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Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária

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01/12/1999 às 01:00
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INTRODUÇÃO

A DIVERGÊNCIA ENTRE O SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL E O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O Supremo Tribunal Federal decidiu no mês de setembro, em recurso extraordinário 252.748-3/SP, pelo Ministro Relator Celso de Mello, que:

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 252.748-3 SÃO PAULO

RELATOR MINISTRO CELSO DE MELLO

"ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR FIDUCIANTE. LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL. INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS). RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO."

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça, no mês de outubro, decidiu em três oportunidades da seguinte forma e em divergência com a decisão da Corte Suprema:

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL 122318/MG 18.10.1999 3 TURMA

RELATOR MINISTRO NILSON NAVES

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA (LEI 4728/65 E DECRETO 911/69). PRISÃO CIVIL (FALTA DE CABIMENTO). SEGUNDO DECISÃO DA CORTE ESPECIAL DO STJ, É ILEGÍTIMA, OU É ILEGAL A PRISÃO CIVIL DO ALIENANTE OU DEVEDOR COMO DEPOSITÁRIO INFIEL (ERESP 149.518). DA TERCEIRA TURMA, MC 1709 E HC 8324. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO

(PARTICIPARAM DA VOTAÇÃO OS MINISTROS EDUARDO RIBEIRO, WALDEMAR ZVEITER, ARI PARGENDLER E MENEZES DIREITO)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

RECURSO ESPECIAL 222242/MG 04.10.1999 3 TURMA

RELATOR MINISTRO EDUARDO RIBEIRO

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PRISÃO CIVIL. A INCORPORAÇÃO A NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO DAS DISPOSIÇÕES CONSTANTES DO PACTO DE SÃO JOSÉ DE COSTA RICA ELIMINA A POSSIBILIDADE DE PRISÃOCIVIL, TRATANDO-SE DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA.

(PARTICIPARAM DA VOTAÇÃO OS MINISTROS WALDEMAR ZVEITER, ARI PARGENDLER , MENEZES DIREITO E NILSON NAVES)

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

MEDIDA CAUTELAR1899/SP 11.10.1999 4 TURMA

RELATOR MINISTRO SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA

PROCESSO CIVIL. CAUTELAR.LIMINAR CONCEDIDA MONOCRATICAMENTE PELO RELATOR. PRISÃO CIVIL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. DESCABIMENTO. NOVA ORIENTAÇÃO DA CORTE ESPECIAL REFERENDADA PELA TURMA.

I. CONFORME DECIDIU A CORTE ESPECIAL (ERESP 149.518-GO) EM SESSÃO REALIZADA DIA 5.5.99, DESCABE PRISÃO CIVIL EM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, POR NÃO SE TRATAR DE DEPÓSITO TÍPICO.

II. PRESENTES O PERICULUM IN MORA E O FUMUS BONIS IURIS, RESTA REFERENDADA PELA TURMA A LIMINAR CONCEDIDA PELO RELATOR, COM O ESCOPO DE COMUNICAR EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL PARA IMPEDIR A DECRETAÇÃO DE PRISÃO DOS RÉUS EM DECORRÊNCIA DO CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE QUE TRATAM OS AUTOS.

(PARTICIPARAM DA VOTAÇÃO OS MINISTROS BARROS MONTEIRO, CESAR ASFOR ROCHA, RUY ROSADO DE AGUIAR E ALDIR PASSARINHO JUNIOR)


DIRETRIZES DE ORDEM TÉCNICA E JURÍDICA E A IMPOSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL EM CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA

As diretrizes de ordem técnica e jurídica tem por fim apurar a constitucionalidade ou não da prisão civil em contratos com a garantia da alienação fiduciária.

A controvérsia não é nova, mas o interesse se avulta em função de posicionamentos jurisprudenciais divergentes entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.

A origem do instituto da alienação fiduciária em referência com a Lei nº 4.728/65 (Lei de Mercado de Capitais) que por meio do art. 66 disciplinou a figura da alienação fiduciária em garantia. Depois a questão ficou expressamente delimitada no Decreto Lei 911/69 que instituiu a Lei da Alienação Fiduciária. O momento que se encontrava a vida nacional, quando da criação da alienação fiduciária, convinha desenvolvimento econômico do País notadamente porque a circulação do crédito é fonte direita do incremento de produção e expansão do escoamento do que se produz.

E não é por outro motivo que para facilitar a obtenção de crédito, tornava-se indispensável garantir de maneira mais eficiente possível a figura do credor, não onerando demasiadamente o devedor, ainda mais em face do sistema criado pelo Código de Defesa do Consumidor visando, no mais das vezes, proteger a parte mais fraca na contratação.

Essencialmente, tem a alienação fiduciária função de transferir "ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independente de tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direito e depositário com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal."(art.66 da Lei citada). No contrato em questão, o devedor transfere ao credor a propriedade de bens móveis, para garantir o pagamento da dívida contraída, sob a condição de uma vez liquidada, tornar-se proprietário incondicional do bem transferido.

Com efeito, o elemento determinante de tal contrato é a confiança entre o fiduciante (alienante) e o fiduciário (adquirente), de tal forma que aquele tem a expectativa de que voltará a ser dono do bem uma vez verificado o implemento da condição, vale dizer, o pagamento da obrigação. Daí porque afirma-se que a propriedade do fiduciário é resolúvel.

Com mais precisão temos o importante estudo do mestre Orlando Gomes onde esclarece que: "Sob o aspecto técnico, a esperança do retorno da propriedade consubstancia-se na pretensão restituitória, consistente na faculdade, contratualmente assegurada, de exigir do proprietário fiduciário que lhe devolva o direito fiduciariamente transferido tanto que resolvido pelo implemento da condição. A obrigação de restituir é o elemento natural do contrato".

Mas deve-se ressaltar que segundo o que nos informa a doutrina, "A parcela fidúcia contida em nossa alienação fiduciária em garantia, representa, em verdade, gota no oceano, face cláusula resolutiva que contém" , o que justificaria a conclusão de que o instituto tem no cenário nacional características próprias diversas da fidúcia do Direito germânico, na qual ao lado do "trust receipt" do direito americano, baseou-se o legislador pátrio.

A verificação da figura do depositário ocorre quando tem incidência o art. 4º do Dec. Lei nº 911/69: "Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação de depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro VI, do Código de Processo Civil", que diretamente equipara o devedor fiduciante ao depositário, inclusive quanto as responsabilidades inerentes previstas no art. 1287 do CC: "Seja voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que o não restituir, quando exigido, será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e a ressarcir os prejuízos".

E pela própria disciplina da ação de depósito, o depositário que for considerado infiel sofrerá pena de prisão não excedente a um ano como forma de coerção para que pague o saldo contratual em aberto ou devolva a coisa que não é sua.

A constitucionalidade do decreto de prisão, sem qualquer caráter punitivo ou penal, decorrente de violação de norma penal, nunca foi considerada pacífica dentro da doutrina e jurisprudência, tudo decorrendo da interpretação que era feita acerca do art. 153 par. 17, da CF de 1969, no qual permitia-se excepcionalmente a prisão civil por dívida decorrente de devedor de alimentos ou depositário infiel. A redação daquele artigo foi repetida no essencial pelo legislador constitucional de 1988 (art. 5, LXVII).

A regra geral quanto a impossibilidade de prisão por dívida pecuniária teve início com a CF de 1934 que não fazia qualquer ressalva, fato que veio a ocorrer a partir do texto de 1937, o que se repetiu até os dias atuais. Quando ainda vigente a CF de 1969, era conhecida a posição do mestre Pontes de Miranda que sustentava a constitucionalidade da prisão do depositário judicial ou extrajudicial, assim equiparado, que se recusasse a devolver o bem confiado.

A tal posicionamento, seguia-se o entendimento da mais alta corte do País, conforme pode-se verificar nos julgados insertos na RTJ 116/564 e 1282, invocados a título meramente exemplificativo.

