1 INTRODUÇÃO
A caoticidade exprimida pelas diversas artes interpretativas regionalizadas conviventes no século XVIII é o substrato histórico sobre o qual se erige o projeto de construção de uma hermenêutica universal, pensado por Schleiermacher (1999).
Isto é, para além de uma hermenêutica dos textos bíblicos ou de uma hermenêutica das obras da antiguidade clássica, o aludido pensador mira a construção de uma teoria geral da interpretação, cujo objeto se define não mais em função da especificidade do ente interpretado, mas da compreensão mesma, cuja metódica se busca apreender.
2 A ESTRANHEZA COMO O UNIVERSAL DA LINGUAGEM
Nesse diapasão, a interpretação é concebida por Schleiermacher como referida a todo discurso estranho, seja nativo ou estrangeiro, veiculado pela complexa lucubração escrita ou pela mais comezinha conversa cotidiana.
Decerto, onde houver estranheza, haverá ensejo para a visada da hermenêutica.
Assumida a identificação entre pensamento e linguagem, a tarefa hermenêutica consistirá precisamente no recobramento do pensamento do autor, a partir do manancial linguístico em que aquele se estampa, de sorte que, ao termo da circularidade linguística, seja compreendido pelo intérprete melhor do que ele mesmo ousou se compreender.
Deveras a linguagem, já abstratamente considerada, é interpretação do mundo, é saber circunstanciado. Seu manejo singular pelo autor revela, pois, o saber e pensar deste face à universalidade linguística, com sensíveis consequências para a teoria geral da interpretação (SCHLEIERMACHER, 1999).
3 A CONGENIALIDADE COMO CONDIÇÃO DE POSSIBILIDADE DO COMPREENDER
Todavia, a absoluta estranheza não possibilita a compreensão. Faz-se necessário um ponto de contato entre o gênio criativo do autor e o gênio compreensivo do intérprete.
A congenialidade é, portanto, tanto quanto a estranheza, uma condição da compreensão.
Lado outro, o mal-entendido, longe de corporificar mera acidentalidade do processo interpretativo, é uma possibilidade sempre presente, o que, em Schleiermacher (1999), recomenda uma permanente atitude crítica do intérprete diante do texto interpretado, resolvida, para o autor, a partir de uma hermenêutica metodológica ciosa de sua fidelidade ao pensamento original filologicamente formatado.
A hermenêutica, longe de figurar como anomalia técnica presente apenas diante das passagens contraditórias ou obscuras de um texto, deverá acompanhar permanentemente o intérprete, considerada a universalidade do mal-entendido.
4 INTERPRETAÇÃO COMO DIALÉTICA ENTRE PARTICULAR E UNIVERSAL: MÉTODOS DIVINATÓRIO E COMPARATIVO
A interpretação ocorrerá, portanto, à maneira de uma dialética entre particular e universal, necessariamente imbricada com a hermenêutica, seu lócus inseparável.
Ora, o particular somente pode ser compreendido se reportado, ainda que preliminarmente, a um universal congenialmente pressentido na simbiose mediata entre intérprete e autor.
A metódica interpretativa deverá pautar-se, com efeito, por uma técnica dúplice e complementar entre os métodos divinatório e comparativo.
A partir do primeiro, o intérprete formará o pressentimento do todo, o projeto compreensivo prévio do universal representado pela obra autoral.
De outra banda, o método comparativo, calcado na análise linguística das partes textuais, possibilitará a permanente revisão daquele projeto prévio, em círculo hermenêutico no qual o todo se revela a partir das partes e as essas são constantemente revivificadas pela compleição do todo que se reformula.
Do mesmo modo que complementares os métodos divinatório e comparativo, também o serão as análises gramatical e psicológica.
A perscrutação filológico-sintática do sentido das expressões empregadas pelo autor na totalidade semântica própria a um universo linguístico será acompanhada do exame da singularidade psicológica de que aqueles signos se revestem para o autor, em reconstrução do pensamento do autor, encaminhada pelo trânsito entre o universal e o particular, a partir do qual emergirá, como síntese, a singularidade (particular universalizado e universal particularizado) da mensagem hermenêutica autoral, revelada na circularidade hermenêutica metodologicamente apreendida.
A provisoriedade da compreensão, esboçada no pressentimento do todo divinatoriamente esboçado, aperfeiçoa-se com a integração dialética das partes linguístico-psicológicas da obra autoral, a franquear a revisão do projeto prévio, culminante na compreensão da totalidade da obra interpretada.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tal como as partes de um texto não podem ser compreendidas senão em referência ao todo, as normas jurídicas somente concebem aplicação ante a visada do ordenamento jurídico, pois, como salientou Eros Roberto Grau (2010), “não se interpreta o Direito em tiras”.
Além disso, se o intérprete é capaz de compreender o autor melhor do que ele mesmo, qualquer pretensão à persecução da vontade do legislador será retardatária diante da visão privilegiada do aplicador presente.
Mais relevante do que isso, a universalidade do mal-entendido impõe que o intérprete esteja em permanente vigília, sob pena de desgarrar-se da positividade jurídica, instaurando perigoso e antidemocrático decisionismo, com a desconexão entre sua intelecção e a ordem constitucional que se almeja interpretada.
REFERÊNCIAS
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Nova revisão da tradução por Ênio Paulo Giachini. 15. ed. Petrópolis: Editora Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2010.
PALMER, Richard. Hermenêutica. Tradução de Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Edições 70, 1969.
SCHLEIERMACHER, Friedrich Schleiermacher. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Tradução de Celso Reni Braida. Petrópolis. Editora Vozes, 1999.