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Limites subjetivos da coisa julgada

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27/05/2018 às 09:15
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O artigo traz o entendimento da doutrina sobre os limites subjetivos da coisa julgada, além de comparativo entre o CPC/1973 e o CPC/2015.

I – A COISA JULGADA DIANTE DE TERCEIROS

 O novo texto processual  não mais associa ao conceito de coisa julgada material uma espécie de eficácia que torne imutável a sentença. A expressão “eficácia”, que nunca foi do agrado dos doutrinadores (no sentido que lhe atribuiu o art. 467, sob menção, porque não poderia ter espaço no mesmo rol das outras eficácias conhecidas e consentidas por robusta parcela da doutrina: declaratória, condenatória, constitutiva, executiva e mandamental), foi suprimida e substituída pela expressão “autoridade”.

A configuração da coisa julgada ao efeito declaratório da sentença, que foi consagrada por Hellwig, já havia recebido, no Brasil, a adesão de Pontes de Miranda (Tratado das ações, tiítulo I, pág. 163, e 184 e seguintes). Para Liebman (Eficácia e autoridade da sentença), a autoridade da coisa julgada alcança os efeitos  constitutivos e condenatórios da sentença.

Para Liebman (obra citada, pág. 37) há a autoridade da coisa julgada como qualidade da sentença e dos seus efeitos.

Assim, a coisa julgada não é o efeito ou dos efeitos da sentença, e sim uma qualidade, uma qualificação particular de tais efeitos, isto é, a sua imutabilidade. Independentemente da coisa julgada, a sentença tem sua eficácia natural obrigatória e imperativa, que deriva simplesmente de sua natureza de ato de autoridade, de ato do Estado, mas que está destinada a desaparecer, quando se demonstra que a sentença é injusta; a coisa julgada reforça essa eficácia porque torna impossível ou inoperante a demonstração de injustiça da sentença, como afirmou Enrico Tulio Liebman (oba citada, pág. 201). A eficácia natural da sentença atua com relação a todos; por outro lado, a coisa julgada só vale entre as partes, pelo que estas suportam a sentença sem remédio, ao passo que os terceiros podem destruí-la, demonstrando a sua injustiça. Porém, nem todos os terceiros estão habilitados a fazê-lo, e, sim, somente aqueles que têm interesse jurídico legítimo em tal sentido. 

A coisa julgada em sentido formal é qualidade da sentença, quando já não é recorrível por força da preclusão dos recursos. A coisa julgada em sentido material seria, por sua vez, a sua eficácia específica, e, propriamente, a autoridade da coisa julgada, e estaria condicionada à formação da primeira. Todas as sentenças são suscetíveis à coisa julgada formal; somente as sentenças que acolhem ou rejeitam a demanda no mérito obtêm o resguardo da coisa julgada material.

José Carlos Barbosa Moreira (Comentários ao código de processo civil, n. 254) criticou a redação dada ao antigo artigo 472 do CPC de 1973, pois os efeitos da sentença são reconhecidamente capazes de atingir a esfera jurídica de terceiros. Ali se dizia: "A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros".

A regra romana conservou-se como princípio fundamental: a coisa julgada atinge somente as partes não terceiros. Esses não podem ser prejudicados.

A doutrina, no direito comum, concebia a extensão da autoridade da coisa julgada a algumas categorias de terceiros que tivessem, em face da relação jurídica decidida, um interesse secundário. A sentença dizia respeito diretamente às partes, mas prejudicava, em certa consequência necessária, àqueles, mesmo estranhos ao processo, aos quais o negócio jurídico decidido tocasse acessoriamente.

Por outro lado, não há que falar em coisa julgada em termos de tutela de urgencia  seja cautelar ou satisfativa ou ainda de evidência(envolve situações em que se opera mais do que o fumus boni iuris, aliada à injustificada demora ao longo de todo o processo ordinário até a satisfação do interesse do demandante, com grave desprestígio para o Poder Judiciário, porquanto injusta a espera determinada).  

Na tutela de aparência busca-se o provável não a certeza.

No artigo 303, parágrafo sexto, do novo Código de Processo Civil atesta-se que a decisão que concede a tutela não fará coisa julgada, mas a estabilidade dos respectivos efeitos só será afastada por decisão que a rever, reformar ou invalidar, proferida em ação ajuizada por uma das partes, nos termos do § 2o deste artigo. Isso porque qualquer das partes poderá solicitar a revisão da decisão concedida por conta de uma tutela de urgência(parágrafo segundo), mas esse direito de rever, reformar, invalidar a tutela antecipada(hipótese de tutela de urgência) extingue-se após 2(dois) anos, contados da ciência da decisão que extinguiu o processo, nos termos do parágrafo primeiro daquele dispositivo, dando-se a chamada preclusão pro iudicato.