Ocorre que já em 1972 se levantam vozes contrárias ao decreto de prisão basicamente porque não teria sido intenção do legislador constitucional impor a aplicação da coerção e nem deixar ao arbítrio do legislador ordinário a sua fixação aleatória, notadamente considerando a equiparação do devedor fiduciante a depositário realizada por técnica de ficção, incorporando à situação fictícia uma medida reprovada pela lei mais alta.

No entanto, argumenta a tese favorável da prisão, a necessidade do resguardo do instituto da alienação fiduciária, bem como a ação de busca e apreensão cujo perecimento seria inevitável, vez que não encontrado o bem, não haveria citação do réu e interesse na conversão em depósito, resultando em mera ação de execução sem garantia de bens para respaldá-la. Por outro lado, entendimento em contrário afrontaria os ditames legais que regem a matéria.

Com efeito, conforme demonstra o jurista Paulo Restiffe Neto, "a alienação fiduciária, que é negócio jurídico constituído contratualmente por instrumento escrito, contém o depósito legal, ou necessário, que decorre da própria natureza do instituto da garantia fiduciária, em que o devedor aliena para garantir, continuando, com as responsabilidades de depositário, até operar-se a revisão configuração do depósito da vontade das partes sempre que se realize uma alienação fiduciária em garantia, por força de disposição legal, torna-se o alienante depositário necessário "ex vi legis", com todas as responsabilidades e encargos que lhe incumbirem de acordo com a lei civil e penal".

Ocorrendo a infidelidade depositária, a pena de prisão nada mais seria do que um meio coercitivo de compelir o devedor a cumprir a sua obrigação, sem o que a ação de depósito estaria travestida de ação de cobrança. Este é o pensamento do mestre Humberto Teodoro Jr., considera a prisão civil como uma sanção de "caráter intimidativo e de força indireta para assegurar a observância das regras de Direito".

A prisão civil é, pois, uma pressão psicológica; uma técnica executória de caráter indireto e instrumental; meio coercitivo de compelir o devedor a cumprir sua obrigação reconhecida pela sentença de procedência da ação, sendo destarte, lícita já que prevista legal e constitucionalmente, continua aquela tese.

Logo, o parágrafo primeiro do art. 902 estabelece que o autor da ação de depósito poderá requerer a cominação de pena de prisão até um ano. O texto do parágrafo único do art. 904 do CPC, por sua vez, dispõe que a prisão do depositário será decretada, caso descumprido o mandado de entrega da coisa ou do equivalente em dinheiro.

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Deve-se ressaltar que o estatuto processual civil só prevê e dispõe de um único tipo de Ação de Depósito seja ele clássico ou por equiparação legal, judicial ou convencional.

A doutrina tem apreciado esta matéria valendo citar a ligação do jurista Celso Ribeiro Bastos: "A expressão depositário infiel é utilizada de maneira ampla pela Constituição, dando assim margem à lei ordinária para que possa cominar a cena de prisão a modalidade diferentes de depósito. Há duas modalidades de depósitos: a convencional e a judicial."

Continua o importante mestre que : "Ambas comportam a prisão civil, o que varia é o momento da sua decretação. No caso de depósito concencional, a sua decretação e execução só pode se dar após o trânsito em julgado da sentença proferida, isto por força do art. 904 do CPC".

Os que admitem a prisão civil na alienação fiduciária e os que a rejeitam partem, todos, interpretando-o diversamente, do mesmo artigo da Constituição Federal, o 5º, LXVII, entendendo: a) os primeiros, que o dispositivo não exclui a prisão porque’ afinal’ há depósito na alienação fiduciária; b) enquanto que os segundos negam ao devedor fiduciante a qualidade de depositário. Mas, a respeito de raramente empregado, ao lado desses, há outro argumento, argumento que conduz a esta conclusão: revogação daquele dispositivo constituicional, restringindo-se o cabimento da prisão civil a somente uma hipótese – de inadimplemento de débito de alimentos.

