1 INTRODUÇÃO
Crime de perigo é aquele que se consuma com a simples criação do perigo para o bem jurídico protegido, sem produzir propriamente um dano. O elemento, nesses crimes, é então o dolo de produzir perigo. Abstrato é o crime de perigo que é presumido juris et de jure; nele o perigo não precisa ser provado, pois a própria prática o pressupõe (BITENCOURT, 2002, p. 146).
A natureza jurídica da tentativa é a ampliação da tipicidade proibida, em razão de uma fórmula geral ampliativa dos tipos dolosos, para abranger a parte da conduta imediatamente anterior à consumação, isto é, alonga-se a tipicidade para configurar atos executórios como crime.
A tentativa prevista no artigo 14, inciso II, do Código Penal (BRASIL, 1940) declara que quando iniciados os atos executórios e impedido por eventos alheio à vontade do agente a consumação, caracteriza-se tentativa. (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2015)
Existem duas teorias doutrinárias que fundamentam a tentativa, a teoria subjetiva ou monista, que põe em evidência estritamente a vontade do agente em relação à consumação infrutífera durante a elaboração dos atos preparatórios e executórios do crime, considerando o desvalor da ação e desconsiderando para a punição, o desvalor do resultado. Contrária a esta, a teoria objetiva, realística ou dualista concebe que a tentativa só se consuma se existir um real risco de dano ao bem jurídico, quando de caráter unívoco inicia-se os atos executórios com idoneidade para atingir o dolo preconcebido. (NUCCI, 2017)
Nesse sentido, os principais princípios a serem trabalhados dentro do tema serão oprincípio da lesividade bem como o princípio Direito Penal como ultima ratio e Do Direito penal mínimo. Aborda-se também a teoria do garantismo penal, a teoria do direito penal mínimo. Usando para tanto autores com Nelson Hungria, Bittencourt, Nucci e Rogério Greco.
Nos crimes a conduta é exteriorizada mediante um único ato, suficiente para alcançar a consumação. Não é possível a divisão do inter criminis, razão pela qual é incabível a tentativa. Ademais, o perigo não adequa-se perfeitamente ao modelo dogmático criado para crimes de dano. Dessa forma, pergunta-se, num estado Democrático de Direito, a partir da ótica do Direito Penal Moderno, é possível tutelar a tentativa de crime de perigo abstrato?
Do ponto de vista dos objetivos, esta pesquisa realizada em livros, códigos e artigos da internet classifica-se como exploratória e bibliográfica. De acordo com Freitas e Prodanov (2013, p. 51-52), a pesquisa exploratória tem como finalidade “proporcionar mais informações sobre o assunto que vamos investigar, possibilitando sua função e seu delineamento”. Assim, o paper objetiva compreender a importância dos princípios que cerceiam o direito penal que são basilares para o entendimento das divergências doutrinárias. Quanto ao procedimento técnico, a pesquisa bibliográfica objetiva “colocar o pesquisador em contato direto com todo material já escrito sobre o assunto da pesquisa”. (FREITAS; PRODANOV, 2013, p. 54)
2 CRIMES DE PERIGO ABSTRATO: conceituação e aspectos gerais
Primeiramente, faz-se oportuno caracterizar crime de dano. Para Bittencourt (2017,p. 108) crime de dano é aquele para cuja consumação é necessária a superveniência de um resultado material que consiste na lesão efetiva do bem jurídico. A não existência dessa lesão pode caracterizar a tentativa ou um indiferente penal, como ocorre com os crimes materiais, por exemplo, homicídio, furto, lesão corporal etc.
Para o mesmo autor (2017, p. 108) crime de perigo é aquele que se consuma com a ocorrência de um resultado material consistente na simples criação do perigo real para o bem jurídico protegido, sem produzir um dano de fato. Nesses crimes, o elemento subjetivo é o dolo de perigo, cuja vontade limita-se à criação da situação de perigo, não querendo o dano, nem mesmo eventualmente. Dessa forma, o perigo, nesses crimes, é classificado em concreto e abstrato. Assim, o perigo concreto é aquele que necessita de comprovação, ou seja, a situação efetiva de risco ocorrida no caso concreto ao bem juridicamente protegido deverá ser demonstrada na realidade concreta.
Sobre a noção de perigo, Bittencourt (2017) preleciona:
O perigo é reconhecível por uma valoração da probabilidade de superveniência de umdano para o bem jurídico que é colocado em uma situação de risco, no caso concreto. Operigo abstrato pode ser entendido como aquele que é presumido juris et de jure. Nessestermos, o perigo não precisaria ser provado, pois seria suficiente a simples prática daação que se pressupõe perigosa. Ocorre que esse entendimento contraria o princípio deofensividade.
Rogério Greco (2007) conceitua o princípio da ofensividade como limitador do poder punitivo do Estado, determinando quais são as condutas passíveis de serem incriminadas pela lei penal. Tal princípio o faz de forma negativa determinando quais condutas não podem ser tidas como crime. A Doutrina aponta quatro principais funções do princípio da lesividade: a de proibir a incriminação de uma atitude interna, a de proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor, a de proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais e a de proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.
Para Bittencourt (2017), se o legislador penal pretende admitir a existência de crimes de perigo abstrato, é necessário ajustar o âmbito da conduta punível sem deixar de lado a influência dos princípios limitadores do exercício do poder punitivo estatal (princípios como o da lesividade/ofensividade, ultima ratio etc.), a fim de evitar uma expansão desmedida do Direito Penal (um direito penal máximo). Desse modo significa que nos delitos de perigo abstrato é necessário demonstrar, pelo menos, a idoneidade da conduta realizada pelo agente para produzir um potencial resultado de dano ao bem jurídico.
3. DA POSSIBILIDADE DA TENTATIVA NOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO
Na doutrina, Magalhães de Noronha e José Marques entendem que no crime de perigo é possível a tentativa desde que apresentem inter criminis, ou seja, apresentem fases eassim sejam suscetíveis de fracionamento. Zaffaroni e Pierangelli afirmam que legislação nativa admite a tentativa em todos os crimes compreendendo também os crimes de perigo. Magalhães Noronha também entende que o instituto da tentativa pode ser aplicado nos crimes de perigo abstrato desde que presente o inter criminis. (SATO, 2012)
Na doutrina italiana, parte concorda com a possibilidade da modalidade tentada nos crimes de perigo abstrato, assim, nesses crimes, se for provada a inexistência de perigo ao bemjurídico derrubando a presunção de periculosidade da conduta, haveria tentativa inidônea.
Considera-se, aqui, que tais crimes seriam crimes autônomos e a tentativa dos mesmos deveria ser admitida assim como o são num crime de dano, defendendo, assim, a possibilidade de haver tentativa em todos os crimes de perigo abstrato, só não cabendo nos casos de consumação de ato executivo. (SATO, 2012) Nesse sentido, preleciona Catherine Sato (2012) que: “Caberia tentativa, por outro lado, nos crimes de perigo abstrato que não se consumam com a exposição ao perigo de um bem jurídico, mas a consumação baseia-se na realização de uma conduta capaz de fracionamento”. Dessa forma, mais uma vez destaca-se a importância da existência do inter criminis para a configuração da tentativa.
4. A INCOMPATIBILIDADE DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA NOS CRIMES DEPERIGO ABSTRATO NA MODALIDADE TENTADA
Com o fim de compreender a inadequação dos princípios que cerceiam o direito penal com os crimes de perigo abstrato na modalidade tentada, torna-se mister pôr em antemão a conceituação da teoria objetiva que afirma essa incompatibilidade. A teoria realística dapossibilidade de punir a tentativa, afirma que, para que seja plausível a punição do agente que comete crime de perigo, é estritamente imprescindível que haja risco ou lesão efetivo a algum bem jurídico, ocorrendo somente com o início dos atos executórios, com idoneidade para alcançá-los. (NUCCI, 2017).
Não obstante, o princípio da lesividade incide diretamente sobre o tema, isto porque os direitos constitucionais como a liberdade de consciência e crença, proibição de qualquer privação de direitos em razão de convicção política ou filosófica, a livre expressão da atividade intelectual, a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, garantidas pela constituição (BRASIL, 1988), propõem a ingerência coativa do estado em graves restrições, que podem ter como consequências a não incisão do estado em estabelecer uma moral, mas, sim, garantir um âmbito de liberdade moral, evidenciando que as penas não podem incidir sobre ações que exprimam a execução de tal liberdade. (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, 2003).
O estado paternalista se configura como imoral quando pretende impor uma moral, isto porque o mérito da moralidade é consequência da possibilidade de escolha de outra coisa, isto é, há falta de mérito quando não se pode optar por uma via diferente. Diante disso, o estado ético se afirma quando há a possibilidade de uma via alternativa imoral, visto que é nas eventualidades imorais de cada decisão que se confirma a diferença entre consciência moral e consciência jurídica. Dessa forma, as penas não podem concernir sobre condutas que consagram o exercício da autonomia ética, que o estado deve garantir, mas somente se afetá-la poderão as penas recair sobre tais condutas. Assim, pela opção do estado moral, e consequentemente do estado paternalista imoral, não pode haver crime que não reconheça no plano fático um conflito que afete bens jurídicos alheios. (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, 2003)
No Direito Penal, a opção constitucional da liberdade mencionada acima se traduz no próprio princípio da lesividade, pelo qual nenhum direito pode autenticar mediação punitivaquando não haja sequer algum conflito jurídico, compreendido pela lesão a algum bem jurídico.
Esse princípio demanda essencialmente do conceito de bem jurídico, buscando a diferença entre bem jurídico lesionado e bem jurídico tutelado, isto porque a lei penal não possui veracidade no que tange a tutela de um bem jurídico, o que é possível de verificar é que ela confisca um conflito no plano fático que atinge ou coloca em perigo o bem jurídico. Existe uma implicação de uma tutela por razão da agência política criminalizante, mas não é a lei que verifica, mas sim na própria conjuntura da realidade social, cujo o direito penal só manifesta a criminalização primária e a pretensão discursiva de tutelar, mas é a sociologia que garante a veracidade daquela tutela.
(ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, 2003).
A distinção entre essas duas noções do bem jurídico acaba por desaguar que todo bem jurídico deve ser tutelado, neutralizando a ideia do bem jurídico lesionado. Concernente a essa ocultação, é perceptível que toda infração penal representa uma certa lesão a algum bem jurídico, que acaba por culminar em uma tutela, evidenciando um estímulo a criminalização sem lacunas, deixando a ofensividade em segundo plano, engendrando uma pretensão de tutela ofuscada, enfraquecendo a ideia do bem jurídico levando ela a uma restrição meramente conceitual que reduz a função do direito penal à de garantir a validade das expectativas normativas. (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, 2003).
Além disso, a intervenção da tutela de um ente pode ser anterior e independe de dano ou efetivos riscos, mas que depende da intensidade que o operador compreenda no seu discurso.
Esse discurso acaba por enganar-se por mera dedução através da racionalização da punição de riscos distantes e hipotéticos, que não são passíveis de incidir com veemência, como os crimes de perigo abstrato. Toda essa estrutura leva a viabilização de intervenções desproporcionais com o real dano dos crimes de perigo abstrato, visto que inventa-se uma necessidade de tutela mesmo que a lesão ao bem jurídico seja ínfima, porque isto leva a um único bem jurídico, a vontade do estado, que é o juiz com a necessidade de tutelar. (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA, 2003).
Zaffaroni, Nilo Batista e Alagia (2003) entendem que:
(...) convém repudiar a idéia de bem jurídico tutelado, que não passa de uma inversãoextensiva racionalizante do conceito limitador de bem jurídico afetado, proveniente doracionalismo, e só resta manter esse último como expressão dogmática do principio dalesividade, que requer também uma entidade mínima de afetação (por dano ou perigo),excluindo bagatelas ou afetações insignificantes. A presença de um bem jurídico alheioafetado permite reconhecer o conflito jurídico, pelo extravasamento do âmbito pessoalda liberdade moral e pela introdução de um outro – o que implica na consideração daalteridade como pressuposto geral da intervenção penal. Neste sentido, pode-se afirmarque o bem jurídico lesionado ou exposto a perigo representa o outro no conflito jurídico-penal, constitui o seu signo no recorte típico, cabendo a compreender o chamadoprincípio da insignificância, que exclui a tipicidade nos casos de ínfimas e irrisóriasafetações do bem jurídico.
Diante disso, reitera-se que os princípios do direito penal como o da lesividade, ultima ratio e insignificância devem ser observados no fazimento, na hermenêutica e na aplicação da norma penal, e especialmente na problemática aqui exposta.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um Estado Democrático de Direito como o que vivemos hoje não pode adotar uma política proibicionista através do Direito Penal que viole sua própria Constituição e desrespeite direitos individuais do homem que nós lutamos tantos anos para conseguir, essas atitudes são próprias de Estados totalitários. Dessarte, culmina a compreensão da proximidade da teoria objetiva da tentativa concernente aos princípios da lesividade e ao princípio da insignificância, pondo em evidência a própria existência de crimes de perigo abstrato como irrisórios no que tange a tutela penal.
Como foi demonstrado neste artigo, há duas correntes doutrinárias que tratam da aplicação do instituto da tentativa nos crimes de perigo abstrato. Para se ampliar a tutela penal mais adiante do dano, equivalendo-o ao perigo, criminalizam-se condutas com uma veemencia razoável do sentimento de ameaça. Tal antecipação de tutela favorece tendências paternalistas dentro da norma, voltadas às condutas dos indivíduos. (SATO, 2012) Assim, os princípios norteadores do direito penal, como o princípio da ofensividade, da legalidade, da insignificância, devem ser observados no caso concreto. Nesse sentido é o entendimento dos autores do presente artigo, na contramão da doutrina que admite a tentativa nos crimes de perigo abstrato, entende-se que é impossível a aplicação da modalidade tentada em tais crimes.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Brasília: Diário Oficial da União, 1988. Disponívelem: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> Acesso em:7 de outubro de 2017.
Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro: Diário Oficial daUnião, 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm>Acesso em: 7 de outubro de 2017.
BITENCOURT, Cézar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral. Vol I. 7 ed. São Paulo:Saraiva, 2012.
BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal. Vol I. 23 ed. São Paulo: Saraiva,2017.
FREITAS, Ernani Cesar de; PRODANOV, Cleber Cristiano. Metodologia do trabalhocientífico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. Ed.Novo Hamburgo:Feevale, 2013.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. vol, IX. Rio de Janeiro: Forense, 1959.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 4 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2007.
SATO, Catherine Ruriko. Crimes de perigo abstrato e a questão da tentativa: limites daantecipação da tutela penal. São Paulo: C. R.Sato, 2012.
NUCCI, Guilherme de Sousa. Curso de Direito Penal: Parte Geral. v. 1. Rio de Janeiro:Forense, 2017.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal:parte geral. 11 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 2015.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl, BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; e SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro. Vol.: I. Rio de Janeiro: Revan, 2003.