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A prisão do falido perante a nova ordem constitucional

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14/02/2005 às 00:00
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3) DA PRISÃO CAUTELAR

3.1) natureza jurídica

Prisão, do latim prehensio, significa o ato de prender ou agarrar uma coisa ou pessoa. No sentido jurídico exprime o ato pelo qual se priva a pessoa de sua liberdade de locomoção. (57)

A regra em nosso ordenamento jurídico é que tal medida só seja imposta àquele "reconhecidamente culpado de haver cometido uma infração penal". (58)

A prisão-pena, portanto, é resultante de uma sentença penal condenatória e se apresenta no Código Penal sob as formas de reclusão e detenção, além de outras previstas em leis esparsas.

Ao lado desta, tem-se a chamada prisão sem pena (processual penal, civil, disciplinar).

Tratando especificamente da prisão processual, também chamada de provisória, esta é classificada como cautelar em sentido amplo – ou seja, é aquela que recai sobre o indivíduo, privando-o de sua liberdade de locomoção, mesmo sem sentença definitiva - e inclui-se a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão resultante de pronúncia e a prisão temporária. (59)

Antes de qualquer estudo mais aprofundado a cerca da cautelaridade do processo é bom deixar registrada a função primordial do direito processual, qual seja, de instrumento a serviço do direito material:

"Fala-se da instrumentalidade do processo, ainda, pelo aspecto negativo. Tal é a tradicional postura (legítima também) consistente em alertar para o fato de que ele não é um fim em si mesmo e não deve, na prática cotidiana, ser guindado à condição de fonte geradora de direitos. Os sucessos do processo não devem ser tais que superem ou contrariem os desígnios do direito material, do qual ele é também um instrumento (à aplicação das regras processuais não deve ser dada tanta importância, a ponto de, para sua prevalência, ser condenado um inocente ou absolvido um culpado)." (60)

Dessa forma, a medida cautelar tutela o processo e não o direito material sujeito à discussão. Ela serve de instrumento para assegurar tanto o processo de conhecimento como o de execução.

3.2) Requisitos

A prisão cautelar nada mais é do que uma antecipação de um provimento que só será obtido através de um processo de conhecimento.

No momento em que o magistrado se vê diante de situações que exijam a tomada de providências urgentes a fim de assegurar a futura aplicação da sanção, estar-se-á diante de uma medida cautelar.

No processo penal, dois são os seus pressupostos: o fumus boni juris e o periculum in mora. O primeiro é a ‘fumaça do bom direito’, a "probabilidade de uma sentença favorável, no processo principal, ao requerente da medida." (61) Está presente no binômio prova da existência do crime e indícios suficiente de autoria (art. 312 do CPP).

O segundo requisito da cautela traduz-se no perigo concreto de insatisfação daquele direito em razão da demora na prestação jurisdicional.

Entretanto, deve-se fazer menção à crítica que alguns autores fazem na utilização de conceitos atrelados ao processo civil no processo penal.

Dessa forma, Roberto Delmanto Junior e Paulo Rangel preferem o uso dos termos fumus comissi delicti (ao invés de fumus boni juris) e periculum libertatis (a periculum in mora).

"... para que a prisão cautelar possa ser aplicada, o magistrado deverá verificar, concretamente, se a prova indica ter o acusado cometido o delito, cuja materialidade deve restar comprovada, bem como se sua liberdade realmente representa ameaça ao tranqüilo desenvolvimento e julgamento da ação penal que lhe é movida ou à futura e eventual execução." (62)

Aury Celso Lima Lopes Junior, ao analisar tais requisitos, próprios do processo civil, também critica sua aplicação no processo penal por considerar um equívoco a afirmação de que para se decretar a prisão cautelar é preciso estar demonstrado o fumus boni juris, posto que é totalmente ilógico afirmar que o delito é uma ‘fumaça do bom direito’. (63)

Logo, a medida coercitiva não necessita, para ser decretada, de um juízo de probabilidade a cerca de existência do direito de acusação, mas sim da ocorrência de um delito. (64)

Nesse momento, não há que se falar em juízo de certeza, mas da presença de sinais, advindos de uma investigação, que autorizem o juiz a tomar providência tão radical como a prisão:

