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A prisão do infiel depositário e os tratados internacionais de direitos humanos.

Breve crônica de uma clara incompatibilidade

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05/02/2005 às 00:00
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Por pura ficção, a norma transmite ao credor com a cláusula de alienação fiduciária o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel, na condição de possuidor direto e fiel depositário.

Sabe, Sancho, todas essas borrascas que nos sucedem são sinais de que breve há de serenar o tempo e hão de correr-nos bem as coisas, porque não é possível que o mal e o bem sejam duráveis; donde se segue que, havendo durado muito o mal, o bem está próximo"

(Cervantes)

1.Dos entulhos do regime militar ainda perdura entre nós – com absurda condescendência de parte significativa do sistema judiciário pátrio - o arcaico Decreto-lei nº 911/69, forjado que foi sob a égide do AI-5, artifício normativo que, nos sóbrios dizeres de José Damião de Lima Trindade, consolidou-se como "o mais infame texto jurídico de nossa história". [1]

Por pura ficção do engenho jurídico a serviço do autoritarismo então vigente, esse obscuro diploma normativo, concebido no franco intento de servir como instrumento de satisfação aos interesses das instituições financeiras bem como a entes públicos enquanto credores fiduciários [2], em seu artigo 1º transmite ao credor de atos negociais guarnecidos com a cláusula inerente à alienação fiduciária o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel assim alienada, impondo ao desavisado consumidor, independentemente da efetiva tradição do bem, a rarefeita condição de possuidor direto do objeto do financiamento acrescida dos encargos afetos à figura de fiel depositário de um produto que, à princípio, teve ele, consumidor, o ânimo único de simplesmente adquirir, jamais de resguardá-lo para oportuna devolução ao alienante.

Foi assim que o arbítrio militar revivesceu em prol da plutocracia nacional a até então esquecida figura da prisão civil por dívida dissociada da obrigação alimentar, remodelando nosso ordenamento jurídico com o espírito informador do antigo processo civil romano, onde, nos conta Cândido Rangel Dinamarco, era "prevalente o valor de pertinência entre o patrimônio a uma pessoa, muito maior do que o voltado à pessoa em si" [3], revigorando modalidade penitencial vedada entre nós desde o Brasil Colônia [4].

Resulta desde aqui prenunciado, que essas concepções repressivas urdidas pelos caudatários da classe dominante implicam em retrocesso histórico, a contar mais de dois séculos e, apesar de aparentemente convalidada pela parte final do preceito contido no artigo 5º, LXVII da Constituição Federal, a prisão civil decorrente de simples dívida de valor se afigura patentemente infundada além de visivelmente inconstitucional, fato que se tentará demonstrar ao longo deste escrito, porque sobre tal tema assenta-se o seu primacial objeto.

A infixidez dessa modalidade de prisão começa a se anunciar a partir do incontestável fato de que em meio ao liame negocial onde costumeiramente se emprega o comentado artifício afeto à alienação com garantia fiduciária não se pode, por maior esforço interpretativo que para tanto se empreenda, detectar condições jurídicas que indiquem a existência, nessas operações mercantis, da figura do fiel depositário.

Realmente, o chamado devedor fiduciante ( na realidade consumidor) simplesmente adquire um bem, objeto de seus anseios consumeristas, tão-só impelido pelo singelo ânimo de adquiri-lo, nada mais.

Diante dos nítidos contornos que informam essa espécie de relação – que caracteriza-se inequivocamente como vítrea relação de consumo – ao consumidor jamais transparece o ideal de atuar como "depositário" do bem adquirido, e tampouco os agentes ou representantes do ente fiduciário isso lhe esclarecem, visto que, repise-se, àquele só anima um único e exclusivo objetivo: adquirir um bem como verdadeiro e definitivo proprietário. Não como "possuidor direto" ou muito menos como "depositário fiel", situações jurídicas inexistentes no campo volitivo do adquirente, posto que produto direto, como visto, da obra de ficção forjada no texto do Decreto nº 911/69, já tantas vezes referido.

Para que haja a configuração dos encargos imanentes à figura do depositário, tanto o ordenamento material civil anterior ( art. 1.265) como o atual ( art.627) em redação idêntica, aliás, exigem a expressa consciência da obrigação de devolver o bem móvel dado em depósito, desde que o depositante o reclame, consciência e obrigação essas absolutamente não reproduzidas em meio ao liame de alienação fiduciária em garantia.

Ainda a respaldar as argumentações acerca da inexistência da obrigação de depósito nos encargos contratuais em questão, estipula o § 4º do artigo 1º do Decreto-Lei nº 911/69 ser dever do credor a entrega ao devedor do saldo remanescente à eventual revenda do bem apreendido.

Caso houvesse efetivamente o encargo do depósito entre os contratantes, jamais haveria a hipótese de ocorrer essa restituição, vez que o bem, às escâncaras, seria, então, integralmente do domínio do credor, inexistindo obrigação de restituir o saldo remanescente a quem quer que seja, em especial ao pretenso depositário. [5]

Ressumando clara a inexistência do depósito, não há como se decretar a prisão civil prevista no artigo 652 do novel Código Civil ( antes artigo 1.287 do C.C. revogado), mesmo que no afã de se atender aos sacros interesses das instituições financeiras.

Porém, e sem embargo desse arrazoado, que aqui foi exposto superficialmente e para fins meramente argumentativos, o objeto primordial deste relato, como já se assinalou desde seu título, reside na impossibilidade da prisão do nominado depositário infiel em face dos preceitos embutidos em tratados internacionais de direitos humanos subscritos por este país, os quais, diante dos instrumentos de incorporação encravados no texto constitucional, há muito revogaram os dispositivos infraconstitucionais, acima referidos, que permitiam, em caráter abstrato, a prisão do infiel depositário, muito embora segmento significativo do sistema judiciário pátrio, em especial a mais graduada Corte de Justiça deste país [6], que deveria primar pela prevalência dos direitos que servem como esteio à dignidade humana, insista em recusar vigência a esses pactos internacionais tão-só no desígnio de fazer preponderar os mecanismos de realização aos imperativos econômicos aqui já alinhavados, mesmo que assentados em aparato normativo frutificado do mais pérfido período ditatorial vivido em data recente.

Mesmo diante de tão excelsas decisões em contrário, aproveitando do senso de estarmos, ainda, a viver em uma democracia formal, onde se avizinha, no bojo do projeto de reforma do judiciário, a concretização do nefasto ideário inerente à súmula vinculante ( o mais novo anseio de nossas elites), e aproveitando o tempo antecedente a seu lastimável advento, vamos seguindo a senda traçada pelos desígnios prometidos desde o início deste pequeno escrito...

Pois, enquanto as vinculantes súmulas ainda não estão a viger, se é possível tentar fortalecer os lastros desta nossa prometida democracia através do debate, criticando, se necessário, as comentadas decisões judiciais, tal qual proposto pelas insuperáveis palavras de José Saramago ao enunciar que "também a sentença que antes parecera imutável para todo o sempre oferece subitamente outra interpretação, a possibilidade duma contradição latente, a evidência do seu erro próprio". [7]

2.Já atingido os primórdios do terceiro milênio, não se pode conceber que pessoas, via de regra hipossuficientes, sejam relegadas muitas vezes à clandestinidade para evitarem prisões tão-só porque, em função de restritiva e excludente política econômica hoje preponderante, tenham sido relegadas à insolvência e não possam, destarte, honrar com os sacrossantos créditos titularizados pelas superprotegidas instituições financeiras.

Não é possível, em suma, que os interesses creditícios bradados pelas entidades econômicas sejam tão valorizados pelo Poder Público a ponto de primar não só sobre a liberdade como, lastimavelmente, sobre a dignidade das pessoas, engendrando-se parafernália jurídica, como o comentado Decreto-lei nº 911/69 para reduzir a máquina estatal a mero instrumento a serviço da realização daqueles interesses.

Nunca antes veio tão bem a calhar o preciso pensamento desenvolvido por Engels a respeito das origens do Estado, quando enfatizou que " a força coesiva da sociedade civilizada constituiu o Estado, que, em todos os períodos típicos da história, foi exclusivamente o Estado da classe dominante e, em todos os casos, uma máquina essencialmente destinada a reprimir a classe oprimida e explorada". [8]

Justamente para se pôr termo e limites à hipertrofia do poder e arbítrio do Estado quando utilizado para guarnecer interesses de uma minoria ocasional, foi que as nações ditas "livres e civilizadas", reunidas em assembléia logo após o término dos genocídicos eventos defluentes da 2º grande conflagração mundial, proclamaram o que se nominou como Declaração Universal dos Direitos Humanos [9], prometendo – dentre inúmeras garantias de certo ponto singelas e óbvias, mas que por assim serem nem sempre são cumpridas - a de que toda pessoa – seja rica ou pobre – tem o direito à liberdade e proteção à sua dignidade ( art. 1º), e detém também o direito de não ser submetida a tratamento desumano ou degradante. (art. 5º).

Por influxo dessa primeira conclamação, os Estados pactuantes, objetivando regulamentar e melhor normatizar toda essa messe de direitos, elaboraram inúmeros outros tratados internacionais que procuram atribuir condição mínima e suportável de vida à pessoa humana, como, por exemplo, o incorporado pela CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA), de 1969, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, e introduzida no âmbito do direito interno por força do Decreto nº 678/92.

Esse instrumento legal, para o que aqui interessa, preceitua em seu Artigo 7º que " ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar".

Tal comando, aliás, já havia sido incorporado em tratado precedente, urdido em 1966 e denominado PACTO INTERNACIONAL DE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, que de maneira bem mais ampla, difundiu em seu art. 11 a seguinte garantia: " Ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual".

À semelhança do anterior, esse pacto teve a vigência introduzida em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992.

É fácil inferir que tais tratados vedam a prisão por dívidas, excetuando-se, pelo caráter humanitário que lhe inspira, a decorrente de débito alimentar.

No mais, eles tendem a imprimir contornos de civilidade no âmbito dos Estados pactuantes para impedir, conforme antes assinalado, que os direitos básicos de liberdade e dignidade do ser humano sejam suprimidos, tão-só para satisfazer interesses de corporações econômicas, evitando que o próprio Estado sirva como instrumento de consecução desses interesses.

Mas, infelizmente, como dito, esses tratados não vêm encontrando o esperado cumprimento por parte preponderante daqueles que, por dever de ofício e de judicatura, deveriam, teoricamente, velar intransigentemente pela concretitude dos princípios constitucionais, que revestem as disposições encontradas nesses pactos com roupagem de normas de ordem constitucional, não menos que isso, tornando sempre presente a indagação lembrada por Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari quando defrontado com o que chamou de estelionato internacional praticado pelo Brasil face ao dilema: o que fazer, então, com um tratado internacional?

