Estudar a natureza jurídica de qualquer instituto jurídico significa analisar sua a essência e fim último.
O emolumento do notário e do registrador, enquanto contraprestação desses serviços, é entendido por certa jurisprudência e doutrina como tributo.
E isto fundalmentamente por quatro razões: (1) Os notários e registradores são, formalmente, servidores públicos, — funcionários públicos em sentido lato —, e órgãos do Estado, porque (a) só podem exercer as funções por delegação do Poder Público (CF, art. 236, caput); (b) estão sujeitos à permanente fiscalização do Poder Judiciário (CF, art. 236, § 1º); e (c) ingressam nas atividades mediante concurso público de provas e títulos (CF, art. 236, § 3º). (2) Por causa do status de funcionários públicos em sentido lato, os notários e registradores aposentam-se compulsoriamente, submetidos que estão ao mesmo regime dos servidores públicos (RTJ 126/550, Rel. Min. Octavio Gallotti). [1] (3) A jurisprudência do STF acolhe a doutrina de que os emolumentos são considerados taxas e não preços públicos. (4) Não há disponibilidade de tributo para o particular, uma vez que "Tributo é a receita derivada, instituída pelas entidades de direito público, compreendendo os impostos, as taxas e contribuições nos termos da Constituição e das leis vigentes em matéria financeira, destinando-se o seu produto ao custeio de atividades gerais ou específicas exercidas por essas entidades". [2]
Entretanto, a evolução do direito nos impõe nova leitura da essência do fenômeno emolumental.
Com efeito, a inerente qualidade de salário dos emolumentos dos notários e registradores já havia sido assinalada, pelo STF, na década de 1950, através das RE nº 19.706 e RMS nº 2.871. Todavia, a natureza jurídica dessas verbas não havia sido objeto desses julgamentos.
Somente após o julgamento da Rp nº 895-GB, em meados de 1973, firmou-se o precedente da suposta natureza tributária, muito embora esse julgamento, neste particular, tenha registrado importante divergência desse entendimento, inclusive justamente por um dos maiores nomes da doutrina tributária internacional, Aliomar Baleeiro, que votou, em consonância com Bilac Pinto, no sentido da essência remuneratória, salarial, daquelas verbas pagas aos tabeliães.
Este processo, como dissemos, não obstante não ter tido como objeto — como os anteriores julgamentos também não tiveram — a discussão da natureza da contraprestação devida aos notários e registradores, serviu como "leading case".
A partir daí a natureza tributária ressaiu como tese majoritária na jurisprudência, sendo citáveis exemplificativamente: Rp nº 997-GO, de 1981; Rp nº 1.094-SP, de 1984; Rp nº 1.295-RS; de 1987; Rp nº 1.234-PR, de 1987; RE nº 116.208-MG, de 1990; RE nº 116.208-MG, de 1990; ADinMC nº 338-AM, de 1990; ROMS 330/SP, de 1993; RESP 35.541-9-SP, de 1993; TJMG, Ap. 1209/6, de 1994; RE 189736/SP, de 1996; RE 178236/RJ, de 1997; ADinMC nº 1378/ES, de 1997; ADinMC nº 1.556/PE, de 1997; ADinMC nº 1444-PR, de 1997; RMS nº 7.730–RS, 1997; ADI nº 1.709-3-MT, de 1998; RESP 120668/SP, de 1998; ADinMC nº 1790-DF, de 2000; ADIMC 2059-PR, de 2001; ROMS 9703-MT, de 2002; ADI nº 1145-PB, de 2002; ADI 2123-ES, de 2003; ROMS 16514/RO, de 2003; ADI 2653-MT, de 2003; ADI nº 2.653-4-MT.
E em sentido contrário, são apontáveis: 6.013-RS, de 1996; ADinMC nº 1.752-RJ, de 1998; RHC 8.842-SC, de 1999; MS nº 02845.000/00-6, de 2000; RE 201595/SP, de 2001; TRT da 9ª R., AP 00225-2001 – (23381-2001), de 2001; TRT da 18ª R., RO nº 2656, de 2001; RESP nº 366005-RS, de 2002; TJMT, ADI 11036/2002; TRT da 3ª R., AP 2415/03, de 2003; TRT da 9ª R., RO 14781-2002, de 2003, que ora sobressaem a natureza alimentar dos emolumentos, ora os vincula ao caráter empresarial do serviço notarial e registral.
O fato hoje relevante é que o instituto dos emolumentos dos serviços notariais e registrais está regido, a partir da Constituição (art. 236), por lei federal (nº 10.169, de 30de dezembro de 2000), que lhe estabelece normas gerais de fixação pelos Estados federados. E que é a partir deste regime jurídico que podemos encontrar, com facilidade, a sua natureza.
A partir do ordenamento positivo é de se ver os aspectos conducentes à nova leitura dos emolumentos enquanto essência.
Os "serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos", di-lo, literalmente, o artigo 1º da Lei nº 8.935, de 1994.
Esses serviços: "são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público", como estabelece o caput do artigo 236 da CF.
Vale ponderar de logo que os serviços notariais e registrais (cartórios) não possuem personalidade jurídica. [3] São meras divisões administrativas nas quais os notários e registradores exercem o seu mister, através de delegação estatal.
"Notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro", prescreve, literalmente, o artigo 3º da LNR.
O § 2º do artigo 236, da CF, ao programar o regime desses emolumentos, estatui que "Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro".
É manifesto que não há "atos praticados pelos serviços notariais e de registro".
Os serviços notariais e de registro não praticam atos.
Quem os pratica, prescinde referir, são os notários e registradores e seus prepostos, contratados sob regime celetista. [4]
Ademais, é induvidoso que é aos titulares que o sistema jurídico outorga a titularidade do direito de perceber (auferir, colher, receber) essas verbas (Lei nº 8.935, de 1994, art. 28, verbis: "Os notários e oficiais de registro gozam de independência no exercício de suas atribuições, têm direito à percepção dos emolumentos integrais pelos atos praticados na serventia e só perderão a delegação nas hipóteses previstas em lei.")
Deste prisma, poder-se-á reclassificar os serviços notariais e registrais, do ponto de vista do Direito Administrativo assim.
Quanto à essencialidade, são serviços de utilidade pública, vale dizer, aqueles facultativos, não essenciais, não obrigatórios, prestados por particulares delegados.
Quanto à adequação, são serviços impróprios de Estado, a saber, aqueles que realizam os interesses da sociedade, não dizendo respeito às suas necessidades.
Quanto à finalidade, são serviços industriais, isto é, aqueles que se identificam com uma atividade econômica exercida pelo Estado, nos termos do art. 173 da CF. No caso notarial e registral, o serviço industrial é exercido em caráter privado, pelo respectivo profissional do Direito (notário ou registrador), a teor do art. 236 da CF, e Lei nº 8.935, de 1994.
Quanto aos destinatários dos serviços, são serviços individuais, ou uti singulis, porquanto prestados em favor de usuários determinados, que os procuram para "garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos". [5]
A apropriada descrição dos serviços notariais e de registros repercute diretamente no estudo da natureza do emolumento do notário e do registrador, porquanto resta saliente a origem, finalidade, destinação e, mais importante que tudo, a PROPRIEDADE PRIVADA dessa verba no sistema desses serviços públicos.
Do ponto de vista histórico-jurídico brasileiro, o emolumento dos notários e registradores sempre fora definido e tratado como remuneração desses profissionais, paga diretamente pelos usuários dos respectivos serviços prestados delegados.
A par disso, não há registro de pagamento, pelo erário, de salários aos notários e registradores para o desempenho da delegação — exceto se se tratasse de exceção, vale dizer, de serviços notariais estatizados, realidade hoje existente apenas temporariamente no direito brasileiro, a teor do art. 50 da Lei nº 8.935. Antes, os notários e registradores recebiam da clientela, e eram tributados tanto sobre a remuneração (emolumento), como pela delegação (através de pensões anuais).
O emolumento do notário e do registrador, enquanto remuneração, sempre servira para dois fins bem definidos: (a) para o sustento do profissional e seus auxiliares, e (b) para mantença dos serviços aos seus cargos.
Emolumento e tributo diferem.
Tributo é receita pública derivada. Provém da transferência de riqueza do particular para o Poder Público. "É a receita derivada, instituída pelas entidades de direito público, compreendendo os impostos, as taxas e contribuições nos termos da Constituição e das leis vigentes em matéria financeira, destinando-se o seu produto ao custeio de atividades gerais ou específicas exercidas por essas entidades" (Lei nº 4.320, de 1964, art. 9º, verbis). Caracteriza-se como "prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada" (CTN, art. 3º, verbis). As normas gerais em matéria de legislação tributária são objeto de lei complementar (CF, art. 146, III).
Já o emolumento — seja do ponto de vista etimológico, seja do jurídico — é remuneração. No caso do emolumento do notário e do registrador é receita privada, remuneração de serviço público notarial e registral delegado a particular. Caracteriza-se como a contraprestação remuneratória, paga pelo interessado ao prestador do respectivo serviço notarial ou registral, exercido em caráter privado, nos termos da CF, art. 236, caput.
Em suma: o emolumento do notário e do registrador traduz-se, portanto, em obrigação de valor nominal, em dívida de dinheiro, nascente de relação jurídica obrigacional de fazer, em que figura, como sujeito passivo, o particular delegado de serviço notarial e registral, obrigado a prestar esses serviços públicos o usuário, credor, numa relação de direito privado contratual, sob o regime do CDC.
Emolumento de notário e registrador é prestação oriunda de relação jurídica de consumo entabulada entre notário/registrador e usuário do respectivo serviço. É prestação de dar que ressai de obrigação de fazer serviço notarial e registral. Constitui-se num credito privado. Sendo privado, não se coaduna como receita pública, mesmo de natureza não tributária (L. 4.320/1946, art. 39). É produto do trabalho, receita privada, de essência alimentar, remuneratória, renda tributável de pessoa física.
O emolumento não pertence ao serviço notarial e registral, que não possui personalidade jurídica, nem organicidade administrativa, i.e., não é órgão da Administração. O emolumento pertence ao notário e registrador, que lhe adquire o direito subjetivo de percepção pelo exercício da delegação (Lei nº 8.935, de 1994, arts. 28, 36).
A natureza jurídica do emolumento notarial e registral reveste-se, portanto, de essência privatística, funcionando como uma contraprestação remuneratória, salarial, de propriedade do notário e registrador, e que tem como fim o cometimento dos seus misteres públicos e sociais.
Notas
1 Na ADIN 2602/MG, o STF, em decisão unânime, de 03.Abr.2003, decidiu, em sede liminar, com efeito ex nunc, e erga omnes, ser plausível a tese da inaplicabilidade da aposentadoria compulsória à espécie. Acatou-se o argumento de não serem os registradores e notários titulares de cargos efetivos, porque a natureza das atividades que realizam é de caráter privado. O acórdão está assim ementado: "Ação direta de inconstitucionalidade. Provimento nº 055/2001 do Corregedor-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais. - Pela redação dada pela Emenda Constitucional nº 20/98 ao artigo 40 e seu parágrafo 1º e inciso II, da Carta Magna, a aposentadoria compulsória aos setenta anos só se aplica aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, tendo, sem dúvida, relevância jurídica a argüição de inconstitucionalidade do ato normativo em causa que é posterior a essa Emenda Constitucional sob o fundamento de que os notários e registradores, ainda que considerados servidores públicos em sentido amplo, não são, por exercerem suas atividades em caráter privado por delegação do Poder Público, titulares dos cargos efetivos acima referidos. - Ocorrência quer do ‘periculum in mora’, quer da conveniência da Administração Pública, para a concessão da liminar requerida. Liminar deferida para suspender, ‘ex nunc’, a eficácia do Provimento nº 055/2001 da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado de Minas Gerais até a decisão final desta ação direta." (STF. ADIMC 2602/MG. Tribunal Pleno. V.u. Rel. Moreira Alves. J. 03.Abr.2003, DJU-I de 06.Jun.2003, p. 30.)
2 Lei nº 4.320, de 1964, art. 9º, verbis.
3 "CIVIL E PROCESSO CIVIL – APELAÇÃO – CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS – ILEGITIMIDADE PASSIVA – ENTE DESPERSONALIZADO – 1. Cartório extrajudicial não tem personalidade jurídica de direito material. 2. A responsabilidade por falha de cartório extrajudicial deve ser suportada pelo titular da serventia (art. 28, lrp/73 e art. 22, Lei 8.935/94), designado à época do evento danoso. 3. Recurso improvido." (TJDF, Ap. 20010111042928–DF, 2ª T.Cív., Rel. Des. Silvânio Barbosa dos Santos, DJU-I de 22.Out.2003, p. 44). "EMBARGOS DO DEVEDOR – CARTÓRIO EXTRAJUDICIAL – ILEGITIMIDADE AD CAUSAM – Cartório extra-judicial é desprovido de personalidade jurídica e processual. Não figura em pólo passivo da execução. A extinção do processo executivo se impõe." (TJMG, Ap 000.344.189-6/00, 1ª Câm.Cív., Rel. Des. Orlando Carvalho, J. 24.Jun.2003) "RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO INDENIZATÓRIADANOS MORAIS – AQUISIÇÃO DE VEÍCULO – FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTOS DA REQUERENTE – ILEGITIMIDADE DE PARTE – EXTINÇÃO DA AÇÃO COM RELAÇÃO AO CARTÓRIO DE SERVIÇO NOTARIAL – FALTA DE PERSONALIDADE JURÍDICA – VERBA HONORÁRIA A SER SUPORTADA PELA AUTORA – POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO – CULPA DA CONCESSIONÁRIA – FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS - INDENIZAÇÃO DEVIDA INDEPENDENTEMENTE DE DOLO OU DEMONSTRAÇÃO DE PREJUÍZOS – MAJORAÇÃO DA VERBA INDENIZATÓRIA – ADMISSIBILIDADE – SENTENÇA PROCEDENTERECURSO PARCIALMENTE PROVIDO – Os cartórios notariais são partes ilegítimas a figurarem no pólo passivo de ação indenizatória, por faltar-lhe personalidade jurídica. Deve o prejudicado, em havendo interesse, acionar o tabelião. Havendo falhas na prestação de serviços que acarretou na chancela de cartão de assinaturas para reconhecimento de firma com documentos falsificados e dentro das dependências da concessionária, é devida a obrigação indenizatória independentemente da demonstração de dolo ou de prejuízos sofridos pela autora. A indenização a título de danos morais há de ser justa e em observância a proporcionalidade do fato em relação à ofensa moral sofrida pelo requerente, além da situação econômica das partes. Representa para vítima uma compensação simbólica e para o ofensor uma pena para que sinta o mal praticado, todavia, não pode ser fonte de enriquecimento da vítima." (TJMT, AC 32357/2002, 1ª Câm.Cív., Rel. Des. Jurandir Florêncio de Castilho, J. 26.Maio.2003) CARTÓRIO EXTRAJUDICIAL – SUCESSÃO TRABALHISTA – O cartório extrajudicial, embora careça de personalidade jurídica a exemplo do condomínio encontra-se inserido no parágrafo 1º, do artigo 2º, da CLT, pouco importando o fato de não exercer atividade econômica, propriamente. Embora exerça atividade de natureza pública, não órgão público. No caso, ocorre a sucessão institucional – Porque, embora não se tratar de empresa, trata-se de ente despersonificado, autêntico empregador. (TRT 3ª R., RO 7096/03, 1ª T., Rel. Juiz Manuel Cândido Rodrigues, DJE-MG de 04.Jul.2003, p. 05).
4 LNR, arts. 20-21.
5 LNR, art. 1º, in fine, verbis. LRP, art. 1º, verbis: "Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei."