4. O princípio do primado do direito mais relevante
Haveria liberdade de morrer por uma ideologia religiosa, negando-se a receber transfusão de sangue? Deveria o médico respeitar essa liberdade de atentar, conscientemente, contra a própria vida? Que deve prevalecer: o direito à vida ou à liberdade?
Ficou claro, de acordo com os entendimentos doutrinários, citados acima, que o médico deve respeitar tal liberdade, intervindo apenas quando houver perigo à vida, usando de todos os meios possíveis para preservação desta, pois o valor vida é anterior ao da liberdade. Esta subexiste apenas enquanto houver vida.
Pela Resolução 1021/80, adotando o Parecer n.21/80, cujo conteúdo e o seguinte:
“O problema criado, para o médico, pela recusa dos adeptos das Testemunhas de Jeová em permitir a transfusão sanguínea, deverá ser encarados sob duas circunstâncias:
1. A transfusão de sangue teria precisa indicação e seria a terapêutica mais rápida e segura para a melhora ou cura do paciente.
Não haveria, contudo, qualquer perigo imediato para a vida do paciente se ela deixasse de ser praticada.
Nessas condições, deveria o médico atender ao pedido de seu paciente, abstendo-se de realizar a transfusão de sangue.
Não poderá o médico proceder de modo contrário, pois tal lhe é proibido no art. 24 do Código de Ética Médica: “É vedado ao médico: deixar de garantir ao paciente o exercício de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”.
2. O paciente se encontra em iminente perigo de vida e a transfusão de sangue é a terapêutica indispensável para salvá-lo.
Em tais condições, não deverá o médico deixar de praticá-la apesar da oposição do paciente ou de seus responsáveis em permiti-la.
O médico deverá sempre orientar sua conduta profissional pela determinação de seu Código.
(...) Por outro lado, ao praticar a transfusão de sangue, na circunstância em causa, não estará o médico violando o direito do paciente...
Acreditamos, realmente, que o parâmetro a ser tomado é sempre a existência ou não de iminente perigo de vida.
A religião, seja qual for, não pode pretender que o médico ignore as regras fundamentais de sua profissão, colaborando, com sua omissão, para o fim da vida de seu paciente, pouco importando que este se rebele contra suas decisões.
As normas constitucionais que protegem o direito à vida e à crença religiosa têm eficácia absoluta e geram uma antinomia real ou lacuna de conflito, que só pode ser solucionada pelo critério do justum, aplicando os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, a saber:
“Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5o Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.
Como bem fundamentado pelos teóricos supracitados, em casos em que haja colisão de direitos, deve haver ponderação à luz do caso concreto, decidindo-se sempre pelo direito que melhor atenda à circunstância em questão, sem que o direito de “menor peso”, naquele caso, seja definitivamente extinto.
Desta feita, se entre os direitos à vida e à liberdade de religião apresentar-se uma situação que os coloque em xeque, de forma que apenas um deles prevaleça, ter-se-á a incidência absoluta do princípio do primado do direito mais relevante, que é, majoritariamente pelos constitucionalistas, considerado, o direito à vida.
E é nesse sentido que defendemos nossa posição, sendo o entendimento que mais nos agrada.
Após todo o estudo realizado, desde a legislação constitucional, infraconstitucional e ética até o posicionamento jurisprudencial, nos casos em que o paciente, ou seu representante legal, recusar a transfusão de sangue por convicções religiosas, conclui-se que em caso de iminente risco de morte o profissional médico pode contrariar a vontade do paciente ou de seu representante legal, prevalecendo assim a vida.
A vida é o bem mais precioso, que se sobrepõe a todos. Entre ela e a liberdade religiosa de um paciente, deverá ser a escolhida, pois o sacrifício de consciência é um bem menor que o sacrifício eventual de uma vida.
Finalizando, citamos Sérgio Ferraz (1991), que enfatiza: “(...) Pré-embrionária no início, embrionária após, mas vida humana...”.
Nesse sentido, o princípio do primado direito à vida, assegura que a vida tem prioridade sobre qualquer coisa, prevalecendo assim, sobre todos os outros princípios ou normas do ordenamento jurídico.
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