2. A PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS, RESULTADOS E O ESTADO INEFICIENTE
Não se poderia falar sobre a ineficiência estatal antes de analisar, ainda que rapidamente, a eficácia dos Direitos Fundamentais Sociais, pois isso é falar sobre a própria evolução da ideologia constitucional social.
Sabe-se que os primeiros Direitos Fundamentais Sociais surgiram formalmente nas constituições mexicana, de 1917 e de Weimar, de 1919, respectivamente, mas, tais direitos trouxeram consigo um ranço em relação à eficácia, porquanto, à época, vigorava a interpretação segundo a qual os Direitos Sociais possuíam apenas eficácia programática, servindo, apenas, como norte para o legislador, informando a elaboração de normas infraconstitucionais.
Como se viu alhures, o Estado Social modificou o paradigma ideológico, transmudando também a interpretação acerca da eficácia dos direitos fundamentais, sobretudo os socias; pois, se antes estes eram tidos como normas de eficácia programática, a partir de então, passaram a ser interpretados à luz da sua máxima eficácia, possuindo auto-aplicabilidade.
Vale transcrever a lição de Ingo Wolfgang Sarlet:
enquanto a concepção clássica partia da premissa de que a maior parte das disposições constitucionais não era diretamente aplicável sem a intervenção do legislador infraconstitucional, a doutrina atual parte da constatação de que a maioria das normas constitucionais constitui direito plena e diretamente aplicável.[49]
Mesmo acreditando que todas as normas constitucionais são guiadas pelo princípio da máxima eficácia[50], não se pode ignorar que algumas normas possuem baixa densidade normativa, como, por exemplo, a norma presente no artigo 7º, XI da CRFB/88, requerendo regulamentação infraconstitucional, já estabelecida através da Lei n. 10.101/2000, que remete a participação nos lucros e resultados ao pleno e livre exercício da autonomia, individual ou coletiva das partes.
O problema surge quando as partes se esquivam, no panorama individual ou coletivo, de firmar livremente o modo da participação nos lucros e resultados, permanecendo o trabalhador sem base para o usufruto do Direito Fundamental Social.
Essa confortável omissão é permitida pela legislação regulamentadora, tendo-se que a Lei n. 10.101/2000, a fim de tratar sobre o modo de exercício do Direito Fundamental, apenas remeteu à autonomia privada a possibilidade de tratamento do aludido Direito. Nesse trilhar, percebe-se claramente que o Estado-Legislador, tendo agido dessa forma, restou ineficiente, ignorando o seu dever de proteção ao cidadão trabalhador, pois a Carta Política possui ordem específica, determinado que o legislador ordinário disponha sobre o modo de participação nos lucros e resultados, mas a aludida Lei não foi capaz de tanto. Ao revés, além de não ter dito como se dará a participação nos lucros, ofendendo o regramento constitucional, a legislação ordinária ainda remeteu tal possibilidade à autonomia privada, individual ou coletiva, que, inerte, fecha o ciclo da ofensa ao dever prestacional, retratando que o Estado-Legislador ignorou completamente o princípio da proibição à insuficiência.
Tendo havido omissão do legislador e das partes, deve o juiz intervir, resolvendo a lide que lhe foi submetida, ofertando o Direito Fundamental à parte que o solicita ao Estado, utilizando-se, para tanto, do princípio da proporcionalidade[51] e da analogia com outras fontes do Direito do Trabalho.
Passados vinte e cinco anos da promulgação da Carta Política de 1988, não é crível que um Direito Fundamental Social permaneça dependente de uma legislação infraconstitucional e, o que é pior, ao livre talante da autonomia privada (relembre-se que esse não foi o desiderato da Carta Política); pois, pensar assim é ignorar por completo o princípio da máxima eficácia das normas constitucionais e da própria supremacia da Constituição.
Decidir o caso concreto, utilizando-se do princípio da proporcionalidade, estabelecendo como se dará a participação nos lucros e resultados não é invadir a esfera do Poder Legislativo, mas sim não perder de vista que quando a Constituição estabelece a divisão dos poderes, o faz pensando em um Estado como um todo, apenas dividido em funções, que são preponderantemente observadas em relação a cada Poder.
A intervenção do Poder Judiciário é necessária e requer coragem para ir de encontro, ao que parece, a um entendimento conformista, buscando-se efetivar Direito Fundamental constitucionalmente assegurado, como leciona Ingo Wolfgang Sarlet:
os direitos sociais (mesmo os de cunho prestacional), por força do disposto no art. 5º, § 1º, da CF, possuem o caráter de autênticos direitos subjetivos, já que o citado preceito, combinado com o art. 5º, inc. XXXV, de nossa Carta, autoriza os tribunais a assegurar, no caso concreto, a efetiva fruição do objeto da prestação. Para os que propugnam este ponto de vista, a lacuna gerada pela ausência de uma atuação do legislador pode ser suprida, no caso concreto, pelo Judiciário, à luz da analogia, do costume ou dos princípios gerais de direito, sem que com isto se esteja transpondo a fronteira entre a atividade judiciária e a legislativa.[52]
À falta de norma própria e apta a servir de base para a resolução do caso concreto, necessária se faz a utilização da analogia com outras normas coletivas semelhantes, a exemplo das convenções coletivas dos bancários e petroleiros, que tão bem fixam o que vem a ser lucro ou resultado, indicando como será efetuada a participação dos trabalhadores. É necessário, para tanto, que o Magistrado fixe prazo para que a empresa junte os documentos necessários à análise dos lucros e resultados, pois assim agindo não perderá de vista o princípio do devido processo legal; tudo muito bem fundamentado, pois a fundamentação das decisões judiciais é uma característica do princípio democrático, tendo-se que tal exigência se mostra “muito mais necessária e mito mais complexa nos casos em que estão em jogo conceitos indeterminados ou quando o caso envolve as chamadas lacunas da lei, ou, ainda, quando se decide com fundamentos em outros precedentes”[53].
Dessa forma, igualmente será observado não só o princípio da máxima eficácia dos Direitos Fundamentais e da supremacia da Constituição, mas também se interpretará a Constituição como ela deve ser interpretada, conforme os seus próprios valores e, sobretudo, à luz do valor social do trabalho[54], que alimenta e informa todas as normas constitucionais e infraconstitucionais.
Não se pode olvidar, também, que o Poder Judiciário, assim como todos os outros poderes constituídos, em um contexto de eficácia objetiva, é diretamente vinculado aos Direitos Fundamentais, que servem como verdadeiros valores, atuando como norte para interpretação do próprio Texto Constitucional[55].
O legislador infraconstitucional, ao tentar regulamentar o artigo 7º, inciso XI da CRFB/88 deixou de cumprir a própria diretriz constitucional, porquanto a norma ordena que o direito a participação nos lucros e resultados seja regulamentado por lei e esta apenas remeteu o direito social ao livre exercício da autonomia privada ou coletiva, e quando esta não é plenamente exercida, há um verdadeiro esvaziamento do próprio Direito Fundamental, em contraposição à diretriz traçada no parágrafo 1º do artigo 5º do Texto Constitucional.
Diante da inércia do Legislador, que atuou com incompletude normativa, ignorando o seu dever de proteção, não há outra solução senão a resolução do conflito pelo Poder Judiciário, quando as partes também restam inertes, afastando-se do exercício da autonomia privada individual ou coletiva necessária, nesse caso.
Para a resolução de tal conflito, no caso concreto, além da via da analogia da qual já se falou ao norte, poderá também se valer o Magistrado do critério da ponderação de bens constitucionalmente assegurados, pois há evidente conflito entre o princípio da propriedade, ou autonomia privada e o princípio da função social da propriedade, este robustecido pelo valor social do trabalho, que prevalece, pois a “Constituição laboral é um acordo entre as partes constituintes no sentido de privilegiar, valorizar o trabalho, enquanto elemento essencial à realização da dignidade humana”[56].
Alexy, falando sobre as restrições aos direitos fundamentais, nos explica que: “uma restrição a um direito fundamental somente é admissível se, no caso concreto, aos princípios colidentes for atribuído um peso maior que aquele atribuído ao princípio de direito fundamental em questão”.[57] Nesse trilhar, diante da colisão já aludida, mesmo tendo-se que ambos os princípios, em tese, possuem o mesmo peso, no caso concreto, deverá prevalecer a função social da propriedade, guiada pelo valor social do trabalho, que é conteúdo axiológico informador de todas as normas constitucionais sociais.
3. CONCLUSÃO
Como arremate, nunca é demais lembrar que aquele Poder Judiciário que se ativava como “a boca que pronuncia as palavras da lei”[58] ficou para trás. Quando o Poder Legislativo resta inerte, ou desenvolve sua função com incompletude, menosprezando o seu dever de proteção, abre-se espaço para novas interpretações e aplicações normativas, a fim de se garantir a máxima eficácia da Constituição, assegurando a sua força normativa e o princípio da proibição da insuficiência.
O Direito Fundamental Social à participação nos lucros e resultados não pode mais permanecer ao livre talante da vontade de uma das partes (empregador), merecendo tratamento condizente à sua condição, para que o intérprete não perca de vista o próprio valor social do trabalho.
4. REFERÊNCIAS
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