Artigo Destaque dos editores

Da desconfiguração do leasing financeiro pela antecipação do valor residual

01/07/2000 às 00:00
Leia nesta página:

1. INTRODUÇÃO

O arrendamento mercantil surgiu nos EUA na década de 1950 logo após o término da II Guerra Mundial, e se espalhou de forma acelerada em outros países com maior desenvolvimento econômico, principalmente na Europa. A nomenclatura se adequou ao local onde era aplicada, sendo denominada na França de "crédit-bail", na Itália como "locazione financiaria" ou "prestito locativo", na Inglaterra de "hire purchase finance", na Espanha como "arrendamiento financiero", em Portugal como "locação financeira", na Alemanha como "mietfinazierung"(1), e assim por diante.

No Brasil, pelo que se tem notícia, surgiu em 1967 com a empresa "RENT-A-MAQ", todavia, o seu pleno desenvolvimento só foi alcançado na década de 70. A primeira lei surgiu em 1974, de nº 6.099, tendo sido alterada em 1983 pela Lei 7.132, que então denominou o instituto de "arrendamento mercantil". (2)

Antes de se conceituar o leasing, necessário se faz distinguir as modalidades do instituto, as quais podem ser: financeiro; operacional; lease-back; self leasing; imobiliário, dentre outros. Destes, os três principais tipos são: financeiro, operacional e lease-back.

O operacional "consiste no contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o uso e gozo temporário de determinado bem e a mantê-lo em perfeito estado de funcionamento, por um período menor do que sua vida economicamente útil, mediante uma contraprestação, em geral, inferior à que seria necessária para uma completa amortização do preço da coisa locada." (3)

No lease-back "somente duas empresas operam nas negociações, dado que a empresa arrendadora arrenda o bem à vendedora, possuidora primitiva da coisa, tornando-se ela a parte arrendatária do contrato." (4) Basicamente, destina-se àquelas empresas que pretendem desfrutar do uso e gozo do bem que necessitam vender, e, ao mesmo tempo, precisam utilizar o dinheiro fruto da venda do bem como capital de giro.

Já o leasing financeiro é tido como uma espécie de contrato de financiamento (englobando-se aí: locação; financiamento e venda), onde uma pessoa (física ou jurídica) procura um banco para que promova a compra do bem para si e, posteriormente, lhe entregue em locação, mediante prestação, a fim de que possa utilizar-se do mesmo visando a facilitação do uso e gozo da coisa, sem que a mesma precise desembolsar de imediato o valor total do bem arrendado. Ao final, o arrendatário pode devolver o bem, renovar o contrato, ou mesmo tornar-se proprietário.

No início, o leasing teve uma finalidade voltada sobretudo para a atividade profissional, respondendo "a necessidades surgidas na indústria e no comércio, com vistas a uma fácil e proveitosa obtenção do uso de máquinas e instrumentos de trabalho, a salvo de eventuais prejuízos resultantes do obsoletismo dos bens de produção" (5), além de proporcionar melhor emprego do capital de giro das empresas, o que acaba por resultar na manutenção de estoque e na circulação de riquezas, aperfeiçoando o desenvolvimento e a produção de modo geral.

Hoje em dia essa não é mais regra, sendo utilizada por todos os seguimentos da sociedade, não obstante a finalidade de uso ser pessoal (doméstico) ou profissional.

Na prática, com o acordo inter partes, o leasing financeiro se concretiza da seguinte forma: num primeiro instante o arrendatário indica um bem a ser adquirido pelo arrendador (instituição financeira). Num segundo momento, o arrendador, já na posse do bem, após tê-lo comprado por preço ajustado com o arrendatário, arrenda o bem ao mesmo, de modo semelhante ao aluguel(6), todavia, difere deste no aspecto em que enquanto no leasing o arrendador confere o direito (faculdade) de compra quando findo o contrato, o mesmo não se dá na locação convencional.


2. DA POSSIBILIDADE DO ARRENDATÁRIO EXERCER O
DIREITO DE COMPRA DO BEM NO LEASING FINANCEIRO

Conforme mencionado, é característica básica do leasing financeiro a possibilidade do arrendatário exercer ou não o direito de adquirir o bem ao final do contrato. Esta característica intrínseca deste contrato, deve sempre ser exercida ao final do contrato, sob pena de se desfigurar o arrendamento para compra e venda à prazo.

Até aqui tudo bem, todavia, a primeira controvérsia doutrinária surge no sentido de se diferenciar a opção de compra (a qual deve ser exercida ao final do contrato) com o valor residual garantido (VRG), ou seja, na possibilidade de se adiantar (pagar) o VRG sem se estar optando pela compra antecipada do bem.

Neste contexto, entende parte da doutrina que o VRG nada mais é do que o "preço para o exercício da opção de compra" (7), ou seja, "o VRG é, portanto, uma obrigação assumida pelo arrendatário quando da contratação do arrendamento mercantil, no sentido de garantir que o arrendador receba, ao final do contrato, a quantia mínima final de liquidação do negócio, em caso de o arrendatário optar pelo não exercer seu direito de compra e também, não desejar que o contrato seja prorrogado" (8).