II – LIÇÕES DE SAVIGNY, IHERING, CHIOVENDA E BETTI

Savigny vislumbrou a extensão da coisa julgada a terceiros em razão de laços de representação que estes tivessem com uma das partes e ainda a terceiros cujo interesse estivesse representado no processo. É a chamada teoria da representação. Os sucessores das partes, a título universal ou singular, eram alcançados pela coisa julgada, porque, embora terceiros, teriam sido representados em juízo pela parte a quem sucederam; a sentença, na ação confessória ou negatória, contra um condômino, atingia os demais condôminos, estranhos ao processo, porque estes estariam representados no processo por aquele. Teixeira de Freitas, Paula Batista, dentre outros, seguiram a teoria preconizada por Savigny.

Os alemães, a partir das ideias de Ihering, construíram a teoria dos efeitos reflexos da coisa julgada, conforme a qual a coisa julgada produz efeitos diretos entre as partes, por elas queridos e previstos, mas também efeitos indiretos ou reflexos em relação a terceiros, não queridos nem previstos pelas partes, mas inevitáveis.

Na Itália, Chiovenda, Betti, Segni, Redenti, Carnelutti, acolheram essa teoria.

Para Chiovenda, a sentença existe e vale em relação a todos. Ainda, para Chiovenda (Principii di diritto processuale civile, 3ª edição,pág. 1.093), nas questões de estado, para os litisconsortes, sobre as questões decididas entre cada um deles e seu adversário. No entanto, os estudiosos de sua obra dizem que, na prática, procura-se limitar a relatividade das sentenças declaratórias de estado por meio de citação, no processo, de todos aqueles a quem podem prejudicar; e se acrescenta que a presença da parte autora, no processo anterior, equivale, quando menos, à aludida citação. 

Mas, Liebman (obra citada, pág. 212) não aceita tal ilação, e disse: "A presença da autora naquele processo, na qualidade de ré, não é, nem o mesmo, nem algo mais que sua presença como citada: é simplesmente algo distinto que tem consequências diferentes.".

Mas, afirmar que a sentença e, pois, a coisa julgada valem em relação a terceiros não quer dizer que possam prejudicar terceiros. Apenas quer dizer que terceiros não podem desconhecê-la, não que por ela possam ser prejudicados.

Chiovenda nos ensinou que há um prejuízo de fato que estende aquele que não afeta o direito de terceiros. Assim, por exemplo, a ação de reivindicação entre A e B, julgada procedente, C, credor de B, sofre prejuízo de fato, porque a garantia do crédito de C estava na coisa que deixou de pertencer a B. Mas o direito declarado não atingiu o direito de crédito de C, que permanece intato. A sentença entre A e B vale em relação a C, que, de resto, será obrigado a suportar o prejuízo de fato que a mesma lhe acarreta.

Por prejuízo jurídico se estende o que o terceiro sofre, se obrigado fosse a suportá-lo, quando o direito declarado na sentença é incompatível com o seu direito. Assim a sentença de reivindicação entre A e B declara direito incompatível ao de um terceiro C, que se julgar proprietário da coisa objeto de reivindicação. Entre o direito declarado na sentença entre A e B, seja este ou aquele o vencedor, e o direito de C há incompatibilidade, porque a sentença atribui a propriedade a uma das partes e C também se diz proprietário da mesma. Nesse caso, conquanto a sentença, como sentença entre A e B, valha em face de C, este não está sujeito a suportar tais efeitos, porque lhe acarretariam prejuízos jurídicos. A coisa julgada, nesses casos, não pode opor-se a terceiros.

 Veja-se o caso da venda a non domino. A corrente predominante afirma que o negócio é ineficaz, sendo existente e válido, corrente a qual se filia a maior parte da doutrina, como Serpa Lopes, Eduardo Espínola, J. X. Carvalho de Mendonça, Pontes de Miranda e Orlando Gomes. Já entendeu o Supremo Tribunal Federal que a venda a non domino não é nula de pleno direito, nem anulável. É negócio condicional. Na venda de coisa alheia incide o instituto da evicção, podendo haver intervenção de terceiro interessado, através da denunciação da lide, no curso do processo. Há uma verdadeira ineficácia relativa, pois que os efeitos do negócio jurídico não se produzem em relação a algum, ou alguns sujeitos de direito, mas se irradiam relativamente a outro, ou outros. No Brasil, ao contrário do sistema germânico, que assentou os princípios da presunção e fé pública, o código civil não adotou simultaneamente esses dois postulados, mas apenas o primeiro deles, de sorte que a presunção pode ser destruída por prova em contrário, que demonstre que a transcrição foi feita com base em venda a non domino (RE 85.223 - MG, RTJ 98/202). Cite-se o artigo 457 do Código Civil, segundo o qual “não pode o adquirente demandar pela evicção, se sabia que a coisa era alheia ou litigiosa”. Ao conceder-lhe essa faculdade, implicitamente, admite estar ele sujeito à reivindicabilidade do verdadeiro dono, como ensinou Pontes de Miranda (Tratado de direito privado, LV, § 5.603, 3, pág. 131). Isso porque a lei civil exprimiu a presunção iuris tantum, sem adotar a ficção de que o conteúdo do registro é absolutamente verdadeiro se nele confiou, de boa fé, o terceiro adquirente. O Brasil não seguiu os passos dos sistemas alemão e suíço. No CPC de 1973, falava-se na incidência do artigo 42 (alienação da coisa ou cessão do direito litigioso) e seus parágrafos. Mas o STF (RE 95.700 - PR, RTJ 107/713) já decidiu pela sua inaplicabilidade em hipótese de alienação posterior ao trânsito em julgado de acórdão que decidira negativamente quanto a pedido de reintegração de posse. Aliás, para Carlos Alberto Álvaro de Oliveira (Alienação da coisa litigiosa, 2ª edição, pág. 231), não se vislumbra qualquer subordinação entre a posição do alienante ou cedente e a do adquirente ou cessionário. Tratar-se-ia de uma só posição ocupada, sucessivamente, por dois sujeitos diversos em distintos momentos do tempo; haveria, quando muito, subordinação temporal, na linha de pensamento de De Marini (La successione,n. 75, pág. 244 e 245). Para Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (obra citada) tanto o adquirente quanto o cessionário não são terceiros. Fico com a posição de Wolfang Grunsky (Die veräusserung, pág. 36), para quem a extensão da coisa julgada é justificada pela dependência da posição jurídico-material do sucessor à do anterior, e, além disso, porque do atual titular do direito, pode ser exigido ficar ligado à sentença desfavorável para o seu antecessor (terceiros que tivessem sucedido a uma das partes na titularidade da relação já litigiosa, sujeitos à coisa julgada e à eficácia direta da sentença, em virtude de sua posição subordinada à do alienante ou cedente, como expôs Betti. Tem-se que a eficácia da sentença em relação ao sucessor a título particular é direta, e, por isso mesmo, entende-se como perfeitamente dispensável outro processo para que repercuta contra ou a favor do adquirente ou cessionário do direito litigioso. Para Carlos Alberto Alvaro de Oliveira (obra citada) não se pode cogitar de simples eficácia natural da sentença, uma vez que o sucessor não é terceiro, é parte. A legitimação do antecessor, que eventualmente permanece no processo, configura legitimação extraordinária. 

Betti desenvolveu a sua teoria comentando a Les Saepe (D.42.1.63), no seu Trattado dei limiti soggettivi della cosa giudicata in diritto romano. Disse: “Os limites subjetivos da coisa julgada são regidos por dois princípios fundamentais. O primeiro, de caráter negativo, estabelece que a decisão pronunciada entre as partes em causa é juridicamente irrelevante a respeito de terceiros estranhos ao processo, como coisa julgada que se pode a eles referir.”.

Assume esse princípio dois aspectos diversos, segundo a posição de terceiro em confronto com a relação decidida: a) o terceiro, que é sujeito de relação praticamente compatível com a decisão pronunciada entre as partes, mas pode sofrer em virtude dela um prejuízo de fato, acha-se na condição natural de não poder sofrer por causa da decisão um prejuízo jurídico, e, em consequência, não pode desconhecer-lhe a eficácia como coisa julgada entre as partes, ainda que  possa lesar um interesse seu não elevado ao grau de direito subjetivo (terceiros juridicamente indiferentes); b) o terceiro, que é sujeito de relação praticamente incompatível com a decisão, não deve (precisamente por força do enunciado princípio jurídico) sofrer em consequência da sentença daquele prejuízo que ela, por exclusão implícita, tenderia a proporcionar a direito seu. Esse terceiro pode, por consequência, desconhecer legitimamente a eficácia da decisão também como coisa julgada entre as partes, na medida em que seria por ela prejudicado (terceiros juridicamente interessados).