Esse outro argumento requer, para ser compreendido, o exame de dois dados: a) a vigência de outra norma, interna ou internacional, posterior à Constituição e que reduz a incidência da norma do artigo 5º, LXVII; b) sendo essa norma internacional, a sua eficácia interna.

Temos que torna-se impossível a prisão civil aplicando o princípio de que o cerceamento da liberdade decorre de questão meramente patrimonial de que a lei por ficção equiparou o devedor fiduciante a depositário, não se pode erigir a segurança do crédito como valor superior ao direito de ir e vir, inequivocamente de maior importância. Não teve o legislador ordinário competência legiferante ao ponto de restringir a liberdade quando a própria CF não conferiu expressão ampla, já que sobre o tema, a interpretação extensiva é de todo indevida em relação a casos não tratados.

Por segundo, sempre pressupondo os valores em jogo, a restrição a liberdade de ir e vir sempre deve estar ligada à necessidade da própria sobrevivência pessoal ou da ordem pública, fatos que por si só justificam a exceção aberta pela própria Constituição permitindo a prisão decorrente de dívida militar ou no caso de efetiva ocorrência de depositário infiel.

Sobre o assunto há o posicionamento do Professor José Raul Gavião de Almeida que se manifesta igualmente contrário a prisão porque "O depósito a que o constituinte ligou a prisão civil corresponde a uma figura conceitual elaborada pela Ciência Jurídica, não comportando, para ampliar o ensejo da sanção, inovações legislativas, sob pena de afronta ao princípio da reserva constitucional".

Há ainda, por fim, autoridade do eminente doutrinador Álvaro Villaça Azevedo que textualmente nega a existência da figura do depositário na alienação fiduciária. São suas as palavras: "A conclusão, portanto, é de que não existe, na alienação fiduciária em garantia, a figura de depositário, pois, em verdade, o alienante (fiduciante) é o proprietário, porque desde o início negocial, sofre ele o risco da perda do objeto. Ninguém pode ser condenado, portanto, como depositário infiel, se corre o risco da perda da coisa; isto, porque, reafirme-se, o depositário deve guardar bem alheio e não bem próprio".


A IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL EM CONTRATOS COM A GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM CONFORMIDADE COM ACONSTITUIÇÃO FEDERAL, A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITO HUMANOS E O PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA

O Estado brasileiro ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, pacto que, no seu artigo 7º , 7 , assim dispõe:

"Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandatos de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar."

Tal dispositivo quer significar que alguém somente poderá ser preso por dívida caso descumpra obrigação alimentícia, e em nenhuma outra hipótese mais, mesmo no de depositário infiel.

O artigo 5º, parágrafo 2º, da Carta da República, por sua vez, estabelece que todo e qualquer tratado de Direitos Humanos será prontamente recepcionado pela ordem jurídica interna e terá o status de norma constitucional.

Insiste-se, todavia, que a teoria da paridade entre o tratado internacional e a legislação federal não se aplica de direitos humanos, tendo em vista que a constituição de 1988 assegura a estes garantia de privilégio hierárquico, atribuindo-lhe natureza de norma constitucional…

A incorporação automática do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Direito brasileiro – sem que se faça necessário um ato jurídico complementar para a sua exigibilidade e implementação – traduz relevantes conseqüências no plano jurídico (Flávia Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, pp. 94 e 104, Max Limonad, 1996).

Conseqüentemente: a) há uma norma internacional, posterior a 1988, que, tutelando os direitos humanos, restringe a uma única hipótese a prisão civil; b) essa norma tem a eficácia de norma constitucional, de modo que se pode dizer que, a partir de 1992, o artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal, encontra-se revogado, não mais sendo lícito falar em prisão civil por depósito. Nesse sentido:

PRISÃO CIVIL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA 0 INTERPRETAÇÃO DO ART. 66 DA LEI Nº 43728/65, ALTERADO PELO DECRETO-LEI Nº911/69, EM FACE DO NOVO ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL – ORDEM CONCEDIDA –

I. O paciente é representante legal de devedora que , em contrato de alienação fiduciária, deu em garantia bem posteriormente apreendido por terceiro em outra ação de busca e apreensão. Na ação de busca e apreensão originária, posteriormente convertida em ação de depósito foi decretada a prisão civil do paciente que na qualidade de depositário, tendo sido devidamente intimado, não apresentou o bem (máquina de extrusão e modelagem). A decisão transitou em julgado.

II. A constituição Federal prevê a prisão civil por dívida em apenas dois casos: inadimplemento voluntário e obrigação alimentícia e depositário infiel(art. 5º, LXVII). No parágrafo 2º desse mesmo art. 5º, está dito que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

Em 1991, foi incorporado em nosso ordenamento constitucional, pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12/12/91, textos do Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos, que em seu art. 11 veda taxativamente a prisão civil por descumprimento de obrigação contratual. Por outro lado, no caso específico da "alienação fiduciária em garantia", não se tem um contrato de depósito genuíno. O devedor fiduciante não está na situação jurídica de depositário. O credor fiduciário não tem o direito de exigir dele a entrega do bem. Nem mesmo de proprietário deve ser rotulado, pois nem sequer pode ficar com a coisa, mas apenas como produto de sua venda, deduzindo o montante já pago pelo devedor. ( STJ – RHC 4.210 94.039687-2 – 6º T. – Rel. p/ Ac. Min. Adhemar Maciel – J. 29.05.95)

Ainda que a Constituição Federal não contivesse o preceito do artigo 5º, parágrafo 2º, a Convenção Americana de Direitos Humanos incidiria limitando as hipóteses de prisão civil. Os tratados de direitos humanos são diverso os dos tradicionais, que regulam as relações recíprocas entre Estados e que por esse motivo têm a mesma eficácia de lei infraconstitucional. Tem eficácia imediata com o status de norma constitucional porque representam ou concorrem para a concreção do novo paradigma do direito privado – a proteção dos direitos fundamentais, da recolocação da pessoa humana como valor máximo. Nesse sentido:

Os fundamentos foram muito elaborados. Pela sua importância, transcrevemos uma parte deles. Afirma-se que: "Temos adotado o critério da supralegalidade dos tratados, mesmo que para os tratados de direitos humanos tenhamos proposto outra modalidade, que assinalaremos a seguir. Estes últimos gozam de uma proteção internacional, porque a ‘pessoa’ é o sujeito do Direito Internacional".

Nesse sentido, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na OC 2/82, expressou:

"A Corte deve enfatizar que os tratados modernos sobre direitos humanos, em geral, e em especial, a Convenção Americana, não são tratados multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de uma troca recíproca, para o benefício mútuo dos Estados-contratantes. Seu objeto e sua finalidade são a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto perante seu próprio Estado quando perante os outros Estados-contratantes.

Ao provar esses tratados sobre direitos humanos, os Estados submetem-se a uma ordem legal dentro da qual eles, pelo bem comum, assumem várias obrigações não somente em relação com os outros Estados, mas perante os indivíduos sob sua jurisdição. Uma vez aceita a primazia das obrigações do Estado relativas as normas internacionais de direitos humanos, o Poder Executivo tem o dever de respeitar os direitos e liberdades fundamentais da pessoa. Sua obrigação, na realidade, é de predominantemente caráter negativo já que o dever consiste em se abster de todo ato que afirme esses direitos. O Poder Judiciário deverá oferecer um recurso efetivo contra toda violação (…)

Os direitos, garantias e liberdades, estipulados em um tratado internacional de direitos humanos são, por natureza, operativos, de vez que o objeto e a razão de ser de uma convenção de direitos humanos, assim como a clara intenção das partes, é reconhecer em favor das pessoas certos direitos e liberdades e não regulamentar suas relações entre si. A falta de operatividade coloca o Estado em mora frente à comunidade internacional.

A disposição que propomos coloca os direitos humanos no caminho da supremacia normativa e ética de nível supremo, superior à regras constitucionais, quando a coexistência de normas da Constituição e os tratados, ou entre estes, necessite da interpretação que determine qual é o Direito aplicável, atividade que dependerá geralmente do juiz…"

(Ricardo Luis Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, pp. 263 e 264, Editora Revista dos Tribunais, 1998).

Mas mesmo que, contra a evidência de textos expressos, teime-se em negar eficácia à Convenção Americana de Direitos Humanos, há os argumentos que seguem e que apontam para o mesmo sentido.

A correta exegese da norma constitucional (ou melhor, porque a verdade objetiva, mesmo no campo da hermenêutica, não pode ser alcançada, a exegese defensável da norma constitucional) tem de, necessariamente, partir de premissas que considerem e respeitem a natureza dos bens e interesses protegidos e principalmente as particularidades da interpretação constitucional e, designadamente, das normas que tutelam os direitos fundamentais.

As normas constitucionais têm uma estrutura diversa da das (normas) ordinárias: são complementação e do exame e descoberta dos valores culturais, políticos, econômicos e jurídicos que compõem a escala de valores esses cambiantes, mas que a própria Constituição trata de, esquematicamente, definir, deixando ao aplicador a tarefa. Nesse sentido:

Devido à posição que ocupam no sistema jurídico, os direitos fundamentais somente podem ser restringidos por normas de hierarquia constitucional ou por normas infraconstitucionais quando o próprio texto constitucional autorizar a restrição. Por isso, as restrições de direitos fundamentais ou indiretamente constitucionais…

A competência do legislador para impor restrições aos direitos fundamentais é limitada não apenas pela imposição da observância das condições referidas nas cláusulas de reserva qualificada e do limite do conteúdo essencial, como também pelo princípio da proporcionalidade. A vinculação entre competência e princípio da proporcionalidade estrita evita a regulamentação contrária aos direitos fundamentais naquele espaço após o conteúdo essencial e que se encontra a disposição do legislador para determinar o seu conteúdo ( Raquel Denize Stumm, Princípio da Proporcionalidade do Direito Constitucional de formular o juízo de valor correspondente e necessário ao preenchimento do respectivo conteúdo. Essa característica exige, ao lado dos métodos clássicos de hermenêutica, o uso de princípios próprios, como os da supremacia e da unidade da Constituição, da razoabilidade, entre outros ( cfr. Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação do Constituição , p. 141, Saraiva, 1996).

Como primeira premissa, portanto: o intérprete deve, para uma interpretação evolutiva, encontrar o conteúdo axiológico do programa da norma constitucional ou o ponto de vista normativo, sempre comprometido a uma creta escala de valores esquemática referida no conjunto do ordenamento.

A liberdade é um direito fundamental (axioma), que é restringido pela prisão. A Constituição pela importância para o homem dos direitos fundamentais, e particularmente da liberdade, estabelece um sistema que os protege, não só contra atos de poder também os do legislador ordinário. Parte dela ( da Constituição) as hipóteses de restrição aos direitos fundamentais, o que não exclui, quando a própria Constituição o autoriza, a possibilidade de uma lei infraconstitucional impor restrições necessárias à tutela de outros direitos fundamentais, só que mesmo nesse caso, de atuação do legislador ordinário, não se exclui o exame da razoabilidade do ato legislador pelo juiz Brasileiro, pp. 137, 146 e 147, n. 6.3. e 6.3.3., Livraria do Advogado, 1995).

Ou seja: a liberdade é um direito fundamental, especialmente protegido pela Constituição da República, que estabelece os casos em que esse direito pode ser restringido.

Como segunda premissa: mesmo que o artigo 5º, LXVII, da Constituição Federal permitisse, supondo verdadeira essa assertiva e supondo-o ainda em vigor, a intervenção do legislador ordinário, a lei por ele editada não estaria imune a críticas a partir do princípio da razoabilidade.

Antes de tudo, vale relembrar a seguinte crítica à hermenêutica constitucional adotada entre nós, que continua interpretando a nova ordem constitucional a partir de pontos de vista adequados à antiga ordem como se nada de novo ocorresse no sistema jurídico com o advento da nova Constituição, como se os valores perseguidos pela norma continuassem os mesmos e como se a sociedade permanecesse a mesma, prestigiando os mesmos valores:

Atente-se para a lição mais relevante: as normas legais têm de ser interpretadas em face da nova Constituição, não se lhes aplicando, automática e acriticamente, a jurisprudência forjada no regime anterior.

Deve-se rejeitar uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo( Luís Roberto Barroso, ob. C., p. 67 )

Pois bem, a primeira preocupação aqui é a de determinar se a liberdade pode ser restringida pelo legislador ordinário em obediência à chamada cláusula constitucional de reserva explícita ou a limites imanentes do direito fundamental liberdade.

O sentido literal do artigo 5º, LXVII, afasta, pois nele a isto não se alude expressamente, qualquer abertura para a legislação infraconstitucional; os casos de prisão civil pôr dívida são aqueles ali mencionados de modo expresso e explícito – depósito e inadimplemento de pensão alimentícia – e apenas esses casos. Nesse sentido: Ao próprio direito de liberdade a Constituição preferiu fazer valer nestas restritíssimas hipóteses outros direitos especialmente encarecidos, quais sejam: o de receber a pensão alimentar e o de ver restituída a coisa depositada ( Celso Ribeiro Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, p. 306, 2º volume, Saraiva, 1989).

Para que algum direito fundamental possa ser limitado fora das hipóteses em que a própria Constituição o fez ou que ela permite que o legislador ordinário o faça há de existir um conflito entre esse direito e outro também fundamental. Nesse sentido:

Revelam-se os limites imanentes implícitos quando ocorrer um conflito positivo de normas constitucionais, a saber entre uma norma consagrada de certo direito fundamental e outra consagradora de outro direito ou de diferente interesse constitucional ... ou seja, somente entre direitos válidos e bens e interesses constitucionalmente protegidos ( Raquel Denize Stumm, ob. c. p. 143, n. 6. 3. 2. )

Novamente devemos lembrar que o Brasil foi signatário da chamada Convenção Interamericana Sobre Direitos Humanos, realizada em 1969 em São José da Costa Rica, e bem assim é induvidoso que em razão do tratado internacional ter incorporado-se ao sistema jurídico pátrio, deve ser considerado como lei e a sua observância de rigor.

Finalmente, nesta linha, há julgado que ampara a presente tese, proferido em processo de Habeas Corpus contra a prisão decretada contra depositário infiel. Nesse aspecto afirma a citada decisão: "Assim, difícil contrariar-se a tese, que ora apoiamos, mostrando-se clara a impossibilidade de prisão civil por dívida (ou até mesmo pelo não cumprimento da obrigação contratual), exceção feita aos inadimplementos de débitos alimentares, podendo-se, até, diante de todo o exposto, discutir-se sobre ter continuado eficaz a previsão Constitucional Art. 5º, LXVII), que fala de outros casos de prisão civil de depositário infiel (...)".

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Sobre o autor
Celso Marcelo de Oliveira

consultor empresarial, membro do Instituto Brasileiro de Direito Empresarial, do Instituto Brasileiro de Direito Bancário, do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor, do Instituto Brasileiro de Direito Societário, do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, da Academia Brasileira de Direito Constitucional, da Academia Brasileira de Direito Tributário, da Academia Brasileira de Direito Processual e da Associação Portuguesa de Direito do Consumo. Autor das obras: "Tratado de Direito Empresarial Brasileiro", "Direito Falimentar", "Comentários à Nova Lei de Falências", "Processo Constituinte e a Constituição", "Cadastro de restrição de crédito e o Código de Defesa do Consumidor", "Sistema Financeiro de Habitação e Código de Defesa do Cliente Bancário".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Celso Marcelo. Impossibilidade de prisão civil em contratos com garantia de alienação fiduciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/625. Acesso em: 22 dez. 2024.

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