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A relação entre discurso, participação e processo no Estado Democrático de Direito

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4. Democracia, processo e participação

Na concepção constitucionalizada de processo, diante de todo e qualquer conflito de interesses, é imprescindível o debate da questão para que seja proferida a melhor decisão ao caso concreto, atenta às suas peculiaridades. A importância da participação calcada pela incidência dos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. Assim, tem-se não a mera participação, mas uma participação efetiva, que possibilite, numa leitura constitucional do processo, o real exercício de direitos e garantias fundamentais.  

O devido processo legal impõe que o poder seja exercido de modo adequado, de modo justo, com regramento prévio. Inclusive, André Boiani e Azevedo e Édson Luís Baldan (2004) questionam se preexiste norma legal equânime disciplinando o que seja uma atuação legal; se essa disposição legal está sendo exercitada através do processo; e se o processo é devido a ponto de assegurar a isonomia substancial de atuação das partes. Dizem que “a resposta negativa a pelo menos um desses quesitos arreda, inexoravelmente, a legitimidade da atividade persecutória penal do Estado em face do imputado, permitindo entrever a atuação arbitrária”.

Já para Fredie Didier, o devido processo legal é uma cláusula geral e, por ser de terminologia tão aberta e indeterminada, será compreendido historicamente. Em outras palavras, o que era devido no século XIV era uma coisa; a compreensão do que é devido hoje logicamente é diferente. É algo tão flexível, tão aberto, tão variável, que no futuro existirá outro devido processo legal com outro conteúdo. A sociedade vai acumulando exigências do que seja devido processo legal, o que será o seu conteúdo mínimo.

Dentro desse conteúdo mínimo de devido processo legal, historicamente construído, muitos autores consideram incluída a participação, caracterizada pelo efetivo debate entre as partes e Magistrado para construção do provimento final.

Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni esclarece que a ênfase à participação:

tem o objetivo de legitimar a decisão e o exercício do poder jurisdicional. Imagina-se que, paraa legitimidade da decisão, nada mais seria preciso do que assegurar a plena possibilidade de participação das partes.

Porém, é lógico que o conteúdo dessa participação deve variar conforme as particularidades do caso conflitivo. A participação deve dar às partes plena oportunidade de alegar, requerer provas, participar da sua produção e considerar sobre os seus resultados. Numa palavra: a parte deve ter a oportunidade de demonstrar as suas razões e de se contrapor às razões da parte contrária. (MARINONI, 2008, p. 454)

A própria compreensão do princípio do contraditório é também muito atrelada à ideia de participação, consoante lição de Aroldo Plínio Gonçalves:

A idéia da participação, como elemento integrante do contraditório, já era antiga. Mas o conceito de contraditório desenvolveu-se em uma dimensão mais ampla. Já não é a mera participação, ou mesmo a participação efetiva das partes no processo. O contraditório é a garantia da participação das partes, em simétrica igualdade, no processo, e é garantia das partes porque o jogo da contradição é delas, os interesses divergentes são delas, são elas “os interessados e os contra-interessados” na expressão de FAZZALARI, enquanto, dentre todos os sujeitos do processo, são os únicos destinatários do provimento final, são os únicos sujeitos do processo que terão os efeitos do provimento atingindo a universalidade de seus direitos (...) (GONÇALVES, 2001, p. 127)

Eugênio Pacelli de Oliveira acrescenta que:

Da elaboração tradicional que colocava o princípio do contraditório como a garantia de participação no processo como meio de permitir a contribuição das partes para a formação do convencimento do juiz e, assim, para o provimento final almejado, a doutrina moderna, sobretudo a partir do italiano Elio Fazzalari, caminha a passos largos no sentido de uma nova formulação do instituto, para nele incluir, também, o princípio da par conditio ou da paridade de armas, na busca de uma efetiva igualdade processual. (...)

O contraditório, portanto, junto ao princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental de todo processo e, particularmente, do processo penal. (OLIVEIRA, 2011, p. 42-43)

A importância da participação foi percebida há muito tempo na história social e política da humanidade, sendo em sua maioria atrelada à própria concepção contemporânea de democracia. Doravante, a civilização grega foi uma das primeiras a atentar para a valorização do humanismo, do subjetivismo e do racionalismo, desenvolvendo uma noção de sociedade mais participativa do que as outras de seu tempo. A participação na Grécia Antiga refletia a essência da vida civil, da organização política, de modo que a preponderância dada à linguagem possibilitou ao cidadão tratar dos assuntos da polis, principalmente nas ágoras, que eram praças públicas abertas justamente para a discussão de problemas políticos e sociais.

Sobre o tema, Gofredo Telles Júnior conta que:

Desde os tempos homéricos, heróis e guerreiros se compraziam em ouvir discursos veementes ou capciosos. De há muito, igualmente, o País e os tribunais haviam sido teatro de muitas manifestações oratórias naquela Grécia, onde o podo gostava das reuniões da ágora, das conversações sobre negócios, das discussões relativas a assuntos de interesse para a cidade. (TELLES JUNIOR in ARISTOTELES, 1985, p. 20)

A concepção de participação e debate da Grécia Antiga, principalmente a doutrina de Aristóteles, muito influenciou Chaim Perelman, para quem o discurso deve ser voltado a todo tipo de auditório e plateia. Nesse sentido, juntamente com Olbrechts-Tyteca, esclarece o que viria a ser a sua teoria da argumentação jurídica, calcada na nova retórica:

Considerando que seu objeto é o estudo do discurso não-demonstrativo, a análise dos raciocínios que não derivam de interferências formalmente válidas, de cálculos mais ou menos mecânicos, a teoria da argumentação concebida como uma nova retórica (ou uma nova dialética) cobre todo o campo do discurso visando a convencer ou persuadir, qualquer que seja o auditório a que se dirige, e qualquer que seja a matéria tratada. (PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 236)

Para Chaim Perelman (1996), a verdade não se limita ao que é rigorosamente demonstrável ou tido como evidente, havendo situações de abertura à práxis argumentativa. Isso é, há casos em que aquilo que é tido como razoável foge do rigor da lógica e da demonstração, daí a importância de diálogos voltados a toda espécie de auditório, aptos a persuadir qualquer que seja a matéria delineada.

Theodor Viehweg (1979) estabeleceu uma argumentação jurídica em torno do problema, para, então, aplicar-se a norma. Para tanto, tal doutrinador parte da ideia de topoi, que são argumentos, esquemas de pensamento, lugares comuns, forma de raciocínio ou pontos de vista, extraídos de princípios gerais, da jurisprudência pacífica, doutrina dominante e senso comum. Para ele, vence o debate quem conseguir convencer o outro com sua argumentação, quem tiver o argumento mais convincente, ainda que não seja o mais correto.

Tratando do debate, da participação e da democracia num aspecto constitucional, Peter Häberle defende a necessidade de abertura e ampliação do círculo de intérpretes da constituição. Desse modo, não apenas aos detentores de poder cabe a interpretação e consolidação dos direitos e garantias fundamentais, mas a todo cidadão, que é ator, intérprete e cointérprete da própria sociedade em que vive.   

Sobre a sua doutrina, explica Marcelo Novelino que:

Na busca de um modelo adequado a uma sociedade democrática, pluralista e aberta, HÄBERLE afirma não ser possível estabelecer um elenco fechado de intérpretes, pois não apenas os órgãos estatais, mas também os cidadãos e os grupos sociais (igrejas, sindicatos...) estão potencialmente vinculados ao processo de interpretação constitucional. Partindo da premissa de que “a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática”, sustenta que em uma democracia liberal a interpretação desenvolvida pelos órgãos jurisdicionais, por mais importante que seja, não é a única possível. Em um sentido amplo, todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma constitucional seria um legítimo intérprete ou, ao menos, um cointérprete, por subsistir sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional de dar a última palavra sobre como a Constituição deve ser interpretada. (NOVELINO, 2011, p. 170-171)  

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Para Jürgen Habermas, a democracia deve ser compreendida em sentido material ou amplo. Não é, pois, apenas a vontade da maioria (sentido formal), mas também a fruição de direitos básicos por todos, inclusive pelas minorias. Em suas palavras (HABERMAS, 2003, p. 154), o sistema “deve contemplar os direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo”. Desse modo, para que a vontade da maioria seja a vontade real, é necessária a garantia dos direitos fundamentais. Quem vai exercer a democracia em sentido formal é o poder legislativo e executivo. Em sentido material, o poder judiciário, por meio do processo.

Desenvolvendo a sua teoria do discurso, envolta sobre o princípio da democracia, Jürgen Habermas acrescenta que:

Liberdade comunicativa só existe entre atores que desejam entender-se entre si sobre algo num enfoque performativo e que contam com tomadas de posição perante pretensões de validade reciprocamente levantadas. (...) Para alguém tomar uma posição, dizendo “sim” ou “não”, é preciso que o outro esteja disposto a fundamentar, caso se torne necessário, uma pretensão levantada através de atos da fala. (HABERMAS, 2003, p. 156)

Assim, para referido autor alemão (2003, p. 159-160), são categorias de direitos que geram o próprio código jurídico: a) direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação; b) direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros de direito; c) direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual; d) direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo; e) direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente.

Nessa esteira, a compreensão do princípio do discurso parte da seguinte mudança de perspectiva:

O teórico diz para os civis quais são os direitos que eles teriam que reconhecer reciprocamente, caso desejasse regular legitimamente sua convivência com os meios do direito positivo. Isso explica a natureza abstrata das categorias jurídicas abordadas. É preciso, no entanto, empreender uma mudança de perspectivas, a fim de que os civis[8] possam aplicar por si mesmos o princípio do discurso. Pois, enquanto sujeitos do direito, eles só conseguirão autonomia se se entenderem e agirem como autores dos direitos aos quais desejam submeter-se como destinatários. (HABERMAS, 2003, p. 163)

Na linha de Habermas, com o objetivo de alcançar uma decisão legítima e atenta ao Estado Democrático de Direito, imprescindível a atuação conjunta da participação com a consolidação de direitos e garantias fundamentais. Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni (2008, p. 459), necessário se faz “atrelar a legitimidade da decisão a critérios objetivadores da compreensão da questão constitucional e dos direitos fundamentais, tomando-se em conta determinadas regras, como as do ‘núcleo essencial’ e do ‘mínimo imprescindível’”.

A própria incorporação da participação no Estado Democrático de Direito é envolta também pela ideia de neoconstitucionalismo. Roberto Dromi, inclusive, elenca a participação como um dos fundamentos essenciais do Estado pós-neoconstitucional, ao lado da verdade, da solidariedade, do consenso, da integração, da universalização e da continuidade. Dromi considera que esses sete valores fundamentais compõem obrigatoriamente o que denomina de “constitucionalismo do futuro”, o constitucionalismo que está por vir.

Nesse enfoque, o íntimo relacionamento entre processo e participação no Estado Democrático de direito se faz necessário não apenas por legitimar o próprio processo ou a efetiva participação dos sujeitos para construção do provimento jurisdicional, mas por legitimar, principalmente, a própria efetividade dos direitos e garantias fundamentais, afastando uma constituição meramente simbólica e sem aplicabilidade prática.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELLO, Ana Flavia Chaves Vaz. A relação entre discurso, participação e processo no Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6285, 15 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62743. Acesso em: 25 abr. 2024.

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