"(o juízo de) probabilidade significa a existência de todos os requisitos positivos e a inexistência de todos os requisitos negativos do delito. Interpretando as palavras de Carnelutti, requisitos positivos do delito significa prova de que a conduta é aparentemente típica, ilícita e culpável. Além disso, não podem existir requisitos negativos do delito, ou seja, não podem existir causas de exclusão da ilicitude (legítima defesa, estado de necessidade,etc) ou de exclusão da culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa, erro de proibição, etc.)" (65)

Por conseguinte, não basta a demonstração dos elementos que integram o tipo penal, é imprescindível a existência de sérios indícios de que a conduta não apresenta causas de justificação e que estão presentes os elementos integrantes da culpabilidade penal: imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa.

Em relação ao segundo requisito das medidas cautelares, o periculum in mora, Aury Celso Lima Lopes Junior leciona que, além da confusão terminológica, há uma valoração equivocada a cerca do perigo de demora no processo penal, pois o que se encontra na verdade, é o perigo decorrente da situação de liberdade do suposto autor do fato ilícito, o periculum libertatis. Assim, tal requisito "assume o caráter de perigo ao normal desenvolvimento do processo (perigo de fuga, destruição da prova, alarma social e reiteração delitiva)" (66)

Tratando da prisão preventiva, o Código de Processo Penal, em seu art. 312, assim dispõe:

"A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indícios suficiente de autoria."

Luiz Vicente Cernicchiaro, analisando a sistemática da prisão preventiva no CPP sob o crivo da nova Carta Política, afirma que a liberdade deve ser a regra e a prisão antes da sentença condenatória transitada em julgado, a exceção.

Desse modo, cabe ao juiz, no caso concreto, impor liberdade vigiada ou mediante condições, se entender que estas restrições sejam socialmente recomendáveis e não afetem a segurança jurídica. (67)

A conclusão extraída é que se existir outras formas menos gravosas para o indivíduo, como a proibição de se ausentar da comarca sem a devida autorização judicial ou a retenção de passaporte, que assegurem o desenvolvimento regular do processo e a aplicação da lei penal, qualquer prisão decretada nesta circunstância classificar-se-á como desproporcional e inadequada.

Em julgamento proferido recentemente pelo Supremo Tribunal Federal, foi analisada a decretação da prisão preventiva fundamentada num risco de, em tese, os agentes evadirem-se ou ameaçarem testemunhas. A Corte Constitucional entendeu que afirmações abstratas equivalem à falta de fundamentação e deferiu o Habeas Corpus para anular o decreto de prisão. Eis a ementa do acórdão:

"HABEAS CORPUS. PEDIDO DE REVOGAÇÃO DE PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE DECRETADA COM BASE NA GRAVIDADE DO CRIME, NA CONVENIÊNCIA DA INSTRUÇÃO CRIMINAL E NA GARANTIA DE APLICAÇÃO DA LEI PENAL. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, QUE CONSIDEROU ESTAR DEVIDAMENTE DEMONSTRADA A NECESSIDADE DA CUSTÓDIA CAUTELAR, NOS TERMOS DO ART. 312 DO CPP. Hipótese em que a decisão impugnada carece de fundamentação válida, tendo em vista que a simples referência à possibilidade de evasão do distrito da culpa, à gravidade em abstrato do delito e à repercussão do fato sobre as testemunhas, sem qualquer elemento concreto a indicar a consistência dessas afirmações, não podem validar o decreto de prisão preventiva. Habeas corpus deferido." (68)

Dessa forma, a presunção de inocência obriga ao magistrado que presuma também o comparecimento do acusado a todas as fases processuais e apenas quando ocorrer a fuga propriamente dita estará justificado o decreto de prisão preventiva.

Neste sentido:

"Não há que se falar em constrangimento ilegal pela ausência dos requisitos do art. 312, porquanto, in casu, o réu evadiu-se do distrito da culpa, sendo, portanto, necessário para a garantia da instrução criminal e da própria aplicação da lei penal, a imposição da medida constritiva." (69)

3.3) Características

Há divergência entre os autores sobre o que seja característica da pretensão cautelar no processo penal e o que seja princípio aplicável. Adotando esta última posição, Aury Celso Lima Lopes Junior afirma que as cautelares "devem se orientar pelos princípios da jurisdicionalidade, instrumentalidade, proporcionalidade, provisionalidade e excepcionalidade". (70)

No entanto, adotamos aqui a posição de Fernando da Costa Tourinho Neto no sentido de que a excepcionalidade, a instrumentalidade, a provisoriedade, além da acessoriedade configuram-se como características do processo cautelar, já que estas são "sinais de individualização da coisa, pela sua descrição, situação e outros elementos particulares que a diferenciem de outras coisas da mesma espécie" (71)

Eis, então, as principais características da tutela cautelar:

  1. acessoriedade – no sentido de, por si só não existir, mas sim em razão de um processo principal; (72)
  2. instrumentalidade ou subsidiariedade – posto que a prisão cautelar deve ser um meio para que do processo advenha um resultado útil; (73)
  3. provisoriedade – a prisão cautelar, provisória por natureza, somente se justifica quando tutelar uma situação enquanto não houver uma sentença, ou então quando não mais existirem "os motivos que justificaram a imposição" (74)
  4. excepcionalidade – assim como todo sistema penal, a utilização da prisão cautelar só é admitida como exceção, como verdadeira ‘ultima ratio’

Em relação a esta última característica, Paulo de Souza Queiroz leciona que:

"...quer isso significar, em respeito à liberdade, que todas as medidas de vigilância, de policiamento, de restrição ou privação de direitos, numa palavra, de coerção ao indivíduo, somente poderão ser toleradas em situações excepcionais, em nome desta mesma liberdade, pois se trata, afinal, de contemplar, em tais casos, não a regra, mas a exceção, a não-liberdade, por meio de tais constrangimentos. Como toda exceção, limitações à liberdade, especialmente as que derivam da intervenção penal, somente se justificam quando sirvam à afirmação da regra, isto é, quando sirvam à afirmação da liberdade mesma" (75)

3.4) Espécies

Conforme já dito, várias são as espécies de prisão cautelar previstas em nosso ordenamento jurídico: em flagrante, decorrente de pronúncia, decorrente da sentença penal condenatória recorrível, temporária e preventiva.

Entretanto, em razão dos objetivos da presente monografia, iremos analisar mais detidamente apenas a prisão preventiva. Primeiro, porque é ela que "estabelece a disciplina geral das prisões provisórias no ordenamento jurídico-processual," (76) segundo, por sua maior ligação com a prisão decorrente de um processo falimentar.

Vejamos, então, as hipóteses previstas no art. 312 do Código de Processo Penal:

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A) A prisão preventiva para assegurar a aplicação da lei penal – É a situação em que se encontra de forma mais clara o caráter cautelar da medida: decreta-se a prisão ou porque há o risco de fuga ou porque esta já ocorreu e necessita-se agora da captura do acusado.

Neste sentido, "a fuga do réu do distrito da culpa é circunstância que, por si só, enseja um decreto de custódia cautelar, isso em obséquio à aplicação da lei penal." (77)

Por outro lado há decisões no sentido de que "não cabe prisão preventiva pelo só fato de o agente, movido pelo impulso natural da liberdade, ausentar-se do distrito da culpa, em ordem a evitar, com esse gesto, a caracterização da situação de flagrância." (78)

Importante observação a ser feita é de que apesar do perigo de fuga ser um dos fundamentos mais importantes para a decretação da medida cautelar, não há como nos sujeitarmos a qualquer hipótese de presunção de fuga, posto que absolutamente incompatível com o princípio constitucional da presunção de inocência. Ou seja, meras suspeitas não são suficientes para que a medida seja aplicada. Faz-se necessário analisar o caso concreto para que viagens usuais a negócios ou a passeio, assim como várias residências do acusado não sejam motivos ensejadores para a decretação da prisão preventiva.

B) A prisão preventiva por conveniência da instrução criminal – Decreta-se a prisão amparada por esse fundamento quando o indiciado ou réu estiver criando obstáculos para prejudicar o andamento do processo. Tal atuação, segundo a jurisprudência majoritária, manifesta-se através da destruição de provas, da tentativa de corrupção dos funcionários da justiça, além da ameaça ou aliciamento de testemunhas. (79)

Segundo Romeu Pires de Campos Barros, a "conveniência da instrução criminal tem função dúplice: utilizar-se do acusado como prova no processo e evitar que ele prejudique a colheita de prova, dificultando a descoberta da verdade." (80)

C) A prisão preventiva decretada para garantia da ordem pública ou econômica - Tratando-se de expressões tão amplas e com um grau de incerteza além do recomendável, grande parte da doutrina repudia a fórmula adotada pelo legislador por considerá-la em desconformidade com o fim processual da prisão preventiva, já que, disposta dessa forma, configuraria uma "verdadeira medida de segurança, com antecipação da pena." (81)

Adotando o conceito de De Plácido e Silva, ordem pública é a "situação e o estado de legalidade normal, em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto." (82)

Ordem pública ou econômica seria, portanto, a tranqüilidade no meio social obtida e mantida pelo Estado, através de seu poder de polícia.

João Gualberto Garcez Ramos utiliza a imagem de um lago com águas plácidas, para compará-lo com a idéia de ordem pública. Assim, qualquer crime cometido funciona como uma pedra jogada no lago, que com sua energia cinética gera ondas na direção da margem. A prisão preventiva procura, então, atenuar essa perturbação. (83)

A jurisprudência tem adotado tal fundamentação em caso de atividades típicas de grupo de extermínio (84), na periculosidade dos agentes (85), para acautelar o meio social (86) e em situações de reiteração criminosa. (87)

Esta última motivação, profundamente criticada por Roberto Delmanto Junior, deságua em duas hipóteses: se houve mesmo a prática de um novo crime contra a mesma ou diversa pessoa, como testemunhas, por exemplo, a questão é solucionada com a decretação da prisão em flagrante. Não sendo esta possível, decreta-se a prisão preventiva por conveniência da instrução criminal.

A outra hipótese é que a decretação da prisão preventiva com o único fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos "baseia-se, sobretudo, em dupla presunção: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para consumar o delito tentado" (88)

Dessa forma, a chamada presunção de reiteração delitiva acaba por violar a garantia constitucional da presunção de inocência ao não trabalhar com os fatos concretos, com o perigo real e sim com meras conjecturas.

Uma outra questão advinda da decretação da medida cautelar fundada na ordem pública reside na sua presença em caso de proteção do agente contra represálias da vítima ou de seus familiares. A doutrina majoritária afirma que o que deve ocorrer é a garantia por parte do Estado contra qualquer ato violento e não a prisão do acusado sob o pretexto de favorecê-lo. (89)

Em sentido contrário, encontramos algumas decisões, tão bem denominadas por Salo de Carvalho (90), como "jurisprudência penal do terror" que justificam a medida cautelar para a proteção do indivíduo:

"Prisão preventiva. Decretação contra acusado de atentado violento ao pudor. Garantia da ordem pública. Habeas Corpus denegado. A prisão provisória visa assegurar o fluxo normal da instrução criminal. Nos crimes que despertam grande revolta na opinião pública, a custódia cautelar contribui para suavizar as reações emocionais, pondo a salvo a própria integridade física do acusado. Denegação da ordem". (91)

Entretanto, a posição de Julio Fabbrini Mirabete é no sentido de que o conceito de ordem pública "não se limita a prevenir a reprodução de fatos criminosos, mas também a acautelar o meio social e a própria credibilidade da justiça em face da gravidade do crime e da sua repercussão." (92)

Devemos atentar, contudo, para o fato de que o clamor público que o crime provocou e a sua repercussão na imprensa não podem nortear a decisão de prender ou manter em liberdade o suposto autor do delito. Assim

"O estado de comoção e de eventual indignação popular, motivado pela repercussão da prática da infração penal, não pode justificar, só por si, a decretação da prisão cautelar do suposto autor do comportamento delituoso, sob pena de completa e grave aniquilação do postulado fundamental da liberdade. O clamor público – precisamente por não constituir causa legal de justificação da prisão processual (CPP, art. 312) – não se qualifica como fator de legitimação da privação cautelar da liberdade do indiciado ou do réu, não sendo lícito pretender-se, nessa matéria, por incabível, a aplicação analógica do que se contém no art. 323, V, do CPP, que concerne, exclusivamente, ao tema da fiança criminal." (93)

Já em 1957, Francesco Carnelutti comparava o processo com a tortura, no sentido de que normas como a presunção de inocência não passavam de ilusão e que os fenômenos advindos da crônica judiciária e da literatura policial serviam apenas como diversão, como uma espécie de esporte para uma civilização que necessitava fugir de sua "cinzenta vida cotidiana.":

"O homem, quando é suspeito de um delito, é jogado às feras, com se dizia uma vez dos condenados oferecidos como alimentos às feras. A fera, a indomável e insaciável fera, é a multidão. O artigo da Constituição, que se ilude de garantir a incolumidade do acusado, é praticamente inconciliável com aquele outro que sanciona a liberdade de imprensa. Logo que surge o suspeito, o acusado, a sua família, a sua casa, o seu trabalho são inquiridos, investigados, despidos na presença de todos. O indivíduo, assim, é feito em pedaços. E o indivíduo, assim, relembremo-nos, é o único valor da civilização que deveria ser protegido." (94)

Em 11 de Junho de 1994, a Lei n° 8.884 alterou a redação do art. 312 do Código de Processo Penal para incluir a possibilidade de decretação da prisão preventiva para garantia da ordem econômica.

Do ponto de vista do fim social de proteção, não é difícil fundamentar a decisão de tutelar, através do Direito Penal, interesses da coletividade, na medida em que seu valor supremo é a "segurança da pessoa e seus direitos individuais e sociais." (95)

Classificando a ordem econômica como uma especialização da ordem pública, João Gualberto Garcez Ramos conceitua aquela como a "convivência ordenada de seus agentes e, normativamente, o conjunto das regras que garantem a segurança e a liberdade das relações de produção e circulação de riquezas, bem como das que garantem a valorização do trabalho humano." (96)

Apesar da ausência de conceito, o art. 170 da Constituição da República elenca os princípios gerais da atividade econômica: (97)

Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV – livre concorrência;

V – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único – É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Pode-se concluir, portanto, que qualquer desrespeito aos princípios mencionados caracterizará atentado contra a ordem econômica. (98)

Com esse motivo autorizador da decretação da prisão preventiva o legislador procurou incluir delitos que não apresentassem violência ou grave ameaça à pessoa, mas que causam à sociedade a mesma perturbação.

Átilo Antonio Cerqueira, conceituando a chamada criminalidade tradicional ou massificada e a nova criminalidade caracteriza aquela pelo emprego da violência física, pela imediatidade e pessoalidade em suas ações, no sentido de que é possível perceber a existência de um vínculo entre o autor e a vítima ou um número limitado desta. Já a nova espécie de criminalidade caracteriza-se pelo emprego de alta tecnologia, do anonimato e da diluição de seus efeitos, produzindo uma "vitimização difusa." (99)

Dessa forma, os delitos praticados contra as relações de consumo, contra o meio ambiente, bem como contra o sistema financeiro atingem a sociedade como um todo, causando danos, "de um lado microeconômicos, ao atingirem as finanças de empresas, e de outro, macroeconômicos, ao fulminarem a estabilidade de governos e trazerem ruína a políticas sociais e econômicas implementadas." (100)

Embora em alguns casos, bastante específicos, possamos justificar a necessidade da prisão preventiva pelas conseqüências advindas da violação das regras econômicas impostas inclusive pela Constituição da República (101), o certo é que a maioria dos autores consideram-na inconstitucional por ser apenas uma medida judiciária de polícia (102) e não um instrumento garantidor do direito ou do processo.

Assim, para uma hipotética defesa social, o que deveria ser uma medida cautelar, com todas as características inerentes a esta, acaba por tornar-se apenas em um meio de punição antecipada. (103)

A posição de Fauzi Hassan Choukr é no sentido de criticar o que chama de desvirtuamento na prática, ou seja, na utilização da ordem pública como fundamento autorizador da instrução criminal. Para o autor, portanto, apesar de flagrantemente inconstitucional, a jurisprudência adota este conceito tão ilimitado para abarcar idéias como as de presunção de periculosidade, a de necessidade de pronta resposta da justiça como uma forma de satisfação pública, a gravidade do delito, entre outras. (104)

Analisando o gênero "ordem pública" e a espécie "ordem econômica", Aury Lopes Junior também considera inconstitucional a prisão cautelar fundada em ambas as hipóteses. Eis seus argumentos:

"...a prisão para garantia da ordem pública ou da ordem econômica não é cautelar. Epistemologicamente, a cautelar está à serviço do processo, Por isso, é uma instrumentalidade de segundo grau, ou elevada ao quadrado como ensina Calamandrei. É um instrumento a serviço do instrumento processo penal. A prisão para garantia da ordem pública/econômica não serve para a tutela do processo ou do seu objeto, senão que atende a um interesse de ‘segurança pública’, não cautelar e, portanto, inconstitucional. A ‘ordem pública’ é um conceito vago, indeterminado e despido de sentido. Sua origem é nazi-fascista (Alemanha nazista, 1935), concebido como uma autorização geral e aberta para perseguir e prender. Atualmente, tem sido usada para sedar a opinião pública, transformando-se em pena antecipada, com clara finalidade de exemplaridade e imediata prevenção geral e especial. Tais funções (prevenção geral e especial e retribuição) são funções exclusivas de uma pena, que supõem um processo judicial válido e uma sentença transitada em julgado. Jamais tais funções podem ser buscadas na via cautelar. É inconstitucional atribuir a prisão cautelar a função de controlar o alarma social, e, por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo. Também a ordem pública, ao ser confundida com a ‘opinião pública’, corre o risco da manipulação pelos meios de comunicação de massas, transformando-se em opinião publicada. Em suma, a prisão preventiva para garantia da ordem pública/econômica é uma verdadeira pena antecipada, violando claramente o devido processo legal e a presunção de inocência. A tutela da ordem pública é medida de ‘segurança pública’, devendo ser buscada através de outros instrumentos a disposição da administração pública. O que não podemos admitir é a introdução de um elemento completamente estranho à natureza puramente cautelar-legitimante, em inegável violação do sistema constitucional de garantias." (105)

Para finalizar, a conclusão que se extrai do sistema de prisão processual penal é de que com a crise do Estado, a sociedade - e conseqüentemente seu poder legislativo - dividiu-se de um lado em assegurar o exercício da liberdade e todos os princípios a ela inerentes, e do outro em apresentar diretrizes mais eficazes no que diz respeito à segurança pública.

E é desse embate que resulta a antítese: se por uma perspectiva existe a produção em larga escala de leis penais cada vez mais severas, oriundas de uma ideologia da defesa social (106), por outra, verifica-se a presença de um processo de despenalização de certas condutas, cuja Lei n° 9.099/95 é o melhor exemplo.

Para demarcar esse período de confusão legislativa, Miguel Reale Junior, utilizando a expressão "Direito Penal fernandino", critica a produção da legislação penal extravagante excessivamente repressiva, baseada tão somente em premissas falsas e em soluções normativas ao sabor dos fatos, posto que sem qualquer técnica legislativa, o elenco de leis "esdrúxulas e eivadas de inconstitucionalidade beiram o ridículo". (107)

Diante desse quadro caótico, onde o uso simbólico do sistema repressivo funciona como "técnica de dominação e reprodução do poder" (108), os direitos e garantias individuais são apresentados, especialmente pela mídia, como um obstáculo à persecução penal, funcionando como uma porta aberta para a impunidade.

O grande desafio, portanto, do nosso ordenamento jurídico, é encontrar o equilíbrio, o fiel da balança entre a liberdade individual e a repressão à criminalidade, para que a fórmula democrática-garantista de direito mínimo na esfera penal ao lado do direito máximo na esfera social (109) deixe de ser um modelo utópico para transformar-se na realidade que todos nós necessitamos.

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Sobre a autora
Janaina Reis Nogueira

bacharel em Direito pela UERJ, pós-graduada em Advocacia Criminal pela Universidade Cândido Mendes

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Janaina Reis. A prisão do falido perante a nova ordem constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 587, 14 fev. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6319. Acesso em: 28 dez. 2024.

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