Ou seja, pelo entendimento desta corrente doutrinária, o VRG acaba sendo pago tanto no caso de se exercer a opção de compra, como no caso da devolução do bem, servindo como mínimo que será recebido pela arrendadora na venda a terceiros do bem arrendado, na hipótese de não ser exercida a opção de compra pelo arrendatário ao final.

Assim, em sendo adiantado o VRG, estar-se-ia apenas - caucionando - este, quer em parcelas ao longo do prazo contratual ou mesmo à vista (oportunidade em que se disporia do montante), o que traria também vantagens para o arrendatário, de forma a tornar menor o dispêndio mensal.

Já a opção de compra, é entendida por esta corrente doutrinária como um ato voluntário, opcional e incerto do arrendatário, de escolher ao final do contrato pela compra ou não do bem, (9) e que não se confunde com o VRG, persistindo a possibilidade de se optar ao final do contrato pela compra ou não do bem, independentemente do adiantamento do valor residual garantido.

De outra banda, em posição contrária e entendendo que a antecipação do VRG é o exercício da própria opção de compra, de modo que desconfigurado estaria o contrato de arrendamento mercantil para venda à prazo pela sua antecipação, caminha a recente (e majoritária) doutrina sobre o tema, tendo apoio inclusive do próprio STJ, o qual já pacificou seu entendimento neste sentido.


3. DA DESCONFIGURAÇÃO DO LEASING
FINANCEIRO PARA COMPRA E VENDA À PRAZO

Pagando antecipadamente o VRG, além de se infringir preceito legal, esse procedimento afeta a base do negócio, alterando o custo real da operação, já que o arrendatário, antes do término do arrendamento, terá que disponibilizar de vultosa importância que só seria devida, eventualmente, ao termino do contrato.

Outra importante conseqüência ocorre na hipótese de devolução do bem arrendado, seja no final do prazo do arrendamento, seja em face do inadimplemento do arrendatário, pois o valor que eventualmente não seria pago, agora já está a disposição do arrendante.

Como fundamento legal para tal posicionamento, existe a Resolução 980 expedida pelo BACEN, da qual se extrai o seguinte em seu artigo 11:

"A operação será considerada como de compra e venda à prestação, se a opção de compra for exercida antes de vencido o prazo mínimo de arrendamento".

Disposição semelhante, embora com alcance mais amplo, contém a Lei 6.099/74, em seu art. 11, § 1º, alterada pela Lei 7.132/83:

"A aquisição pelo arrendatário de bens arrendados em desacordo com as disposições desta Lei, será considerada operação de compra e venda a prestação."

Se já não bastasse, o próprio Conselho Monetário Nacional também baixou a Resolução 351/75 para regular a questão, que, em seu art. 10, parágrafo único, prescreve:

"A operação será considerada de compra e venda à prestação, se a opção de compra for exercida em desacordo com o disposto neste art., ou seja, antes do término da vigência do contrato de arrendamento."

Pela análise dessas normas, claro fica que nada impede o exercício da opção de compra antes do término do contrato, todavia, uma conseqüência advirá deste ato: o contrato não continuará sendo de arrendamento mercantil, mas sim passará a considerar-se como de compra e venda à prestação.

Neste sentido, vale a lição de ANTÔNIO CARLOS EFING:

          "A legislação que trata especificamente do leasing, prevê diversas situações em que ocorre a desnaturação do arrendamento mercantil e caracterização de compra e venda. Uma dessas situações é justamente o pagamento do valor residual ou a realização da opção de compra dos bens antes de terminado o prazo contratual ajustado." (10)

Por fim, com entendimento idêntico ao doutrinário, o Superior Tribunal de Justiça pacificou seus julgados pela descaracterização do arrendamento mercantil ante o adiantamento do VRG, pois não se pode aceitar que um contrato de compra e venda seja regido pelas normas aplicáveis ao arrendamento mercantil, inclusive com a possibilidade de se pleitear a reintegração de posse liminar do bem na inadimplência, posto que flagrante o prejuízo advindo ao arrendatário que já teria optado pela compra do mesmo.

A seguinte ementa do STJ, publicada no DJ em 03/03/2000, reforça este entendimento:

          STJ - LEASING FINANCEIRO. VALOR RESIDUAL. COBRANÇA ANTECIPADA. DESFIGURAÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO MERCANTIL. JUROS. SÚMULA 596/STF

"A opção de compra, com pagamento do valor residual ao final do contrato, é uma característica essencial do leasing. A cobrança antecipada dessa parcela, embutida na prestação mensal, desfigura o contrato, que passa a ser uma compra e venda a prazo (art. 5º, c, combinado com o art. 11, § 1º, da Lei nº 6099, de 12.09.74, alterada pela Lei 7.132, de 26.10.83), com o desaparecimento da causa do contrato e prejuízo ao arrendatário.

Reintegração deferida faltando o pagamento das 03 (três) últimas prestações, das 24 (vinte e quatro) contratadas.

Recurso conhecido e provido parcialmente para julgar improcedente a ação de reintegração de posse." (11)

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

          Em passos mais lentos caminha o TAPR, que ainda não possui entendimento pacificado sobre o tema, mas, já existem decisões no sentido do STJ, donde se extrai a seguinte:

          TAPR - APELACAO CIVEL 0116465-0 - LONDRINA - 1A VARA CIVEL - Ac. 10021 - JUIZ CONV. GAMALIEL SEME SCAFF - TERCEIRA CAMARA CIVEL - Revisor: JUIZ LIDIO J. R. DE MACEDO. Unanime - Julg: 05/05/98 - DJ: 22/05/98. Por unanimidade de votos, deram provimento.

          ACAO DE REINTEGRACAO DE POSSE - LEASING - CONTRATOS FIRMADOS SOB A EGIDE DA RES. 980/84 - OPCAO DE COMPRA CARACTERIZADA ANTES DO TERMINO DO CONTRATO - COBRANCA DO VALOR RESIDUAL ANTECIPADA - INTELIGENCIA DO ART. 11, DA LEI 6.099/74 E DO ART. 9 , "G", I E ART. 11 DA RES. 980/84 - OPERACAO CARACTERIZADA COMO DE COMPRA E VENDA A PRESTACAO - TRADICAO (ART. 620 DO CCB) - TRANSFERENCIA DE DOMINIO - IMPOSSIBILIDADE JURIDICA DA CONFIGURACAO DO ESBULHO E DEMAIS REQUISITOS DO ART. 927 DO CPC - VIA INADEQUADA PARA DESFAZIMENTO DO NEGOCIO - RECURSO PROVIDO.

"Caracterizada na forma da legislação vigente a época, a operação de arrendamento mercantil como compra e venda a prestação, inadequada se mostra a via da reintegração de posse para a recuperação do bem que foi objeto do contrato."

(grifa-se)


4. CONCLUSÃO

Desta forma, pelo que se expôs, conclui-se que o entendimento doutrinário/jurisprudencial vem caminhando para se descaracterizar o arrendamento mercantil em compra e venda à prazo ante o pagamento antecipado do VRG e por conseguinte o exercício da opção de compra, não importando a forma pela qual se dê a cobrança antecipada do valor relativo à aquisição do bem arrendado, pois, em todos os casos, estar-se-á desvirtuando o instituto do arrendamento mercantil e caracterizando a operação como simples compra e venda financiada.

Assim, em estando comprovado o efetivo pagamento antecipado do valor residual, seja antecipado na integralidade quando da assinatura do contrato, ou mesmo de forma parcelada conjuntamente com às prestações do "aluguel", desnaturado está o contrato de arrendamento mercantil para o de compra e venda à prestação.

Desse modo, inviável será a concessão de liminar "inaldita altara parte" de reintegração de posse para se recuperar o bem, pois inadequada é a via possessória especial, vez que inexiste esbulho desde o momento da tradição do bem.

Por fim, nesses casos, em se deparando o magistrado com a situação em comento, correto é extinguir o processo de reintegração de posse, com fulcro no art. 267, do CPC, para que o arrendador utilize-se da ação ordinária cabível para o inadimplemento contratual, que não a possessória.


NOTAS

  1. CARNEIRO, Athos Gusmão. O contrato de leasing financeiro e as ações revisionais. In: BUSCH, Eduardo Vieira (coord.). Carta Jurídica: Revista de informação e debates n. 1 (Direito Processual Civil). Santos : Jurídica Brasileira, 1999. p. 39-77.
  2. DELGADO, José Augusto, Leasing - doutrina e jurisprudência. Curitiba : Juruá, 1997, p. 37.
  3. BENJÓ, Celso. O Leasing na sistemática jurídica e internacional. In: Revista Forense, nº 274, p. 13.
  4. EFING, Antônio Carlos. Contratos e procedimentos bancários à luz do código de defesa do consumidor. São Paulo : Revista dos Tribunais, 1999, p. 118.
  5. CARNEIRO, Ob. cit., p. 40.
  6. EFING, Ob. cit., p. 116.
  7. VANTI, Silvia. Leasing, aspectos controvertidos do arrendamento mercantil. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1998, p. 110.
  8. CARDOSO, Jorge. Aspectos controvertidos do arrendamento mercantil. In: Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. Revista dos Tribunais, n. 5, 1993, p. 73-74.
  9. Fazem parte desta corrente doutrinária: Athos Gusmão Carneiro; Jorge Cardoso, dentre outros.
  10. EFING, Ob. cit., p. 127.
  11. STJ. REsp 00228782/SC, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 07/12/1999, DJ 20/03/2000, p. 00078. No mesmo sentido: STJ. REsp 234437/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. em 16/11/1999, DJ 03/03/2000, p. 00119. No mesmo sentido: STJ, REsp 234437/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. em 02/12/1999, DJ 21/02/2000, p. 00134.
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Guilherme Borba Vianna

advogado, Popp & Nalin Advogados Associados, Curitiba (PR), pós-graduado em Direito Processual Civil pelo IBEJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, Guilherme Borba. Da desconfiguração do leasing financeiro pela antecipação do valor residual. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 43, 1 jul. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/630. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos