RESUMO:O Autor deste trabalho tem procurado trabalhar a teoria e a clínica usando o elemento denonimado Interpretante, elemento que Lacan introduz a partir de uma participação em seu seminário de François Recanati, no qual a Semiológica de Charles Sanders Pierce é incorporada em seu ensino. O Interpretante pode ser entendido como uma chave de leitura, um significante (ou conjunto de significantes) que traduz outro (ou outros). E nesse processo de tradução, revela algo da lógica de uma estrutura. No caso presente - estrutura da linguagem - um discurso sobre A Perversão e sua relação com a Lei. Trata-se de um exame do fenômeno perverso tendo como diferencial a psicose e das homologias existentes entre o triangulo semiótico linguístico de Charles Sanders Peirce e os três registros psíquicos de Jacques Lacan. Essas homologias são analisadas no campo especifico da clínica da perversão, na medida em que, nesta - e ante a relativização do Nome-do-Pai - a inversão dos polos do matema do fantasma implica uma multiplicidade de Interpretantes imaginários possíveis, versões ficcionais da operatória paterna, ao revés da clinica da psicose, onde a inoperância ou ausência da metáfora paterna implica na falta da função do impossível.
Palavras Chave: Perversão, Lei, Interpretação, Interpretante.
INTRODUÇÃO
Pretende-se utilizar, como hipótese de trabalho, o elemento denominado Interpretante como operador epistemológico para pensar a perversão. O autor tem procurado trabalhar a teoria e a clinica usando o triangulo semiótico de Peirce, que Lacan introduz a partir de uma participação em seu seminário de François Recanati, no qual parte da Semiotica de Charles Sanders Pierce é trazida para seu ensino.
O Interpretante pode ser entendido como uma chave de leitura, um significante (ou conjunto de significantes) que traduz outro (ou outros). E nesse processo de tradução revela algo da lógica de uma estrutura. No caso presente - estrutura da linguagem - um discurso lógico sobre a perversão como uma versão fictícia, relativizada, da operatória paterna.
Essa proposta não tem nada de original. Vários autores estudam esses textos e trabalham esses temas. A proposta aqui é citar, de maneira articulada e lógica, tais autores. E disso tirar consequências para a teoria e para a clínica. São hipóteses, meras hipóteses de trabalho, ainda que pelo estilo – ou falta dele - pareçam proposições peremptórias.
A fórmula do fantasma de Lacan é outro operador epistemológico relevante: sujeito e objeto estão definidos – por fórmulas outras, mas que podem entrar em operação se necessário. Espaço e tempo são também trabalhados por Lacan, o tempo lógico com a sincronia e a diacronia, com antecipação e retroação - o importante conceito de a posteriori - e o espaço com a topologia que permeia seu ensino.
A importância do fantasma também se refere ao fato de que sua constituição provê o marco que serve de suporte á realidade. Aqui se distingue espaço e tempo por razões descritivas, mas lembre-se que Lacan trabalha com espaço/tempo, conceito derivado da Teoria da Relatividade. Espaço e tempo que constituem as coordenadas simbólicas que são fundamentalmente rebaixadas e imaginarizadas no fenômeno perverso. Espaço que na topologia lacaniana se supõe bidimensional e que caracteriza a especificidade da leitura que Lacan faz de Freud.
Mas o que queda elidido dessa operação quaternária (sujeito, objeto, espaço, tempo) - que pode ser reduzida a um par (S barrado punção de a) - é que se faz necessário algo para articulá-los. Um Interpretante. A partir da intervenção de François Recanati em seus seminários 19 e 20 – intervenções que não estão traduzidas nem são encontradas nos Seminários de Lacan publicados em português (o autor usa as versões criticas de Ricardo Rodriguez Ponte para o espanhol) - Lacan passa a trabalhar também com as operações semióticas do triângulo de Pierce: composto pelo Objeto, seu Representamen (seu signo ou significante) e seu Interpretante (outro significante).
O SIGNIFICANTE EM PEIRCE E O OBJETO EM LACAN
No livro “Semiótica” (2000) Charles Sanders Pierce estabelece uma lógica, que vai interessar muito a Lacan, composta de Elementos – denominados triádicos – que se relacionam entre si (Objeto, Representamen e Interpretante) e com três outros elementos (Existente, Qualidade e Lei) denominados Correlatos, também em numero de três, de múltiplas maneiras. O que interessa a Lacan é testar as possibilidades de aproximação deste ternário com os Registros do Imaginário, Real e Simbólico, já nesta época de seu ensino pensados nos termos dos nós borromeus. Primeira definição de signo em Pierce (2000):
Signos são divisíveis conforme três tricotomias. A primeira, conforme o signo em si mesmo for uma mera qualidade, um existente concreto ou uma lei geral. A segunda, conforme á relação do signo para com seu objeto consistir no fato de o signo ter algum caráter em si mesmo, ou manter alguma relação existencial com esse objeto ou em sua relação com um Interpretante; a terceira, conforme seu Interpretante representá-lo como um signo de possibilidade ou como um signo de fato ou como um signo de razão. (Pagina 51).
Gabriel Pulice e Oscar Zeilis, psicanalistas argentinos, que publicam conjunto de artigos sobre o tema na Revista Imago Agenda , esclarecem algumas das questões que serão importantes ao longo do trabalho:
Observamos la importancia de esta última aclaración, porque apunta a lo recién señalado acerca de que, en la concepción peirceana, no es necesario suponer un sujeto consciente tal como lo entiende la psicología clásica, y por tanto, el interpretante puede funcionar por fuera de la conciencia, lo que nos permitirá pensar el acto de semiosis como factible de realizarse en procesos inconscientes y, de modo general, entenderlo como una propiedad semiótica y no psicológica. Para no producir confusiones, además, Peirce muchas veces reemplaza, al describir el diagrama, la palabra signo por representamen. Veremos enseguida que en este modelo, la relación signo-interpretante también se podrá leer, por ejemplo, como el encadenamiento de un significante a otro significante. Pero antes veamos cuál es su definición de semiosis: «Por semiosis entiendo una acción, una influencia que sea, o involucre, una operación de tres elementos, como por ejemplo un signo, su objeto y su interpretante, una relación tri-relativa, que en ningún caso se puede resolver en una acción entre dos elementos» (Peirce, 1998). Vale decir, plantea una relación triádica genuina y no reductible.
Destaca-se da citação acima que o Interpretante funciona em processos inconscientes (encadeamento de um significante a outro significante), que a relação entre os três elementos é irredutível á qualquer relação diádica e de que não se trata de propriedades psicológicas, mas de uma ação ou influencia da natureza de uma operação lógica semiótica. Segunda Definição de Pierce (apud Pulice e Zeilis):
Defino al Signo como algo que es determinado en su calidad de tal por otra cosa, llamada su Objeto, de modo tal que determina un efecto sobre una persona, efecto que llamo su Interpretante, vale decir que este último es determinado por el Signo en forma mediata. Mi inserción del giro “sobre una persona” es una forma de dádiva (...) porque he perdido las esperanzas de que se entienda mi concepción más amplia en cuestión.
Destaca-se, da citação acima, o Signo/representamen como algo que determina um efeito chamado Interpretante (este por sua vez determinado pelo Representamen de forma mediata – ou seja, dependente da intervenção de terceiros, outros Interpretantes). Lacan, no Seminário 19 (apud Pulice e Zeilis):
Lo que el otro día fue puesto en el pizarrón bajo el nombre de “triángulo semiótico”, bajo la forma de representamen, de lo interpretante, y aquí del objeto, para mostrar que la relación es siempre ternaria, a saber, que es la pareja Representamen / Objeto, que es siempre a reinterpretar, es eso de lo que se trata en el análisis.
Destaca-se, da citação acima que, do que se trata em análise, diante de uma relação sempre ternária, é reinterpretar constantemente a dupla Representamen/Objeto. Um pouco mais adiante, mesmo seminário (apud Pulice e Zeilis):
¿Qué hace falta sustituir en el esquema de Peirce, para que armonice con mi articulación del discurso analítico? Es simple como los buenos días: a efectos de lo que se trata en la cura analítica, no hay otro representamen que el objeto a, objeto a del cual el analista se hace el representamen, justamente, el mismo, en el lugar del semblante. (Lacan, 1971-1972).
Destaca-se que a única coisa que Lacan indica necessário substituir, entre seu esquema ternário e o de Pierce, é que o objeto a é nomeado como único (“no hay outro”) representamen que conta para a cura analítica. Alocado como Representamen, não como Objeto.
Lacan não diz: para os efeitos da cura em psicanálise, o objeto a ocupa o lugar de Objeto na tríade de Pierce. Ao revés, diz que o objeto a ocupa o lugar de Representamen. E isso tem consequências que precisam ser exploradas. O lugar do Objeto é deixado vazio e o objeto (a) é alocado no lugar do Representamen.
Interessante agora analisar o elemento denominado Interpretante, assim descrito por Umberto Eco (2000):
El Interpretante pode adoptar formas diferentes. Enumeremos algunas de ellas:
(a) puede ser el significante equivalente (o aparentemente equivalente) em outro sistema semiotico. Por ejemplo, pude hacer coresponder um deseno con una palabra
(b) pude ser el indicio directo sobre el objecto particular, que supone um elemento de cuantificacion universal (todos lós objectos como este).
(c) puede ser uma definicion cientifica ingenua del próprio sistema semiotico (por ejemplo, sal por cloreto de sódio e vice-versa).
(d) pude ser uma asociacion emotiva que adquiera uma conotacion fija (perro por fidelidad)
(e) pude ser la traducion de um termino de um lenguaje a outro, su substituicion mediante um sinônimo (página 116)
Um significante visual – imagem – correspondendo a um significante auditivo – fonema. Um método de correlação entre sistemas semióticos distintos. Um método de tradução de um plano (visual) a outro (plano auditivo) por um significante equivalente.
Um regime geral de equivalências que se da por tradução, que pode conter uma definição cientifica ou ingênua e que seja motivado por uma associação emotiva que adquira conotação fixa. Que pode se dar do plano falado ao plano escrito. Entre plano perceptivo e plano motor. Entre o plano biológico e o plano psicológico. Entre o plano somático e o plano psíquico. E que, portanto, se aplica entre os planos Imaginário, Simbólico e Real. Também pode ser uma associação emotiva, que adquira uma conotação fixa: fiel como um cachorro, no exemplo de Umberto Eco. Uma fixação libidinal no jargão freudiano, um nó sintomático de significação no jargão lacaniano.
Um exemplo, o mais intuitivo embora o menos produtivo, seria o de equiparar Objeto (Existente) ao Real, Representamen (Qualidade) ao Imaginário e Interpretante (Lei) com o Simbólico. O que interessa, e muito, é que Lacan começa aqui a rever o fundamento de que o par mínimo, para operar com a lógica dos Significantes e para a produção de significação, seja somente S1/S2.
Ele passa a contemplar a possibilidade de operar com um S3: “para mostrar que la relación es siempre ternaria, a saber, que es la pareja Representamen / Objeto, que es siempre a reinterpretar, es eso de lo que se trata en el análisis” (apud Pulice e Zeilis). Mais uma vez Pierce: “Um Signo (significante) é um Representamen com um Interpretante mental”. (apud Pulice e Zeilis).
E esse mental pode ser inconsciente. Opera com mais eficácia assim, como sabido desde Freud. O significante é o que representa o sujeito para outro significante. O significante é o que representa o sujeito para outro Interpretante. E esse Interpretante, na perversão, oficia localizado no Imaginário. Mas nada impede que funcione nos dois demais registros.
O INTERPRETANTE EM PEIRCE E O GOZO EM LACAN
Um exemplo pode esclarecer como operar com o Interpretante de Pierce. Se a Balança pode ser o signo da Justiça (balança como representamen/signo do objeto Justiça), o significante Justiça pode assumir função de significação pelo Interpretante Igualdade. A Igualdade esclarece, filtra, interpreta o que é justiça; conferindo significação, ela passa a ser o Interpretante da Justiça.
E o que é Justo ou Injusto – ou seja, a definição dos atributos do objeto, de suas propriedades, logo, de sua substancia ou substrato - passa a depender do que seja Igualdade. Mas o que é igualdade? O que é igualdade depende de outro significante, e este por sua vez passa a ser o interpretante da igualdade. E assim sucessivamente em remissão infinita.
Se Justiça é entendida como Igualdade – e assim dar a cada um da mesma forma – ou como Equidade – e assim dar a cada um na medida de suas desigualdades – fará diferença? Depende. Por um lado, fará. Um Interpretante leva a um caminho distinto do outro. Estipula um impossível. Ou um ou outro. Impossível os dois. A cadeia significante possui leis próprias e, tão importante quanto, memória. Uma memória que é simbólica, mas tremendamente eficaz. Que registra, no ato mesmo de seu encadeamento, as impossibilidades advindas das escolhas que faço quanto aos Interpretantes a serem utilizados.
Por outro não. Que é Justiça? É possível em determinado espaço/tempo considerar que é Igualdade e em outro espaço/ tempo considerar que é Equidade. Desde que sejam em espaços/tempos diferentes – ou seja, desde que sejam espaço/tempo lógicos constituídos por cadeias significantes distintas - embora possam ser sincrônicas ou fazerem interseção em determinado ponto – há a realização da distribuição de Justiça de dois modos distintos. Me aproximo da coisa em si, e assim atinjo a Justiça; abordo um fragmento do Real por assim dizer.
Mas o que é Justiça? Que tal o Justo agora ser Isonomia (distribuição de Justiça por Equiparação), Interpretante distinto dos anteriores? E o que é Equiparação? A remissão infinita do significante por outro Interpretante se renova e se relança. O interessa aqui é marcar que nesta remissão infinita o referente – a coisa em si- é perdido. Atinjo a Justiça como objeto, e objeto bastante concreto em seus efeitos, mas não o Justo como coisa em si - Substância do Justo (Substancia do Gozo). Propriedade da linguagem. Impossível de domesticar, de controlar. Um impossível lógico. A coisa em si, e não o objeto, é que está irremediavelmente perdida. Subordinação aos efeitos metafóricos e metonímicos inconscientes da linguagem, substituição de referentes por referências.
Linguagem que possui capacidade ontológica (a pergunta pelo ser) e ôntica (a pergunta pelo ente), criação ex nihilo de seres e entes a sujeitar os falantes - na medida em que estes tentam apreender os entes e e captar o que seria o seu ser. E capacidade hermenêutica, a produção incessante de sentidos. Quanto a capacidade ontológica da linguagem, Pierce (apud Pulice e Zeilis):
Si hay algo real - esto es, algo cuyas características sean verdaderas de ello independientemente de si tú o yo, o cualquier hombre o número de hombres las pensamos como siendo características suyas o no— que se corresponda suficientemente con el objeto inmediato —el cual, puesto que es una comprensión, no es real—, entonces , ya sea identificable con el Objeto estrictamente así llamado o no, debería denominarse, y normalmente se denomina, “objeto real” del signo. Por alguna clase de causación o influencia debe haber determinado el carácter significante del signo.
Nesse diapasão de argumentos, o objeto a é um operador lógico (um Interpretante) utilizado para deter a remissão infinita da significação – o desejo é sua interpretação- bem como para determinar –pesquisar a causa - o elemento que influencia o caráter significante do Representamen, seu “objeto real”. Em psicanálise, esse objeto – esse referente - é o vazio recoberto pela pulsão. O vazio recoberto pelas bordas das pulsões parciais. O vazio, não uma mítica substancia gozante. O referente é o vazio, a causa é ausente. O referente é o vazio, muito embora este esteja coberto de referências – interpetantes que explicam e esclarecem o que é o vazio.
A pulsão como “objeto real” - elemento que influencia – interfere – e, portanto, determina - causa - o caráter significante, confere significação. Mas o que é a pulsão? Pulsão tem relação com a demanda – do Outro e ao Outro – e atualmente é esclarecida pelo Interpretante gozo. Mas o que é gozo? E o circuito de significação se renova e se relança pela necessidade de novos Interpretantes.