um irrelevante acidente histórico na vida dos Povos e nas Nações. Todos os atos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica dos Tribunais, especialmente porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos fatos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada - constituirá a garantia mais efetiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidos" (ADIN 293-7 - DF, Rel. Min. Celso de Melo, STF, DJU de 16/04/93, pág. 6429)

"Traidor da Constituição é traidor da Pátria "(Ulisses Guimarães).

O Juiz é obrigado a cumprir e fazer cumprir as leis constitucionais e a Constituição. Gostem ou não. Aceitem ou não, porque o traidor da Constituição será mais indigno quando se tratar de um magistrado que ao assumir o cargo, mormente por concurso público de provas e títulos, jurou cumpri-la.

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Sobre o autor
Agapito Machado

juiz federal no Ceará, professor de Direito na Universidade de Fortaleza (Unifor)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Agapito. Há direito adquirido contra Emenda?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 569, 27 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6224. Acesso em: 19 abr. 2024.

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