"Será que as aulas de Direito Internacional Público têm alguma validade, ou apenas representam uma espécie de respiro acadêmico entre uma aula de Processo Civil e outra de Processo Penal, essas sim, consideradas por qualquer estudante como pedras angulares da formação acadêmica?" (10)

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E os argumentos utilizados para justificar a perpetuação do status quo, autorizar o descumprimento dos acordos internacionalmente assumidos pelo país, e persistir na consolidação da preponderância dos imperativos econômicos sobre o real sentido do justo vão desde a alusão à soberania interna do Brasil, que não pode ser aviltada por disposições difundidas em tratados internacionais em contraposição aos ditames de seu direito interno [11], até a empobrecida tese de que os pactos internacionais, por ostentarem o feitio de simples normas ordinárias não teriam como afastar a vigência do ordenamento infraconstitucional já consolidado, dado que os tratados regulam matérias de âmbito genérico, não podendo revogar a precedente regulamentação normativa, de caráter especial [12].

Apesar do conservadorismo reinante na maior parte daqueles que compõem o sistema jurisdicional pátrio, podemos aqui repisar que do confronto do que no corpo constitucional vem escrito, a dignidade da pessoa humana – em que pesem as enormes barreiras e adversidades outras impostas por aquele já anotado conservadorismo – continua sendo o aporte primacial dos atos e decisões que deveriam nortear esta nossa república, ainda que, como visto, esse singelo mandamento se mostre tão difícil de ser cumprido.

Ela – a dignidade humana – vem predisposta em meio à ordem constitucional vigente como um dos fundamentos básicos desta República, que deveria, frente a locução estampada no art. 1º, III, da Carta Política que lhe lastreia, se manifestar como um Estado Democrático de Direito, e não outra coisa onde o princípio afeto à prevalência daqueles valores não encontrasse vigência, ressumando sempre e sempre subalterno a interesses outros, como, v. g., os de ordem econômica, política, governamental, enfim (13).

Isso ressuma tão claro do texto constitucional que o subsequente art. 5º, em seu parágrafo 2º dita, de maneira palmar que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados" ( note-se aqui a referência à terminologia "princípios"), "ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".

A dogmática constitucional encontra desfecho, no raciocínio que se tenta desenvolver neste modesto escrito, no segmento imperativo contido no precedente parágrafo 1º do mesmo artigo 5º que, com todas as letras, dispõe: " As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata".

Destarte, ao contrário do entendimento esposado nas excelsas decisões contrárias ao que aqui se procura sustentar, bem como nos anacrônicos excertos doutrinários que lhes servem de parâmetro, as disposições constitucionais e supraconstitucionais que procuram outorgar base mínima para a salvaguarda do princípio republicano afeto à preservação da dignidade humana não se afeiçoam como meros cadernos de boas intenções, desses que não extrapolam jamais o letargo característico das inutilidades jurídicas concebidas neste país.

Não.

Por força e obra do ideário constitucional, tais preceitos, principalmente os encontrados em Tratados Internacionais de Direitos Humanos, ingressam no âmbito jurídico interno revestidos de aplicabilidade imediata, mercê do claro mandamento político acima transcrito e lembrado, com foros de normas de natureza constitucional.

Guardando a devida reverência aos reducionistas julgados elencados ao longo deste relato, e a fim de abrir condições para a necessária crítica de seus teores, ficamos com as lembranças do constitucionalista GUSTAVO BINENBOJM, que no curso de lúcidas observações, pondera que "costuma-se repetir, de forma até mecânica, que "decisão judicial não se critica, apenas se cumpre". Tal frase, em sua despretensão, revela a herança positivista e autoritária de nossa tradição jurídica".

"Por certo – conclui citado jurista – o dever de submissão às decisões emanadas do Poder Judiciário – e mesmo de um Tribunal Constitucional – não importa necessariamente a sua aceitação acrítica por quem quer que seja. Decisão judicial se critica sim: nos autos, por meio de recurso cabível, nas obras doutrinárias, nos bancos universitários, na imprensa ou até mesmo em sedes menos ortodoxas, como conselhos comunitários e associações de moradores" (14).

Fechando este parêntese e volvendo ao centro do campo cognoscível deste artigo, podemos afirmar, ainda escudados nos dizeres do já mencionado GUSTAVO BINENBOJM que a construção da teoria do Direito Constitucional foi sedimentada sobre categorias mínimas de direitos, que se enfeixam no chamado mínimo existencial de todas as constituições, proporcionando as condições materiais para o exercício dos direitos, coincidindo com os direitos fundamentais, especialmente os de ordem econômica, social e culturais básicos, esteios precípuos para o exercício das demais liberdades civis. [15]

Esse mínimo existencial, chamado por outros substancialismo constitucional, é na essência a explicitação das bases do contrato social, e na visão de autores como Lenio Luiz Streck, atuam como mecanismo para a efetividade do Estado Democrático de Direito, que depende, no sentir do mencionado jurista, "muito mais de uma ação concreta do Judiciário do que de procedimentos legislativos e administrativos" [16].

Continuando a desenvolver seu raciocínio, conclui de forma inovadora o referido autor que " (...) naquilo que se entende por Estado Democrático de Direito, o Judiciário, através do controle da constitucionalidade das leis, pode servir como via de resistência às investidas dos Poderes Executivo e Legislativo, que representem retrocesso social ou a ineficácia dos direitos individuais ou sociais. Dito de outro modo, a Constituição não tem somente a tarefa de apontar para o futuro. Tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional ( explícita ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram ( ou tentam retirar) conquistas da sociedade. Veja-se, nesse sentido, a importante decisão do Tribunal Constitucional de Portugal, que aplicou a cláusula da "proibição do retrocesso social", inerente/imanente ao Estado Democrático e Social de Direito: "... a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito constitucional deste deixa de consistir ( ou deixa de consistir apenas) numa obrigação positiva. O Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social".(Acórdão n. 39/84 do Tribunal Constitucional da República Portuguesa) [17]

Debruçando-se sobre o tema afeto à eficácia das garantias fundamentais gravadas na Constituição, pontifica FLÁVIA PIOVESAN ao adotar a concepção de Ronald Dworkin; "(...) que o ordenamento jurídico é um sistema no qual, ao lado das normas legais, existem princípios que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos. Estes princípios constituem o suporte axiológico que confere coerência e estrutura harmônica a todo o sistema jurídico. O sistema jurídico define-se, pois, como uma ordem axiológica ou teleológica de princípios jurídicos que apresentam verdadeira função ordenadora, na medida que salvaguardam valores fundamentais. A interpretação das normas constitucionais advém, desse modo, de critério valorativo extraído do próprio sistema constitucional". [18]

E acrescenta " quão acentuada é a preocupação da Constituição em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar da pessoa humana, como imperativo de justiça social. Na lição de Antonio Enrique Pérez Lunõ: "Os valores constitucionais possuem uma tripla dimensão: a) fundamentadora – núcleo básico e informador de todo o sistema jurídico-político; b) orientadora – metas ou fins pré-determinados, que fazem ilegítima qualquer disposição normativa que persiga fins distintos, ou que obstaculize a consecução daqueles fins enunciados pelo sistema axiológico constitucional; e c) crítica – para servir de critério ou parâmetro de valoração para a interpretação de atos ou condutas. (...) Os valores constitucionais compõem, portanto, o contexto axiológico fundamentador ou básico para a interpretação de todo o ordenamento jurídico; o postulado-guia para orientar a hermenêutica teleológica e evolutiva da Constituição; e o critério para medir a legitimidade das diversas manifestações do sistema de legalidade". Neste sentido, o valor da dignidade da pessoa humana impõem-se como núcleo básico e informador de todo o ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional". [19]

Arrematando: "atente-se ainda que, no intuito de reforçar a imperatividade das normas que traduzem direitos e garantias fundamentais, a Constituição de 1988 institui o princípio da aplicabilidade imediata dessas normas, nos termos do art. 5º, parágrafo 1º. Este princípio realça a força normativa de todos os preceitos constitucionais referentes a direitos, liberdades e garantias fundamentais, prevendo um regime jurídico específico endereçado a estes direitos. Vale dizer, cabe aos Poderes Públicos conferir eficácia máxima e imediata a todo e qualquer preceito definidor de direito e garantia fundamental. Este princípio tenta assegurar a força dirigente e vinculante dos direitos e garantias de cunho fundamental, ou seja, objetiva tornar tais direitos prerrogativas diretamente aplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. No entender de Canotilho, o sentido fundamental desta aplicabilidade direta está em reafirmar que "os direitos, liberdades e garantias são regras e princípios jurídicos, imediatamente eficazes e actuais, por via direta da Constituição e não através da auctoritas interpositio do legislador. Não são simples norma normarum mas norma normata, isto é, não são meras normas para a produção de outras normas, mas sim normas diretamente reguladoras de relações jurídico-materiais". [20]

A infundada insistência em se tentar deferir sobrevida ao já cambaleante Decreto-Lei nº 911/69, privilegiando, destarte, os demarcados interesses das instituições financeiras, alicerçando essa tendência em uma mal arrevesada interpretação do que dita o art. 5º, LXVII, da C.F., contraria, de maneira frontal, o que determinado em outro Tratado também chancelado pelo Estado Brasileiro, nomeadamente o art. 27 da Convenção de Viena, que reza: "Uma parte não pode invocar disposições de seu direito interno como justificativa para o não-cumprimento do tratado". [21]

Ora, todos esses pactos internacionais de proteção dos Direitos Humanos são normas vinculantes do Estado. Mais que isso, como já enfatizado, adentram no cenário jurídico do país sob o status de preceitos constitucionais face ao permissivo embutido no art. 5º, § 2º da Constituição Federal.

Acerca das teorias monista e dualista que informam a sistemática de incorporação dos Tratados Internacionais no âmbito interno dos países que os subscreveram, argumenta ainda FLÁVIA PIOVESAN que "a doutrina predominante tem entendido que, em face do vazio e silêncio constitucional, o Brasil adota a corrente dualista, pela qual há duas ordens jurídicas diversas – ordem interna e a ordem internacional. Para que o tratado ratificado produza efeitos no ordenamento jurídico interno, faz-se necessária então a edição de um ato normativo. No caso brasileiro esse ato tem sido um decreto de execução, adotado pelo Presidente da República, com a finalidade de conferir execução e cumprimento ao tratado no âmbito interno".

Continuando, conclui a referida jurista que "essa visão não se aplica, contudo, aos tratados de direitos humanos que, por força do artigo 5º, parágrafo 1º da C.F., têm aplicação imediata. Isto é, diante do princípio da aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, os tratados de direitos humanos, assim ratificados, irradiam efeitos nos cenários internacional e interno, dispensando-se a edição de decreto de execução. Já no caso dos tratados tradicionais, há a exigência do aludido decreto. Logo, a Constituição adota um sistema jurídico misto, na medida em que para os tratados de direitos humanos acolhe a sistemática e incorporação automática, enquanto que para os tratados tradicionais acolhe a sistemática da incorporação não- automática". [22]

Concluindo, a seguir: "No que diz respeito à hierarquia dos tratados, também percebe-se que a Carta Constitucional acolhe um sistema misto, de modo a conjugar regimes jurídicos diferenciados – um atinente aos tratados de direitos humanos e outros aos tratados tradicionais.

"Ineditamente, prevê o texto, no artigo 5º, parágrafo 2º, que os direitos e garantias expressos na Constituição "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte". A Constituição de 1988 inova, assim, ao incluir, dentre os direitos constitucionalmente protegidos, os direitos enunciados nos tratados internacionais de que o Brasil seja signatário. Ao efetuar tal incorporação, a Carta está a atribuir aos direitos internacionais uma natureza especial e diferenciada, qual seja, a natureza de norma constitucional. [23]

Portanto, a par de tudo o que foi dito e redito, aflora a inexorável conclusão de que o obsoleto permissivo embutido no questionado art. 4º do Dec.-lei nº 911/69 bem como o encravado no artigo 652, do Código Civil em vigor, frente aos preceitos irradiados dos pactos internacionais referidos e do conjunto de princípios informadores desta nossa decantada República, encontram-se com sua eficácia irremediavelmente suprimida, por se mostrarem francamente inconstitucionais.

E nem se pense que essas asserções seriam elididas pela aparente dicotomia de comandos emergentes dos preceitos constitucionais suscitados, quando confrontados pelo inserido no inciso LXVII, última figura, do mesmo art. 5º da CF, pois, em matéria de antinomia derivada de preceitos regentes de direitos humanos, há de prevalecer a norma mais favorável à vítima.

A propósito do tema, pontifica ANTONIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE, ex-integrante da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que "não há mais pretensão de primazia de um ou outro (direitos), como na polêmica clássica entre monistas e dualistas. No presente domínio de proteção, a primazia é da norma mais favorável às vítimas, seja ela norma de direito internacional ou de direito interno. Este e aquele aqui interagem em benefício dos seres protegidos. É a solução expressamente consagrada em diversos tratados de direitos humanos, da maior relevância por suas implicações práticas". [24]

Eliminando qualquer dúvida sobre a incidência dos comandos elencados nos pactos internacionais de proteção de direitos humanos, mesmo quando haja, no direito interno, dispositivos aparentemente conflitantes, fazemos uso do que preconiza Fábio Konder Comparato ao pontificar: "...Sem entrar na tradicional querela doutrinária entre monistas e dualistas, a esse respeito, convém deixar aqui assentado que a tendência predominante, hoje, é no sentido de se considerar que as normas internacionais de direitos humanos, pelo fato de exprimirem de certa forma a consciência ética universal, estão acima do ordenamento jurídico de cada Estado. Em várias Constituições posteriores à 2ª Guerra Mundial, aliás, já se inseriram normas que declaram de nível constitucional os direitos humanos reconhecidos na esfera internacional. Seja como for, vai-se firmando hoje na doutrina a tese de que, na hipótese de conflito entre regras internacionais e internas, em matéria de direitos humanos, há que prevalecer sempre a regra mais favorável ao sujeito de direito, pois a proteção da dignidade da pessoa humana é a finalidade última e a razão de ser de todo o sistema jurídico". [25]

3 É verdade. Vivemos em um Estado capitalista. Mas contrariando a própria lógica desse velho e desumano sistema econômico, aqui, neste país, aos bancos e instituições congêneres, o capitalismo se apresenta sem qualquer possibilidade de risco [26], de perda de seu sacrossanto lucro; e, se isso ocorrer, pobre devedor, o cárcere será logo invocado...

No ideário daqueles que forjaram o feixe de normas oriundo do mais pérfido período ditatorial vivido, em data recente, neste Brasil, e por quem, mesmo ante a notória obsolescência dessas inanes normas ainda insiste em aplicá-las, os interesses econômicos são divinos, onipotentes, suficientemente relevantes para justificarem a invocação do aparato Estatal como meio de sua concretização, sobrepujando, inclusive, a pobreza do devedor, suas dificuldades financeiras até mesmo para manter sobrevivência digna, solapando sua liberdade pela simples notícia de uma mísera dívida monetária um dia lastimavelmente contraída com as portentosas instituições, para a qual historicamente o Estado, diante de sua hipertrofia, a tudo provê.

Mas, é válido sublinhar, nem tudo está perdido em termos de cumprimento das obrigações internacionalmente assumidas pelo país.

Corrente jurisprudencial mais consentânea com o tema atreito à dignidade da pessoa humana, informada, inclusive, pelos ideais irradiados dos tratados aqui expendidos, têm, com inegável acerto, repelido a possibilidade da medieva prisão civil por dívidas em função da incidência, direta, daquelas obrigações constantes desses vários pactos.

Para simbolizar o conteúdo e significado dessa bem-vinda corrente pretoriana, fazemos uso de excerto da pioneira decisão cunhada pelo Juiz Dyrceu Cintra, membro do 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, nos autos do habeas corpus nº 493.158-0/5, cujo sublime teor a transformou em referência imanente ao tema em testilha, que por bem servir como esteio ao que até aqui se tenta expor, segue abaixo transcrita:

"...Assim, cabe analisar se é possível aquela forma de coação, ou, em outras palavras, se o poder estatal de exercer a violência legítima, em nome da preservação da ordem jurídica, pode ser utilizado para proteger o direito do credor fiduciário, como feito, no caso para levar o devedor e depositário à prisão.

Neste ponto, entende-se que, mesmo persistindo a obrigação do depositário de entregar o bem ou seu equivalente em dinheiro, o único caminho a ser tomado contra ele, caso não as cumpra, é o da execução.

Não é possível coagi-lo mediante prisão, hoje em dia, por ser inconstitucional a prisão do depositário infiel.

Nem se cogita de diferenciar, como fazem diversos julgados (1º TAC-SP – AI 684.524-7 – rel. Oscarlino Moeller; 1º TAC-SP – AC 614.320/96 – rel. Ary Bauer; 1º TAC-SP AI 438.938-8 – rel. Bruno Netto), o depósito de alienação fiduciária em garantia daquele decorrente de típico contrato de depósito, em que alguém, por força de lei ou contrato, recebe objeto móvel alheio para guardá-lo de conformidade com o art. 1.165 e 1.283 do Código Civil.

É que a inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel – de qualquer depositário infiel – vem ao direito interno por via do direito internacional. Mais precisamente, do sistema internacional de proteção dos direitos humanos.

Saliente-se de início que o conteúdo básico dos direitos fundamentais da pessoa humana e seu caráter universal são realidades hoje assentadas, sobretudo após a Conferência da ONU sobre o tema, realizada em Viena, em junho de 1993. Uma ordem jurídica que aspire a justiça só pode ser construída com a incorporação daqueles direitos, sistematizados e expandidos a partir da Declaração de direitos da ONU, de 1948. Tal incorporação é feita pelo direito interno dos Estados soberanos, basicamente, por proclamações constitucionais e por adesão a pactos internacionais.

O Brasil é signatário dos principais pactos internacionais sobre direitos humanos, inclusive o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado na legislação interna por força do Decreto nº 591, de 6.7.92, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ao qual o Brasil aderiu por força do Decreto nº 678, de 6.7.92.

Os pactos que o Brasil ratifica passam a vigorar como lei interna.

Mais que isto, por força do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, o rol daquela é complementado pelos direitos e garantias fundamentais previstos nos tratados e convenções internacionais. Consequentemente, entre nós, por vontade constitucional, os direitos e garantias fundamentais proclamados nas convenções ratificadas pelo Brasil têm status de norma constitucional.

No atual estágio de evolução das relações entre os povos é crescente a preocupação com o respeito às regras do direito internacional. À medida em que os Estado assumem compromissos mútuos em convenções internacionais, que diminuem a competência discricionária de cada contratante, eles restringem sua soberania e isto constitui uma tendência do constitucionalismo contemporâneo, que aponta a prevalência da perspectiva monista internacionalista para regência da relação entre direito interno e Direito Internacional (Pedro Bohomoletz de Abreu Dallari, "Recepção pelo Direito Interno das normas de Direito Internacional Público – parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Brasileira de 1988, trabalho acadêmico).

Hoje, a primazia do Direito Internacional é clara e se evidencia, segundo Max Soresen, "por la regla bien estabelecida de que un Estado no puede invocar las disposiciones de su derecho interno para disculpar la falta de cumprimento de sus obligaciones internacionales, o para escapar a las consecuencias de ella". ( Manual de derecho internacional, México, Fondo de Cultura Económico, 1992).

Segundo o referido autor, "El Estado es libre para dejar encargado a sus tribunales del cumplimiento de sus obligaciones internacionales dentro de su territorio (...)Pero, todo conflito entre el derecho internacional y el derecho interno que queda producir un incumplimiento de una obligación internacional, implica la responsabilidad del Estado. Como corolario, la norma de derecho interno que sea contraria al derecho internacional es considerada por los tribunales internacionais, desde el punto de vista de su sistema, como si no existiese".

Ao assentar que a proteção dos direitos humanos constitui "objetivo prioritário das Nações Unidas" e "preocupação legítima da comunidade internacional", a Conferência reafirmou o dito de Norberto Bobbio de que os sujeitos daqueles não são os Estados ou os cidadãos de algum Estado, mas todos os homens, como verdadeiros "cidadãos do mundo".(Presente e futuro dos direitos do homem, em "A era dos direitos", Campus, 1992, p.30).

Por isto mesmo, "os direitos humanos não são mais matéria de exclusiva competência das jurisdições nacionais" e "sua observância é exigência universal, consensualmente acordada pelos Estados na Conferência Mundial, e ainda mais cogente para países como o Brasil, que aderiram voluntariamente às grandes convenções existentes nessas esfera". (J A Lindgren Alves, "O sistema internacional de Proteção dos Direitos Humanos e o Brasil, em Os Direitos Humanos como tema global, Perspectiva, 1994, p. 41).

(...) A norma internacional tem sua forma própria de revogação, a denúncia, só podendo ser alterada por outra norma de categoria igual ou superior, internacional, e não por lei interna. É o que tem sustentado o Juiz Antonio Carlos Malheiros, em diversos votos, com o apoio da doutrina de Haroldo Valladão e do Ministro Philadelfo Azevedo, para sustentar a inconstitucionalidade da prisão do depositário de bem por força do que dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos (v.g. 1º TAC-SP HC 674.380-2 – j. em 14.2.96).

E, de fato, tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) quanto o Parto Internacional de Direitos Civis e Políticos – dos quais não pode destoar a legislação infraconstitucional – impedem a prisão do depositário infiel.

(...) Ambas as proibições se aplicam ao caso de depósito contratual ou voluntário.

Para a Convenção Americana, a única exceção é a relacionada com a obrigação alimentar, de que ora não se cuida.

Nem se diga que a prisão do depositário infiel de bem alienado fiduciariamente não é prisão por dívida. Tanto o é que o depositário, normalmente o próprio devedor fiduciante, pode ser executado por quantia certa como prevê o artigo 906 do Código de Processo Civil.

A prisão visa justamente a que ele cumpra sua obrigação contratual.

Daí sua inconstitucionalidade, pela incompatibilidade com a regra da Convenção Americana de Direitos Humanos, à qual o Brasil aderiu em 6.11.92, por força do Decreto n. 678, sem reservas, e passou a integrar o sistema constitucional garantidor dos direitos fundamentais das pessoas por força do que contém o § 2º do artigo 5º da Constituição Federal". (27)

Ou, ainda, decisões como a veiculada pelo Min. Marco Aurélio, membro do STF, no julgamento do Habeas Corpus nº 72183-4-SP, onde assim proveu:

"(...) Ainda que se pudesse colocar em plano secundário os limites constitucionais, a afastarem, a mais não poder, a possibilidade de subsistir a garantia da satisfação do débito como meio coercitivo, no caso de alienação fiduciária, que é a prisão, tem-se que essa, no que decorre não da Carta Política da República, que para mim não a prevê, mas do Decreto-Lei nº 911/69, já não subsistente na ordem jurídica em vigor, porquanto o Brasil, mediante o Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992, aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos, ao chamado Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969. É certo que somente o fez cerca de vinte e dois anos após a formalização. Entrementes, a adoção mostrou-se linear, consignando o artigo 1º do Decreto mediante o qual promulgou a citada Convenção que a mesma há de ser cumprida tão inteiramente como nela se contém. Ora, o inciso VII do art. 7º revela que: " ninguém deve ser detido por dívidas".Este princípio não limita, os mandados de autoridade judiciária competente, expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar". Constata-se, assim, que a única exceção contemplada corre à conta de obrigação alimentar. A promulgação sem qualquer reserva atrai, necessariamente e no campo legal, a conclusão de que hoje somente subsiste uma hipótese de prisão por dívida civil, valendo notar a importância conferida pela Carta de 1988 aos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. A teor do disposto no § 2º do art. 5º, tais documentos geram direitos e garantias individuais.

(...) Em síntese: hoje não mais subsiste o Decreto-lei nº 911/69 na parte em que dispunha sobre prisão civil quando não pagas as prestações ajustadas e ausente a devolução do bem por aquele que, a um só tempo, em mesclagem de qualificações, o adquiriu e o alienou ao credor fiduciário".

Dessa linha de interpretação evolutiva, não diverge a corrente jurisprudencial sedimentada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça e outras Cortes do País, conforme se infere dos seguintes arestos:

"HABEAS CORPUS – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – INADMISSIBILIDADE – PRECEDENTES DO STJ E STF – SEGURANÇA CONCEDIDA.

O art. 5º, §2º da CF dispõe que os direitos e garantias expressos na constituição não excluem outros decorrentes do regime jurídico e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais que o país seja parte. Por sua vez, no pacto de San José da Costa Rica, dispôs-se: ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar. (Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), art. 7º, item 7). Ilação inafastável a de que deixa de ser possível a prisão do depositário infiel. Em trabalho publicado na revista dos tribunais sob o título de prisão civil do depositário infiel em face da derrogação do art. 1.287 do Código Civil pelo Pacto de São José da Costa Rica, Paulo Restiffe Neto e Paulo Sérgio Resiffe sustentam que embora constitucional a permissão de prisão civil do infiel depositário, está em plena vigência, como norma de caráter geral, o Pacto de San José da Costa Rica, derrogatório de todas as previsões legislativas de caráter geral sobre prisão civil, principalmente o art. 1.287 do Código Civil e os artigos 885, par. único; 902, § 1º e 904, par. único, todos do CPC". ( HC nº 99.017387-9, de Fraiburgo, Des. João José Schaefer – TJSC – HC00.019088-4ª C. Cív. – Rel. Des. Pedro Abreu, j. 09.11.2000).

"HABEAS CORPUS – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – 1. Cabe habeas Corpus para afastar a possibilidade de prisão civil a ser decretada em sentença proferida nos autos de ação de depósito, na qual o paciente, conforme informações do Juízo de Direito, será compelido a depositar o bem alienado fiduciariamente, ou o equivalente em dinheiro, sob pena de prisão, sendo irrelevante que a execução do referido decisum esteja subordinada ao seu trânsito em julgado. 2. A jurisprudência deste Tribunal (Resp. nº 149.518-GO, Corte Especial, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 05.05.99) firmou-se no sentido de não admitir a prisão civil de depositário infiel vinculado a contrato de alienação fiduciária. 3. Recurso de habeas corpus provido". (STJ – Ac. 199901043204 – RHC 9304-MG- 3ª T., rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – DJU 27.03.2000, p. 00091).

" HABEAS CORPUS – PRISÃO CIVIL – DEPOSITÁRIO INFIEL – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – Decidiu a Corte Especial, ao julgar a assentada 20.10.2000, o HC 11.918-CE, manter a sua anterior orientação, consubstanciada no julgamento proferido no Resp. nº 149.518-GO, no sentido de que é ilegítima a prisão do devedor que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária. II- Habeas Corpus concedido". ( STJ. HC 15332-SP; 3ª T. Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJU 30.04.2001, p. 130).

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA – PRISÃO CIVIL - IMPOSSIBILIDADE – POSIÇÃO UNIÂNIME DO STJ – O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ATRAVÉS DE SUA CORTE ESPECIAL, NO RESP. 149518, JULGADO EM 11.5.99, RELATADO PELO MIN. RUY ROSADO DE AGUIAR, POR UNANIMIDADE DE VOTOS, UNIFORMIZOU A JURISPRUDÊNCIA NO SENTIDO DE QUE NÃO CABE A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL EM CONTRATOS DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA, PORQUE NÃO EXISTE DEPÓSITO EFETIVO NA ESPÉCIE- RECURSO PROVIDO. ( TAPR – AC 142766500 – Curitiba, 4ª C. Cív., Rel. Juiz Clauton Camargo, DJPR, 17.03.2000).

Confira-se, ainda, os seguintes julgados: STJ-RHC 10826 PR – 3ª T, Rel. Min. Carlos Albreto Menezes Direito, DJU 09.04.2001, p. 00350; STJ RHC 10609-RS, 2ª T., Relª Minª Eiana Calmon, DJU 12.03.2001, p. 115; STJHC 14470 –DF-3ªT., DJU 05.02.2001, p. 96; TJRJ-HC 420/2000, 5ª C. Crim., Rel. Des. Maria Helena Salcedo, j. 30.3.2000; TAMG-AC 0316265-4 –3ª C. Civ., Rel. Juiz Kildare Carvalho, j. 27.09.2000, dentre outras fontes.

4 Como se percebe, apesar de todas as adversidades que dificultam a integral implementação dos instrumentos de proteção dos direitos humanos no âmbito interno deste país, alguns significativos avanços têm sido experimentados na seara jurisprudencial, em que pese, como já afirmado, persistente relutância advinda da cúpula do sistema.

Porém, não obstante esses entraves, ressoa irreprimível a conclusão, a par de tudo o que foi salientado e exposto ao longo deste escrito, que realmente os vetustos dispositivos que antes autorizavam a prisão civil por dívidas diversas daquelas decorrentes da obrigação alimentar quedaram-se irremediavelmente revogados face à incorporação, pelo ordenamento jurídico interno, das garantias enfeixadas nos tratados internacionais pelo Brasil subscritos, aqui exaustivamente nominados.

Mesmo diante do vasto leque de normas concebidas no país, tendentes a guarnecer e fortalecer nosso precário convívio democrático, direcionando no caminho que leva à sonhada igualdade substancial entre os que habitam estas paragens, a debilidade do tecido social é flamante, com seus níveis de misérias e desacertos beirando os padrões do insuportável.

O descaso dos Poderes instituídos para o tema afeto à dignidade humana nestas terras de além-mar já é histórico e universalmente conhecido, tanto assim que o celebrado historiador inglês, Eric Hobsbawm, chegou a afirmar ser o Brasil " um monumento à negligência social" [28], que só se robusteceu nestes últimos tempos de neoliberalismo econômico, vendido por nossa elite envolto na vã promessa de inserção do país nas maravilhas da "modernidade" e da globalização.

"Modernidade" essa que aos olhos do já referido Lenio Luiz Streck " dá os claros sinais de uma barbárie, a barbárie neoliberal que, a título de guardar identidade com a filosofia pós-moderna, traz como resultado sinais de retorno à pré-modernidade. Nessa mesma linha, André-Noel Roth adverte para o perigo de estarmos indo rumo a uma nova forma de regulação neofeudal, porque as principais especificidades que separam o Estado Moderno do medievo estão sendo diluídas no plano da globalização". [29]

A única maneira de evitarmos que esse retrocesso se estabeleça é não nos resignarmos às intensas concessões aos imperativos econômicos que estão a engessar, há um quadrante infindo de tempo, as possibilidades de melhoras sociais que abarquem a população em geral, tal qual as sempiternas promessas encravadas no texto constitucional.

Pois, como nos recorda Ernesto Sabato, nesse tortuoso caminho eleito pela civilização humana "tantos foram os valores liquidados pelo dinheiro, e agora o mundo, que a tudo se entregou para crescer economicamente, não pode abrigar a humanidade". [30]

Assinala o tempo, que é passada a hora de edificarmos esse abrigo.

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Sobre o autor
Wagner Giron De La Torre

procurador do Estado de São Paulo, atuando na Procuradoria de Assistência Judiciária em Taubaté (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DE LA TORRE, Wagner Giron. A prisão do infiel depositário e os tratados internacionais de direitos humanos.: Breve crônica de uma clara incompatibilidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 578, 5 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6258. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto publicado na coletânea "Direitos Humanos no Cotidiano Forense", da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Centro de Estudos, 2004.

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