MUDANÇA NO REGISTRO CIVIL SEM NECESSIDADE DE CIRURGIA

23/11/2017 às 09:56
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Dispõe o artigo 16 do Código Civil que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. O nome é o sinal que caracteriza o indivíduo na família e na sociedade e o diferencia, ao lado de outros elementos de individualização, dos demais membros do grupo.

I - O TEMA EM DISCUSSÃO

Estudiosos expõem que a identidade sexual sempre está ligada ao "sexo psicológico" e não ao gênero de nascença.

Nessas situações há um visível desconforto com o gênero biológico, há uma diferença marcante entre o transexual e o transgênero:

  • transexual - sente que sua anatomia não corresponde à sua identidade e tem um forte desejo de modificar o corpo, através da terapia hormonal e da cirurgia de redesignação sexual;
  • transgênero - quer poder se expressar como o sexo oposto (usando roupas, por exemplo), mas não tem necessidade de modificar sua anatomia corporal.

Por essa razão, deve ser estudada a situação de mudança do prenome no registro civil com alteração do gênero, diante desses exemplos.  

Dispõe o artigo 16 do Código Civil que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome. O nome é o sinal que caracteriza o indivíduo na família e na sociedade e o diferencia, ao lado de outros elementos de individualização, dos demais membros do grupo.


II - O REGISTRO PÚBLICO E O DIREITO AO NOME

O direito ao nome é um direito subjetivo extrapatrimonial de objeto imaterial.

Serpa Lopes (Tratado dos Registros Públicos (1960: 167) lecionou: "Não é possível, porém, deixar de considerar que o nome, com o ser um direito, é simultaneamente uma obrigação. Nele colabora um interesse social da maior relevância. Se, de um lado, o interesse individual atua para identificação da pessoa, quer por si só, quer como membro de uma família, por outro lado, há um interesse social na fixação dessa identidade, em relação aos que venham ter relações jurídicas com o seu portador".

Em artigo onde aborda o tema, Clovis Mendes (O nome civil da pessoa Natural, Ius navigandi), estudando  sobre os elementos constitutivos do nome, disse:

“Podemos classificar os elementos que compõem o nome civil em principais ou fixos e secundários ou circunstanciais ou contingentes. Aqueles são elementos que dão fundamento ao nome, para que atinja sua finalidade básica. Inclui-se, a teor do artigo 16 do Código Civil, o prenome e o sobrenome (também denominado nome ou apelido de família e patronímico). No segundo grupo encontramos o agnome, o cognome (ou alcunha, apelido, hipocorístico, do gr. hypokoristikón). O pseudônimo também é considerado por certos autores, como elemento secundário. Existiria, na composição do nome, segundo alguns estudiosos do assunto, outra categoria na qual se incluem os títulos de nobreza (barão, duque, conde, visconde, marquês, príncipe), os títulos de honra (cavaleiros da Ordem X, comendador), título religioso (papa, arcebispo, cardeal, bispo, monsenhor, cônego, irmão, irmã, frei), título acadêmico (professor, doutor, mestre) e qualificativo de função oficial (presidente, deputado, senador, procurador).”

O prenome é  o nome próprio ou nome de batismo, escolhido pelos pais por ocasião do registro de nascimento, para individualizar seu portador.

O sobrenome serve para indicar a procedência da pessoa. Será simples, quando provir apenas do sobrenome materno ou paterno e composto quando provir de ambos. Mas a lei não impõe o uso do sobrenome de ambos os pais.

Por sua vez, o agnome é o sinal que se acrescenta ao nome. Assim, temos expressões como Filho, Júnior, Neto e Sobrinho. 

Os oficiais do registro civil não deverão registrar prenomes que venham expor seus portadores ao ridículo. Restando os pais irresignados, o oficial submeterá o caso ao juiz competente (art. 55, parágrafo único, da Lei Federal nº 6.015/73 – Lei de Registros Públicos)

O  prenome civil, em regra, é imutável. Todavia, a lei admite exceções em determinadas circunstâncias, autorizando a alteração. Assim o art. 58 da Lei nº 6.015, cuja redação foi dada pela Lei nº 9.078, de 1998, dispõe: O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos e notórios.

Dessa forma, a possibilidade de alteração do prenome acaba por relativizar o princípio da sua imutabilidade e tem o condão de resguardar um direito da personalidade, pois o nome civil é fator que além de designar o indivíduo, o identifica perante a comunidade onde vive. Nesse sentido, ensina Caio Mário da Silva Pereira, em Instituições de direito civil, 20ª. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. I, p. 243:

 “Elemento designativo do indivíduo e fator de sua identificação na sociedade, o nome integra a personalidade, individualiza a pessoa e indica grosso modo a sua procedência familiar.”

Mas é possível a retificação, no Registro Público, do prenome.

Observe-se a decisão do Superior Tribunal de Justiça na matéria:

Civil. Registro Público. Nome Civil. Prenome. Retificação. Possibilidade. Motivação suficiente. Permissão legal. Lei 6.015/1973, art. 57. Hermenêutica. Evolução da doutrina e da jurisprudência. Recurso provido. I- O nome pode ser modificado desde que motivadamente justificado no caso, além do abandono pelo pai, o autor sempre foi conhecido por outro patronímico. II - A jurisprudência, como registrou Benedito Silvério Ribeiro, ao buscar a correta inteligência da lei, afinada com a "lógica do razoável", tem sido sensível ao entendimento de que o que se pretende com o nome civil é a real individualização da pessoa perante a família e a sociedade. (Ac. no REsp. n° 66.643 - SP, Quarta Turma, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. em 21.10.1997, in DJU de 09.12.1997, p. 64.707).


III - POSIÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA

O tema é importante diante da questão da possibilidade de alteração de registro civil com ou sem mudança de sexo.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem autorizando a modificação do nome que consta do registro civil, bem como a alteração do sexo. Entretanto, consigna que a averbação deve constar apenas do livro cartorário, vedando qualquer menção nas certidões do registro público, sob pena de manter a situação constrangedora e discriminatória.

Segundo o ministro da Quarta Turma do STJ Luis Felipe Salomão, se o indivíduo já realizou a cirurgia e se o registro está em desconformidade com o mundo fenomênico, não há motivos para constar da certidão.

Isso porque seria um opróbrio ainda maior para o indivíduo ter que mostrar uma certidão em que consta um nome do sexo masculino. Entretanto, a averbação deve constar do livro cartorário. “Fica lá no registro, preserva terceiros e ele segue a vida dele pela opção que ele fez”, afirmou o ministro.

Para a ministra Nancy Andrighi, quando se iniciou a obrigatoriedade do registro civil, a distinção entre os dois sexos era feita baseada na conformação da genitália. Hoje, com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição de gênero não pode mais ser limitada somente ao sexo aparente.

“Todo um conjunto de fatores, tanto psicológicos quanto biológicos, culturais e familiares, devem ser considerados. A título exemplificativo, podem ser apontados, para a caracterização sexual, os critérios cromossomial, gonadal, cromatínico, da genitália interna, psíquico ou comportamental, médico-legal, e jurídico”, afirma a ministra.

Para Andrighi, se o Estado consente com a possibilidade de realizar-se cirurgia de transgenitalização, logo deve também prover os meios necessários para que o indivíduo tenha uma vida digna e, por conseguinte, seja identificado jurídica e civilmente, tal como se apresenta perante a sociedade.

O ministro Toffoli  argumentou que a permissão deve ser concedida para evitar constrangimento da pessoa e de modo a preservar sua dignidade, caso esta não se identifique com o sexo de nascimento e opte não por não realizar a cirurgia.

“Diante da situação fática posta no dia a dia das pessoas transexuais, ficará evidente sua exposição a eventual discriminação ou mesmo ao ridículo caso seus pleitos de reassentamento não sejam concedidos, violando-se na espécie a dignidade da pessoa humana”, disse o ministro.

Ele considerou que muitos transexuais não têm dinheiro para fazer a cirurgia, têm medo do procedimento ou não sentiriam prazer com um novo órgão sexual. Assim, exigir a cirurgia para mudar o nome contraria o “direito de personalidade” da pessoa e o “princípio de felicidade”.

“Transexual é a pessoa que se identifica com o gênero oposto àquele atribuído socialmente ao seu sexo biológico e que, geralmente, não quer que as pessoas em geral saibam de sua transexualidade após a adequação de sua aparência a seu sexo psíquico. Trata-se, assim, de questão puramente identitária e não médica”

Segundo o site do STF, o pedido de vista do ministro Marco Aurélio suspendeu, no dia 22 de novembro do corrente ano, o julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), do Recurso Extraordinário (RE) 670422, com repercussão geral, no qual se discute a possibilidade de alteração de gênero no assento de registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Até o momento, votaram o relator do processo, ministro Dias Toffoli, os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e a ministra Rosa Weber, todos pelo provimento do recurso. Para os ministros, comprovada judicialmente sua condição, o transexual tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, independentemente da realização da cirurgia de transgenitalização.

No recurso, S.T.C. questiona acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) que manteve decisão de primeiro grau que deferiu a mudança do nome, mas condicionou a alteração de gênero à realização de cirurgia de transgenitalização, ou seja, de mudança do sexo feminino para o masculino. O TJ ainda determinou a anotação do termo “transexual” no registro de nascimento, fundamentando-se nos princípios da publicidade e da veracidade dos registros públicos.

Ao iniciar o seu voto pelo provimento do recurso, o relator do RE, ministro Dias Toffoli, ressaltou que, para o desenvolvimento da personalidade humana, deve-se afastar qualquer óbice jurídico que represente limitação ao exercício pleno pelo ser humano da liberdade de escolha de identidade, orientação e vida sexual. Para o ministro, qualquer tratamento jurídico discriminatório sem justificativa constitucional razoável e proporcional “importa em limitação à liberdade do indivíduo e ao reconhecimento de seus direitos como ser humano e como cidadão”.

O relator destacou que a Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/1973) permite, uma vez que se constate ser o prenome capaz de submeter seu titular a situações vexatórias, a sua alteração. Para o ministro, o afastamento da regra da imutabilidade do nome se aplica aos transexuais. “Diante da situação fática posta no dia a dia das pessoas transexuais ficará evidente sua exposição a eventual discriminação caso seus pleitos de reassentamento não sejam concedidos, violando-se, na espécie, a dignidade da pessoa humana”, disse.

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A respeito da alteração do sexo no registro, o relator afirmou que deferir a modificação do prenome do transexual adaptando-o à sua nova aparência física e manter-se a anotação original relativa ao sexo violaria a utilidade do direito. De acordo com o ministro Dias Toffoli, a proteção jurídica ao transexual deve ser completa e ultrapassar a classificação binária tradicional e estática das pessoas em sexos masculino ou feminino.

O ministro destacou que a solução proposta no acórdão do TJ-RS, da anotação do designativo “transexual” nos assentamentos pessoais, não garante a dignidade do indivíduo e causa efeitos deletérios, como sua discriminação, sua exclusão e sua estigmatização. “Além do transexual não desejar ser reconhecido socialmente dessa forma, não existe, sob o ponto de vista científico, essa categoria de sexo. Necessita essa pessoa que sua autodeterminação de gênero que está no campo psicológico seja também reconhecida no âmbito social e jurídico”.

O ministro também explicou que a alteração do prenome e da classificação de sexo, como se extrai do regime jurídico registral vigente (artigos 98 e 99 da Lei 6.015/1973), depende de decisão judicial, adotando-se o procedimento de jurisdição voluntária. “Não se trata de retificação de registro, mas de averbação de decisão judicial de natureza declaratória essencialmente constitutiva do aspecto registral”, esclareceu. A averbação, destacou o relator, deve ser realizada sob o manto do sigilo, a fim de evitar qualquer espécie de constrangimento ao indivíduo. Nas certidões do registro, afirmou, não deve constar nenhuma observação sobre a origem do ato. Além disso, deve ser vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial.

Disse bem o ministro Toffoli: "Não é o sexo do indivíduo, a identidade biológica que faz a conexão do sujeito com a sociedade, mas sim a sua identidade psicológica".

O relator propôs a seguinte tese de repercussão geral: O transexual, comprovada judicialmente sua condição, tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, independentemente da realização de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, com a anotação de que o ato é realizado por determinação judicial, vedada a inclusão do termo transexual. Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial. A autoridade judiciária determinará, de ofício, ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para alteração dos demais registros dos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem do ato.

Observe-se, portanto, a importância desse julgamento e do papel da Suprema Corte para definições de políticas sociais inclusivas, de relevante papel para a democracia. 

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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