Na lição de Betti, esse princípio, de caráter negativo, é integrado por um segundo, de caráter positivo, por força do qual “a relação pronunciada entre as partes tem valor também em relação a determinados terceiros, como coisa julgada que se formou entre essas partes”. Ainda, Emílio Betti afirmou que esse princípio assumia duas formas diferentes, conforme se referisse: a) a terceiros participantes da relação ou estado deduzido em juízo, e neste caso significava que a coisa julgada, que se formou entre as partes, se comunicava àqueles terceiros, cuja posição seja, a respeito daquela relação, subordinada à posição de uma das partes em causa; b) a terceiros estranhos à relação decidida, e neste caso a coisa julgada que formou entre as partes não pode ser desconhecida por aqueles que são sujeitos de relação diversa, mas praticamente compatível com a decidida.

A subordinação do terceiro à parte, para legitimar a extensão da coisa julgada a esse terceiro, pode nascer das seguintes causas: a) sucessão de terceiro à parte da relação litigiosa, depois que essa se decidiu em juízo; b) substituição processual da parte ao  terceiro, por ter deduzido em juízo a sua relação jurídica; c) incindível conexão entre a relação jurídica do terceiro e a relação investida da coisa; d) dependência necessária da relação jurídica do terceiro em relação investida de coisa julgada. Nos dois primeiros casos, a extensão da coisa julgada ao terceiro é direta, nos dois últimos casos, pelo contrário, é reflexa.

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Ora, data vênia, a sucessão do terceiro à parte, na relação jurídica já deduzida em juízo, e a substituição processual não representam extensão da coisa julgada ultra partes, isso porque nem o sucessor nem o substituído processual são propriamente  terceiros, são partes. No caso da alienação de coisa litigiosa, a posição do alienante da coisa ou cedente é a de substituto processual. A coisa julgada atingiria o substituído, o adquirente ou cessionário, com eficácia direta na sentença em relação a um e outro, como ensinou Zanzucchi (Diritto processuale, n. 150, páginas 347 e 348).

De dificuldade, a terceira figura de subordinação que é a conexão incindível entre a relação jurídica de terceiro e a relação atingida pela coisa julgada, em virtude de situação que se apresente de caráter indivisível, e que deva ser única para todos. O exemplo que Ada Pellegrini Grinover nos traz, em suas notas a obra de Enrico Túlio Liebman (Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada, 115), é o da impugnação de deliberação da sociedade anônima por parte de um sócio, e que não poderia ser mantida ou anulada senão perante todos os sócios.

Para Liebman, nesse caso, não se deve falar em extensão da coisa julgada secundum eventum litis, sendo que a explicação do fenômeno seria outra; rejeitada a ação que visa à impugnação, não tem a sentença outro conteúdo que não o de declarar a improcedência do pedido formulado na ação proposta, ficando livre aos demais sócios a via processual para impugnar a mesma deliberação. Já o exercício vitorioso de uma ação por parte de um sócio atingiria o escopo comum a todas as outras, absorvendo-as e consumindo-as, por falta de interesse de agir, nas eventuais ações sucessivas, como afirmou Lieman (Ações concorrentes e pluralidade de partes legítimas à impugnação de um único ato).

Mas, José Carlos Barbosa Moreira (Coisa julgada: Extensão subjetiva, in Direito processual civil, 1971, pág. 281 e seguintes) já dizia que ao segundo sócio poderia exatamente interessar o resultado oposto obtido no primeiro processo (por exemplo, a declaração da validade da deliberação que a primeira sentença declarou nula).

A quarta figura da subordinação é dada, consoante Betti, pela dependência necessária entre duas relações jurídicas. Nesses casos - com o exemplo típico do litisconsórcio facultativo  entre o devedor e o fiador, na ação de cobrança proposta pelo credor - não encontra nenhum óbice quanto à sua atuação. A autoridade da coisa julgada não se estende ultra partes, porque a vinculação entre as várias situações jurídicas individuais é simplesmente lógica, mas não prática, como se lê, ainda, de José Carlos Barbosa Moreira (Litisconsórcio, pág. 30 e 145).

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Limites subjetivos da coisa julgada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5443, 27 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62565. Acesso em: 25 abr. 2024.

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